"Seria uma guerra mundial” – disse Biden, quando “russos e americanos começarem a atirar uns nos outros”

“Os cidadãos americanos devem sair agora”, disse Biden ao âncora Lester Holt. “Não é como se estivéssemos lidando com uma organização terrorista. Estamos lidando com um dos maiores exércitos do mundo. É uma situação muito diferente e as coisas podem enlouquecer rapidamente”.

Ao entrevistador, Biden disse que não há cenário em que ele enviaria tropas norte-americanas para evacuar cidadãos norte-americanos da Ucrânia, já que isso levaria a um grande conflito. “Isso seria uma guerra mundial” – disse Biden, quando “russos e americanos começarem a atirar uns nos outros”.

No mesmo dia, o Departamento de Estado havia divulgado orientação aos norte-americanos na Ucrânia para “partirem agora por meios comerciais e privados” e ainda reiterado que a evacuação de diplomatas e familiares de Kiev continuava.

Na sexta-feira pela manhã, Biden conversou por telefone com líderes do Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Canadá, Polônia, Romênia, Otan, Comissão Europeia e Conselho Europeu.

Aos observadores, a ênfase no “front externo” de Biden, diante de expectativas nada animadoras nas eleições intermediárias de novembro, é consequência de ele ter a pior avaliação de primeiro ano de mandato de presidente da história, seu principal programa, o BBB (‘Reconstrua Melhor’) segue empacado no Senado, a inflação disparou com o salário mínimo congelado há 12 anos, o total de mortos da Covid ultrapassou os 900 mil e o Fed diz que vai ter que aumentar os juros.

Desviar a atenção do povo norte-americano para o front externo, “unificar” o país em torno do imperialismo, para abafar os problemas domésticos e melhorar as chances nas eleições, é uma receita muito comum na história dos EUA. Que o diga Bill Clinton, que para se safar do escândalo Monica Levinsky bombardeou Iugoslávia e Iraque.

O alarmismo vem sendo insuflado pela Casa Branca apesar de até mesmo o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, negar que haja a tal “invasão russa iminente” e alertar que o pânico causado por esses rumores está desestabilizando a economia do país. E de a Rússia ter repetidamente negado tal “invasão” e acrescentado que, no que depender de Moscou, “não haverá guerra”.

Em dezembro, a Rússia, depois de telefonema entre Putin e Biden, apresentou suas propostas para restauração da segurança coletiva na Europa, com o fim da expansão da Otan até às fronteiras russas, o que inclui a Ucrânia, retirada dos sistemas de ataque e tropas que foram deslocadas até às fronteiras russas em cinco ondas de expansão da Otan e retorno às linhas de 1997, quando foi assinado o Ato Fundador Rússia-Otan.

Propostas que sintetizam o alerta do presidente Putin: “não fomos nós que levamos nossos sistemas de armas para a fronteira com os EUA, mas os EUA que já trouxeram seus sistemas até nossa porta”.

EUA e Otan já responderam às propostas russas, rechaçando-as, e sugerindo discutir questões secundárias. Aguarda-se para breve a contra-resposta russa.

A China manifestou-se publicamente a favor de que cesse a expansão da Otan até às fronteiras russas e, no histórico encontro Putin-Xinping no dia da abertura dos Jogos de Inverno de Pequim, os dois países anunciaram que estava nascendo o “mundo multilateral”.

Outras vozes do governo norte-americano se apressaram na sexta-feira a rufar os tambores sobre a “invasão iminente” russa.

“Qualquer americano na Ucrânia deve sair o mais rápido possível e, em qualquer caso, nas próximas 24 a 48 horas”, disse o conselheiro de Segurança Nacional de Biden, Jake Sullivan.

“Obviamente, não podemos prever o futuro, não sabemos exatamente o que vai acontecer. Mas o risco agora é alto o suficiente e a ameaça agora é imediata o suficiente para que seja isso que a prudência exige.”

Apesar dessa mensagem, Sullivan acrescentou que não está claro se Putin decidiu invadir a Ucrânia.

“Quero ser claro. Uma decisão final não foi tomada pelo presidente Putin, mas temos um nível suficiente de preocupação com base no que vemos no terreno e no que nossos analistas de inteligência captaram. E é uma mensagem urgente porque estamos em uma situação urgente”, disse Sullivan.

Por sua vez, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, disse numa reunião do Quad – a aliança antiChina no Pacífico – repetiu que uma invasão russa da Ucrânia pode começar “a qualquer momento”, inclusive “durante as Olimpíadas em andamento em Pequim”.

Em relação às manobras militares conjuntas na Bielorrússia, cabe lembrar que ocorrem todos os anos – aliás, como também, do outro lado da fronteira, muito mais manobras sob a Otan, várias vezes por ano.

Acordos de Minsk

Quanto à Ucrânia, para além da sua transformação em um país neutro, a Rússia insiste em que Kiev cumpra com os Acordos de Minsk, para solucionar a crise provocada pelo golpe de Estado CIA-neonazis, que derrubou um presidente democraticamente eleito a um ano das eleições, e colocou no poder um regime que se inspira nos colaboracionistas de Hitler da II Guerra e que persegue os ucranianos de ascendência russa e que falam russo.

O regime de Kiev congelou desde 2019 a aplicação dos Acordos de Minsk, inclusive aprovando leis em seu parlamento notoriamente contrárias a estes, se nega a dialogar com os revoltosos do Donbass, e a revisar a constituição para garantir direitos, autonomia e uso do idioma russo.

O que há de mal em que a Ucrânia – como ocorre com a Suíça, a Áustria e a Suécia – seja um país neutro, que não é parte de um bloco militar?

Ou que o idioma russo, falado por mais de um terço da população, seja legal, assim como na Suíça há três idiomas – francês, alemão e italiano. Ou no Canadá, que tem o inglês, mas também tem o francês em Quebec.

Enquanto se fala na concentração de “tropas russas”, dentro de suas próprias fronteiras, muitas vezes se esquece de registrar que, ao contrário do que estabelece os acordos de Minsk, a Ucrânia posicionou 150 mil soldados, incluindo batalhões de neonazis como tropa de choque, na linha de contato com o Donbass, havendo inclusive conclamações a uma “nova Operação Tempestade” – a expulsão de 200 mil sérvios que viviam há séculos na Krajina, durante o esquartejamento da Iugoslávia, sob uma operação liderada pela Otan.

Como destacou o presidente francês Emmanuel Macron, é crucial fazer com que os acordos, que concretizaram em 2014 um cessar-fogo e salvaram vidas, sejam cumpridos.