O presidente dos EUA Joe Biden fala durante a posse presidencial em Washington

Passados quatro anos de um estrondoso governo de Donald Trump, o tom polido e a etiqueta liberal de Joe Biden não iludem. No país, a expectativa de parte da esquerda estadunidense é a de melhoria das condições para a luta, embora a já histórica invasão do Capitólio por trumpistas seja um sintoma da conjuntura política, em que recuos e continuidades são parte da dinâmica. O mesmo se espera no plano internacional.

Por Moara Crivelente*

Em sempre insuflado discurso, na despedida, Trump prometeu continuar “relevante”. Diante do trauma planetário, para alguns, a promessa deve ter soado um mau presságio. Foi pertinente um comentário feito na triunfalista e francamente pueril cobertura da partida de Trump e a posse de Biden na CNN estadunidense, abertamente partidária dos Democratas. Quem fez carreira cobrindo as derrapagens de Trump terá dificuldades em mudar de assunto. John Bolton, ex-conselheiro de Segurança Nacional, até foi chamado para um comentário breve, mas foi interrompido para o anúncio da chegada de Biden, o “bom católico”, à catedral em que se daria a missa antes da posse. Embora ele mesmo tenha escrito um polêmico livro de 500 páginas sobre o já ex-presidente, Bolton disse que os histriônicos comentaristas pró-Trump e os opositores deveriam superar o fenômeno e seguir adiante.

Certo, mas será difícil não fazer referência ao estopim que acelerou —não irreversivelmente, já que a disputa continua— o declínio relativo da hegemonia estadunidense e a deterioração da situação econômica, social e política no país. A incitação à extrema-direita, agora desapossada, contra a esquerda em geral, a população negra, os imigrantes, os cidadãos de origens latinas e até os cientistas, em pleno período de pandemia —embora Trump tenha tentado alterar os arquivos e dizer que graças ao seu governo, a vacina foi criada— assim como as ações agressivas contra Cuba, Venezuela, China e até a ONU e seus mais importantes órgãos: tudo isso continua reverberando, apesar da pressa dos Democratas em virar a página e reposicionar os EUA.

Presidente, Joe Biden já deu as primeiras ordens para tentar reparar o estrago. No arranque, escreveu ao secretário-geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres, dando “garantias” da sua “mais alta estima” ao comunicar a rescisão da decisão de Trump, de 6 de julho de 2020, de retirar os Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde (OMS). Biden reconheceu que a OMS “desempenha um papel crucial” contra a pandemia e outras “ameaças” em cujo enfrentamento os EUA pretendem continuar participando, como “líder global” —no usual tom quase beligerante e sempre hegemonista adotado até para tratar de temas como a saúde. Não basta voltar a participar e contribuir com os esforços coletivos: o retorno triunfal dos Estados Unidos de Biden ao concerto das nações será para retomar o lugar do condutor. Mas já se esperava exatamente isso: a “salvação” em tempos sombrios ou o reforço da ingerência na forma da orientação do patriarca.

Os sucessivos governos dos EUA só souberam atuar no mundo através do isolacionismo ou do unilateralismo ofensivo e sempre hegemonista, mesmo quando engajado nas instituições internacionais e alianças institucionais, não através do multilateralismo. Recorde-se como, no que se tornou uma espécie de manual em alguns cursos de Relações Internacionais, Henry Kissinger descreveu o papel do presidente Woodrow Wilson (1913-1921) ao fim da Primeira Guerra Mundial: ele não se unia aos aliados europeus para reconstruir a ordem internacional já conhecida e até então hegemonizada pelas principais potências europeias, mas para recriar um sistema inteiro.

