“Trump tem zero consideração pelas regras e por outras pessoas”, disse o mediador Chris Wallace | Foto: VCG

No que foi unanimemente considerado o mais deplorável debate presidencial da história dos Estados Unidos, o presidente Donald Trump interrompeu a fala do oponente de forma constante, trocou acusações e insultou o desafiante democrata Joe Biden, repetiu mentiras como a de que sua atuação na pandemia foi “fenomenal” e que “pagou milhões de dólares de IR”, desrespeitou o moderador Chris Wallace, culpou o “vírus chinês” pela pandemia e pelo desastre na economia, orientou uma milícia supremacista branca ‘a recuar e ficar pronta’ e, ao final, disse “que isso [a eleição] não vai acabar bem” por causa do voto pelo correio, que chamou de ‘viciado’.

Com isso, praticamente anunciou sua intenção de tentar fraudar as eleições, depois de ter por várias vezes nas últimas semanas se negado a dizer que aceitaria o resultado da eleição.

O debate ocorreu em Cleveland, Ohio, num quadro de enorme polarização no país e com a eleição praticamente transformada em um referendo sobre Trump. Em pesquisa da empresa SSRS, contatada pela CNN, o democrata foi considerado vencedor do debate por 60% dos espectadores, contra 28% para Trump.

Em suma, tudo indica que o quadro que já dura meses de Biden na frente por uma margem em torno de oito pontos percentuais, e também na frente nos Estados campo de batalha considerados em conjunto, se manteve, senão avançou. Há quem ache que a falta de decoro de Trump e o baixo nível das discussões possam ter feito parte dos indecisos desistir de votar. O número de indecisos já é considerado baixo.

Trump fracassou ainda em sua caracterização de Biden como “Joe Sonolento” – este chegou a retrucar ao bilionário chamando-o de “palhaço” e “mentiroso”, e após múltiplas intrusões em seu tempo de exposição, com até um “cala a boca, cara”.

Nos dias que antecederam o debate, Trump andou insinuando que Biden vem “tomando drogas” para ter o desempenho que vem demonstrando. “Tremendas injeções”, tem insistido, naquele seu estilo cínico e sem limites, depois de, por meses, alegar que o democrata sofria de demência.

RESUMO FIDEDIGNO

Como registrou um analista do Washington Post, “o debate foi um pesadelo e um resumo adequado da presidência de Trump”.

Quem viu o debate, constatou que não havia como Biden atender inteiramente ao conselho de um colega senador, de evitar se atracar com o bilionário, porque “o porco gosta da lama e você acaba enlameado”.

Em última instância, foi a fragilizada ‘democracia à americana’ que saiu enlameada.

Outro momento em que o democrata se diferenciou desse clima de escárnio de Trump no debate foi quando, após este dizer que o filho de Biden, Hunter, era viciado em cocaína, Biden assumiu em público a defesa do filho, se emocionou, e se disse um dos muitos pais que passaram pelo problema.

Para escapar do estilo bate-estaca de Trump, Biden buscou se dirigir diretamente para a câmera, como se falasse ao eleitor.

Quanto ao mediador Wallace, pouco haveria que ele pudesse fazer no caos imposto por Trump, que estava acuado pelas pesquisas, pelos 200 mil mortos na pandemia, pelos milhões de desempregados e o desastre na economia, mais os US$ 750 de IR depois de dez anos sem pagar nada. Exceto se o mediador tivesse, como as redes sociais sugeriram, um botão de “mudo”.

Como Wallace relatou depois, Trump “fala, fala, fala. Ele tem zero consideração pelas regras. Ou outras pessoas. Ou polidez. Ou ao responder a perguntas”.

Falida a linha do “Sonolento”, o principal mote da campanha republicana é que Trump é o “presidente da lei e da ordem” – que ele plagiou de Nixon -, para se contrapor à revolta nos EUA de costa a costa contra o racismo entranhado e a violência e impunidade policial, aliás, protagonizada em muitos lugares por jovens brancos.

Como contraponto, Biden passa a ser apresentado pelos trumpistas como um ‘joguete na mão da esquerda radical’, que irá levar o caos aos subúrbios ricos, cortar o financiamento da polícia e a sacrossanta posse de fuzis de assalto por qualquer um.

Instado por Wallace, Trump se negou a condenar a milícia de extrema-direita, racista e anti-semita, ‘Proud Boys’, dizendo que o problema é ‘a esquerda radical’, os antifas, e conclamando os supremacistas brancos a “recuarem e ficarem prontos”.

Se isso não foi um incitamento às turbas fascistas, então o que seria? A propósito, as redes extremistas celebraram o comentário “fiquem de prontidão” de Trump.

PANDEMIA

“Este é o mesmo cara que disse a você que pela Páscoa isto [o coronavírus] teria ido embora, que iria milagrosamente embora quando o tempo esquentasse”, disse Biden, dirigindo-se aos espectadores em casa, sobre o fracasso de Trump na pandemia. Segundo o presidente bilionário, foi sua política que “salvou milhões de vidas”, além de prometer a vacina logo depois da esquina.

Voltando-se zombateiramente para Trump, o democrata disse que “a propósito, talvez você possa injetar algum desinfetante no seu braço e cuidar disso”. “Foi sarcasmo”, asseverou o presidente reality show.

Trump, como de hábito, culpou a “praga chinesa” pelo desastre causado por sua incompetência e obscurantismo. E pior, agora se sabe, desde fevereiro era conhecedor de que o vírus era letal.

Outra mentira que Trump não para de repetir é a de que, sob seu governo os EUA tiveram “a melhor economia da história”, tentando confundir as pessoas de que a bolha de tudo em Walt Street, esta sim sem comparação na história, inclusive na história mundial, é a mesma coisa que crescimento econômico acelerado.

