Bandeirantes: repressão a quilombos e recuo do meridiano (Parte III)
A derrota dos bandeirantes em M´Bororé não os tornou inativos. Eles deixaram de atacar as reduções do território das Missões, ou Sete Povos de Missões, que ficavam onde hoje estão o noroeste do Rio Grande do Sul e a província argentina de Missiones. Foram afastados de lá pela força militar adquirida pelos guarani, e que os derrotou.
Mas continuaram a agir em outras partes – principalmente no Itatim (hoje Mato Grosso do Sul), onde havia reduções organizadas pelos jesuítas.
Foram frequentes os ataques de bandeirantes à região, embora o número de cativos não fosse tão grande como no Guairá. Mas ainda assim o número era grande. Em 1647, por exemplo, aprisionaram cerca de 220 nativos, para escravizar. Ou em 1648, quando houve outro ataque. Em 1649, quando os remanescentes guarani das reduções do Itatim se reagruparam e se fixaram próximo ao Rio Tebiquari, restavam somente 300 das 1.000 famílias que residiam nas reduções do Itatim antes dos ataques bandeirantes.
A atividade bandeirante como sequestradores de índios para escravizar continuou. Houve inúmeras bandeiras para caçar índios – e nelas essa milícia particular que eram os bandeirantes funcionou quase sempre como grupo de mercenários a soldo dos governos das capitanias, sendo pagos com o direito de vender como escravos os aprisionados, ou com a concessão de extensas áreas de terra, ou mesmo com dinheiro e outros benefícios. Em 1671, por exemplo, Domingos Jorge Velho esteve à frente de uma bandeira contra índios no sertão do Piauí e recebeu por isso extensas áreas de terra na região. Da mesma maneira, anos mais tarde (em 1689) Manuel Álvares de Moraes Navarro foi convocado para combater tribos entre o rio São Francisco, Ceará e Rio Grande do Norte. Índios contra os quais, na mesma época, o governador Matias Cardoso de Almeida convocou os especialistas na “guerra do mato” para atuar no Ceará e Rio Grande do Norte. Foram sucessivas campanhas contra a chamada “Confederação dos Janduins”, ou “Guerra do Açu” – ou, preconceituosamente, a “Guerra dos Bárbaros”.
Mas não foi somente contra os índios que as bandeiras agiam. Como já vimos, no final do século 17 Domingos Jorge Velho foi convocado pelo governo de Pernambuco para combater o quilombo de Palmares. Este talvez seja o principal exemplo da ação destes milicianos contra quilombos. Outro exemplo foi a repressão do quilombo do Campo Grande, em Minas Gerais, que foi uma confederação – ou melhor, uma aliança – quilombola formada na região hoje conhecida como Triângulo Mineiro. Que surgiu ali em reação à aplicação do imposto da capitação. Essa foi uma confederação de grande vigor, como se pode ver até mesmo pelo fato de ter sido maior em extensão e população que o quilombo de Palmares – que tinha 9 núcleos ou vilas, enquanto Campo Grande chegou a ter 27. Sua população foi estimada entre 9 e 10 mil habitantes. O historiador Diogo de Vasconcelos calculou que tenha chegado as 20 mil habitantes em 1752.
Desde a década de 1730 a Coroa portuguesa cobrava o imposto chamado capitação de todos os moradores da região mineira, fossem ricos ou pobres, brancos pobres, negros forros e mestiços em geral. Todos estavam sujeitos a esse imposto, cobrado semestral sobre cada pessoa, sob pena de multa, prisão, açoite e expulsão da Capitania.
Esta extorsão fiscal e a violenta repressão que acompanhava sua cobrança fomentou a fuga para o sertão, onde surgiram comunidades que, como abrigavam escravos fugidos, negros forros e brancos pobres, foram chamadas de quilombo. Campo Grande talvez tenha sido o principal deles. Surgiu em torno da povoação do Ambrósio, dando origem a uma imensa aliança de núcleos quilombolas, que ficava em Cristais (MG). Foi atacado em 1746 por ordem do governo da capitania, pelo capitão Antônio João de Oliveira, ataque em que teria sido morto o Pai Ambrósio, que é citado nas “Cartas Chilenas”, de Tomás Antônio Gonzaga (1787-1788). Mas o quilombo não foi derrotado e, em 1759, sofreu novo ataque pela bandeira chefiada por Bartolomeu Bueno do Prado, neto do famoso Anhanguera. Ele foi contratado em 20 de junho de 1759 pela Câmara de São João Del Rei para destruir os povoados que formavam o quilombo do Campo Grande, e sua bandeira destruiu grande quantidade de núcleos quilombolas, matando muitos de seus moradores.
Pedro Taques (que viveu entre 1714 e 1777 e era neto de Fernão Dias Paes), registou, em sua “Nobiliarquia Paulistana”, a extrema barbaridade de Bartolomeu Bueno do Prado que, ao retornar da ação contra os quilombolas, apresentou ao Governador de Minas, como prova macabra de seu sucesso, 3.900 pares de orelhas, “sem outro prêmio – escreveu Pedro Taques – que a honra de se haver ocupado no serviço real, desempenhado o conceito que se formou de seu valor e disciplina de guerra contra negros fugidos”.