As primeiras ordens de Biden e o que faltou

Foram 17 as primeiras ordens executivas, memorandos e proclamações que Biden assinou nesta quarta-feira (20), para ir tapando os rombos provocados pela política supremacista, chauvinista e, digamos, sem modos, diretas demais para o gosto de liberais, em alguns quesitos. Entre elas estão as ordens executivas pela saúde pública e o ambiente, declarando ser política do seu governo ouvir à ciência para formular medidas nas diversas áreas, como a resposta à crise climática, inclusive com a intenção de retornar ao Acordo de Paris, instruindo a revisão ou revogando medidas e ordens do governo anterior prejudiciais ao ambiente, aos direitos de povos indígenas, e mais; pela revisão das políticas e prioridades relativas à imigração, inclusive revogando a infame ordem executiva de 2017 de Trump pela construção do muro na fronteira com o México; a proclamação que revoga a proibição à entrada de pessoas de países maioritariamente muçulmanos e africanos, afirmando que as políticas securitárias e burocráticas continuarão a ser rigorosas, mas não discriminatórias; a ordem executiva que anuncia políticas para dirimir a desigualdade racial e assistir às comunidades excluídas; pela organização do governo em prol de uma resposta unificada e eficaz para combater a Covid-19 e oferecer “liderança” estadunidense em saúde e segurança global; e conformando uma liderança federal interina de especialistas da função pública para dirigir as adaptações, revisões e elaborações da transição de governo em diversas agências e departamentos, inclusive dedicados à economia, comércio, serviços sociais, justiça, infraestrutura, entre vários outros, assim como a segurança nacional e a Agência Central de Inteligência (CIA). Esta será dirigida interinamente por Daniel Cohen, vice-diretor da agência durante o governo Obama, quando Biden foi vice-presidente do país. Biden nomeou William Burns, um experiente diplomata, para dirigir a CIA, no que se interpretado como uma mudança de abordagem na agência de espionagem e operações várias. Burns foi vice-secretário de Estado até 2014, participou das negociações com o Irã pelo acordo nuclear e foi embaixador dos EUA na Rússia e sua nomeação, como a dos demais cargos em agências federais, ainda deve ser confirmada pelo Senado.

De acordo com a Reuters, a equipe de transição de Biden disse que a escolha por Cohen para o período de transição deve-se à sua experiência em “projetos especiais sobre novas tecnologias e em como melhor trabalhar com empresas para promover a missão da CIA”, uma premissa que certamente preocupa quem conhece a história ofensiva e de ingerência da CIA e os perigos do entrelaçamento privado-público neste âmbito. Cohen também serviu como sub-secretário para Terrorismo e Inteligência Financeira no Departamento do Tesouro dos EUA, onde assistiu à implementação das sanções contra o Irã, a Russia e a Coreia Popular. E é por seu papel na imposição de sanções ao Irã que ao menos dois dos principais jornais de Israel, cujos sucessivos governos declaram o país persa um dos seus inimigos mortais, reproduzem a matéria da Jewish Telegraphic Agency (JTA) saudando a ascensão de Cohen no âmbito da segurança, assim como quando ele foi nomeado por Obama em 2015.

A aliança entre EUA e Israel deve seguir firme: esta tornou-se praticamente política de estado. Como já notado, o Democrata Obama propagandeava orgulhosamente as ações concretas do seu governo em defesa de Israel, do apoio militar bilionário ao respaldo diplomático na ONU —à exceção da última resolução votada no Conselho de Segurança durante o seu mandato, finalmente condenando a construção de colônias israelenses em território palestino ocupado. Os EUA limitaram-se à abstenção, evitando o veto que sempre empaca este tipo de posições.

A nível internacional, para alguns, embora sua vitória resulte do empenho da centro-esquerda, Biden deve se posicionar no centro ou até centro-direita. Outras importantes medidas tomadas no primeiro dia na Presidência e que podem dar pistas do rumo adiante foram elencadas por Ana Prestes em suas Notas Internacionais e, como notou o editor do i21 Wevergton Britto, Biden deverá agora responder a três forças: a quem financiou sua campanha, a quem tornou a vitória possível e à extrema-direita ainda mobilizada.

Embora ainda devam ser emitidas dezenas de novas ordens executivas nos próximos dias, já que o estrago de Trump foi grande, entre tantas medidas do presidente cessante revogadas no primeiro dia da Presidência de Biden —com declarações políticas enfáticas nas introduções das novas ordens— não estavam o retorno ao acordo nuclear com o Irã, de que Trump tirou os EUA unilateralmente, ou o cancelamento de passos gravíssimos como o reconhecimento de Jeruaslém como a capital de Israel, que tanto dano causou a qualquer perspectiva de solução negociada com os palestinos, ou das ofensivas políticas contra Cuba, com que Trump não só reverteu os modestos, mas promissores passos tomados durante o Governo Obama, como ainda agravou o cerco à ilha revolucionária e, nos últimos suspiros do seu governo, incluiu uma Cuba humanista e solidária na lista de países patrocinadores do terrorismo.