No pós-guerra, foram muitos os governos, tanto democratas como republicanos que tiveram PIB bem mais robustos, e no ano passado o PIB dos EUA já baixara para a linha dos irrisórios 2%, que vêm acontecendo desde o crash de 2008.

Sobre a questão, Biden se saiu bem, dizendo que o que Trump chamava de “melhor economia da história” eram os bilionários como ele fazendo a festa, enquanto todos os demais norte-americanos ficavam à míngua. Ele prometeu acabar com o corte de impostos com que Trump agraciou os ricos e as corporações, investimentos em infraestrutura e mais empregos.

Biden também se comprometeu a levar os EUA de volta ao Tratado do Clima de Paris. Na questão da política externa, Biden acusou Trump de ser um “marionete de Putin”, mantendo a desenxabida alegação de que Hillary perdeu por causa de Moscou. Trump contra-atacou, dizendo que o filho de Biden, Hunter, tinha recebido US$ 3,5 milhões da viúva de um ex-prefeito de Moscou (figura com a qual se sabe que também Trump discutiu o projeto de uma torre). Biden respondeu que é mais uma mentira. A única concordância foi quanto à China, com cada um dos dois atribuindo ao oponente fraqueza diante de Pequim.

O comportamento de Trump no debate, não respeitando qualquer regra, nem o tempo do oponente, ou o moderador, parece dirigido a insuflar sua base extremista a só aceitar como resultado sua reeleição.

O bilionário repetiu sua declaração de que a eleição seria caracterizada por “fraude como nunca se viu” e que cédulas estariam sendo “jogadas nos rios” e destruídas. E também enfatizou que estava “contando” com a Suprema Corte – para a qual está nomeando uma juíza de extrema-direita – para “olhar as cédulas”.

A verdade é que a votação pelo correio é tradicional e sem fraudes, e na eleição que Trump venceu em 2016, um terço dos votos foi pelo correio. O próprio Trump costuma votar pelo correio. Com a pandemia, esse número tende a aumentar até para a metade, segundo avaliações.

Biden buscou se contrapor à histeria despejada por Trump, dirigindo-se diretamente ao público, e convocando ao voto. “Vote, Vote, Vote”, reiterou.

Ele acrescentou que Trump “tem medo de contar os votos”. Tentando isolar as ameaças de Trump de virar a mesa, caso não seja reeleito, Biden afirmou que aceitará o resultado. “Vou aceitar. Se for eu, tudo bem. Se não for eu, apoiarei o resultado”, afiançou.

Ele prometeu ser um presidente “não apenas para os democratas; serei um presidente para democratas e republicanos também.”

Naturalmente, o próprio surgimento na cena política de uma figura como Trump por si só retrata a decadência política, econômica e social dos EUA, sob duas décadas de guerra sem fim; exacerbação do parasitismo financeiro e da desindustrialização; crashes e quase crashes da bolsa; normalização da tortura, do grampo digital e de leis de exceção ‘anti-terror’; apologia da ganância e do individualismo; e elevação a alturas não vistas da desigualdade, a ponto das perspectivas da nova geração passarem a ser de queda em relação à que a precedeu.

Tudo isso potencializado pela pandemia e devastação econômica e social que acarreta.

O que forçosamente acaba por interferir e minar o sistema democrático norte-americano, cujo elo fraco, há muito se sabe, é o sistema de colégio eleitoral, criado em parte por causa da federação, mas principalmente para acomodar os Estados escravistas e os Estados sem escravidão.

Em 2000, com a ajuda do juiz Antonin Scalia na Suprema Corte, essa excrescência permitiu a farsa da ‘vitória’ de W. Bush sobre Al Gore, cassando a recontagem de votos na Flórida.

Agora estamos em 2020, com todos os seus ‘progressos’ via Cambridge Analytica e congêneres e o país dividido a um ponto não visto desde os anos 1960, e sob risco de crise política e constitucional. No debate, indagado por Wallace, Trump se negou a dizer que faria uma convocação pela calma civil após as eleições.

A esse respeito, na semana anterior, o senador republicano Ted Cruz havia dito que era preciso a todo custo evitar uma Suprema Corte “empatada 4+4”. Problema cuja indicação da juíza Amy Barrett pretende resolver, com a incumbência de as cartas do baralho em favor de Trump.

No final do segundo mandato de Obama, quando Scalia faleceu, os republicanos se recusaram a aprovar um nome, dizendo que a decisão caberia ao presidente saído das urnas. Exatamente o contrário do que querem agora.

Nas derradeira homenagens à juíza Ruth Bader Ginsburg, manifestantes assumiram, como reivindicação, seu último pedido, manifestado à neta, de que a indicação caiba ao próximo presidente. “Nenhuma nomeação, antes da posse”, mostravam os cartazes.

Além dessas questões, com Barrett, também estariam na linha de mira o Obamacare, a descriminalização do aborto e direitos civis e trabalhistas.

Para o presidente do Council on Foreign Relations – um dos principais think tanks do imperialismo norte-americano -, Richard Hass, o debate Trump-Biden foi “os 90 minutos mais desencorajadores, mais deprimentes, mais problemáticos” de que se lembre. “Se você não está preocupado sobre o futuro deste país, você não está prestando atenção”.

A propósito, o mundo inteiro está prestando atenção. Depois do caos no enfrentamento da pandemia, que contradiz a pose de país “excepcional” e única superpotência, os outros povos observam a degradação da democracia nos EUA sob Trump. Nas redes sociais, alguém disse temer que os EUA esteja a caminho de ser “uma Wall Street com armas nucleares”.