Bartolomeu Bueno do Prado continuou agindo contra quilombos na região, atacando nos sertões do Jacuí, na várzea do rio Sapucaí, onde destruiu mais quilombos de escravos fugidos, pretos forros e brancos pobres.
Houve também bandeiras cujo objetivo era encontrar metais preciosos, sobretudo ouro. Este tipo de bandeira aumentou muito desde o final do século 17, quando foi descoberto ouro em Minas Gerais, no chamado Sertão do Cuieté. E, depois, em Mato Grosso e Goiás.
Em meados do século 17, após a derrota em M´bororé, Antônio Raposo Tavares dedicou-se a estas atividades, atuando contra índios e quilombolas, e agindo na Bahia e em Pernambuco contra a invasão holandesa. Atuou ainda na prospecção do interior do continente.
Em 1647, ele foi convocado pelo Rei para uma missão, em grande parte secreta, para explorar o interior do continente, a oeste da linha de Tordesilhas, que então estava em vigor. Declaradamente o objetivo era encontrar minas, mas – diz o biógrafo Jaime Cortesão – a parte, secreta seria conhecer melhor o interior e identificar os interesses de Portugal na região além Tordesilhas.
Esta bandeira, formada por alguns brancos, mamelucos e mais de mil índios, ficou conhecida como a “Bandeira de Limites”. Ela saiu de São Paulo em 1648, e viajou pelo Tietê, depois pelo Paraná, que atravessou na altura da atual região gaúcha de Vacaria, entrou pelo Mato Grosso, seguiu por trilhas terrestres no Pantanal até alcançar o Madeira, de onde chegou ao Amazonas e, por fim, a Belém, em 1651, depois de três anos de andanças, percorrendo 12 mil quilômetros pelo interior da América do Sul. Dos partipantes iniciais dessa bandeira, chegaram a à foz do Amazonas, em Belém do Pará, somente 59 brancos e alguns índios.
O périplo pelo interior da América do Sul é considerado a primeira viagem em torno do território onde se formou o Brasil. Ela prefigurou aquele que viria a ser o território do Brasil como nação que estava, de certa maneira, pré desenhado – antes da chegada dos portugueses – pela área de abrangência linguística e cultural tupi-guarani, área contornada pela “Bandeira dos Limites”.
Essa grande área era ocupada pela população originária que vivia entre o Atlântico e os Andes, e do Prata ao Amazonas. Era o mundo tupi-guarani, que influenciou toda a imensa região na qual grande variedade de nações ou eram tupi-guarani ou estavam culturalmente influenciada por ela, diz o historiador Edmundo Zenha. Povos que, ao longo dos séculos, haviam desenvolvido uma verdadeira rede de veredas pelo interior do continente, acumulando conhecimentos geográficos que, mesmo rudimentares, foram aproveitados pelos colonizadores – sobretudo os bandeirantes, em suas entradas, e que também orientaram o périplo de Raposo Tavares. Os bandeirantes tinham notícias das vias de penetração pelo interior, e a “bandeira dos limites” seguiu “por veredas cuja notícia de há muito os bandeirantes haviam recolhido”, diz Edmundo Zenha.
Isto é, muito antes dos portugueses terem desembarcado nesta parte do mundo, o mapa do território do país que iria se formar aqui – o Brasil – já estava desde então de certa maneira desenhado. Esta é a opinião que o historiador português Jaime Cortesão defende no livro “Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil”. A “bandeira dos limites” foi responsável por aquilo que, num livro de 1934, o ideólogo do bandeirismo paulista, Alfredo Ellis Jr, descreveu como “o recuo do meridiano.”
Referências
- Bruno, Ernani Silva. “História do Brasil, geral e regional“, vol 4. São Paulo, Editora Cultrix, 1967.
- Cortesão, Jaime. “Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil“. Rio de Janeiro. Ministério da Educação e Cultura, Serviço de Documentação, 1958.
- Davidoff, Carlos. “Bandeirismo: verso e reverso“. Editora Brasiliense, São Paulo, 1984
- Ellis Jr, Alfredo. “O Bandeirismo Paulista e o recuo do meridiano“. São Paulo, Cia Editora Nacional, 1934.
- Fausto, Carlos. “Os índios antes do Brasil“. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005
- Franco, Francisco de Assis Carvalho. “Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil.” São Paulo, Comissão do IV Centenário da cidade de São Paulo, 1954.
- Holanda, Sergio Buarque de. “Monções“, São Paulo, Alfa-Ômega, 1976.
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- Taunay, Afonso de E. “Relatos Sertanistas“. Belo Horizonte, Itatiaia, 1981.
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- Taunay, Affonso de E. “História das Bandeiras Paulistas“, 11 vols. São Paulo, Edições Melhoramentos, 1975.
- Zenha, Edmundo. “Mamelucos”. São Paulo. Empresa Gráfica Revista dos Tribunais, 1970
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José Carlos Ruy* é jornalista, escritor, estudioso de história e do pensamento marxista.
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