Tampouco houve qualquer medida para reverter a ofensiva contra a Venezuela. Ao contrário, Anthony Blinken, o novo secretário de Estado, opinara que os EUA deveriam manter o reconhecimento ao golpista Juan Guaidó como presidente da Venezuela. Segundo a Reuters, a posição foi confirmada ao Senado nesta terça-feira (19), quando Blinken disse que o Governo Biden deve elaborar sanções “mais eficazes e direcionadas” para derrubar o presidente Nicolás Maduro e enviar “mais assistência humanitária” à Venezuela. Entretanto, nesta frente, a principal parceira, União Europeia (UE), deve ter papel mais comedido, uma vez que desde 7 de janeiro já não reconhece Guaidó como presidente do país sul-americano, embora siga considerando Guaidó e outros membros da Assembleia Nacional de 2015 “interlocutores particularmente relevantes com quem continuaremos trabalhando”.

Relações com a União Europeia

A reaproximação com a UE é outro dos principais temas sob análise: a relação quase umbilical entre o bloco e os EUA foi prejudicada durante o governo Trump. A UE também busca ter um papel mais autônomo em questões políticas, comerciais e militares. É de se notar que uma das principais vozes na defesa desse pivô é Angela Merkel, a chanceler da Alemanha que deixa o cargo à frente da presidência da UE, da liderança do seu partido e do governo alemão. Deve haver continuidade no posicionamento do país, mas o que isso significará no conjunto do bloco, agora com 27 membros desde a difícil saída do Reino Unido, está por definir. Em dezembro de 2020, a Comissão Europeia, órgão executivo da UE, debateu o plano “Uma nova agenda UE-EUA para uma mudança global”, para redefinir a relação transatlântica e diversificar parcerias, inclusive avançando nas relações com a China. Temas como a disputa pela implantação da 5G e a 6G e diferenças de “abordagem” em áreas do comércio bilateral deverão ser calibradas, mas o plano debatido pela Comissão Europeia destacou como a UE e os EUA compartilham o interesse por “fortalecer as democracias no mundo” através de “repostas coordenadas” nas “diferentes áreas geopolíticas”.

A presidente da Comissão, a alemã Ursula von der Leyen, disse que a aliança transatlântica tem base em “valores partilhados”, ao tempo em que o alto representante para a Política Externa, Josep Borrell, disse que “não existe parceiro mais importante e estratégico para a Europa do que os Estados Unidos”, no que se interpretou em alguns meios como a tentativa de superar o período Trump para reconstruir a parceria contando com Biden, com quem a UE conseguirá dialogar. Em novembro, a seguir às eleições estadunidenses, a Comissão preparava-se para realizar uma Cúpula UE-EUA já no primeiro semestre de 2021, sem perder tempo, por proposta do presidente do Conselho Europeu de chefes de Estado e Governo, o belga Charles Michel. Enquanto Biden tomava posse, Michel propunha ao novo presidente estadunidense um “pacto fundador” para revigorar os dois lados e a ponte transatlântica.

“Juntos, devemos nos suster como a fundação da ordem internacional baseada na lei”, disse Michel; “será uma mensagem de esperança para aqueles que estão esperando o retorno dos Estados Unidos ao círculo dos estados que partilham visões (…) e de que novamente, após quatro longos anos, a Europa tem um amigo na Casa Branca”, disse Van der Leyen. Como se sabe, além dos laços históricos, que se confundem com a história das guerras e das instituições internacionais, os dois países seguem juntos em alianças como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) —impondo grandes desafios aos países não alinhados e sustentando um cerco planetário cada vez mais abrangente.

Os próximos rumos das relações entre as potências certamente seguirão exigindo a ampla mobilização dos movimentos populares e progressistas nos níveis nacional e internacional. Um novo governo Biden pode reposicionar os Estados Unidos, mas certamente não como progressistas desejariam. O resultado destas dinâmicas também dependerá da resistência persistente e da continuamente analisada ascensão de novos atores internacionais capazes de fortalecer tanto a multipolaridade quanto o multilateralismo, para que se possa enfrentar o imperialismo.

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Moara Crivelente* é doutoranda em Política Internacional e Resolução dos Conflitos, diretora de Comunicação do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz) e assessora da Presidência do Conselho Mundial da Paz.

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