Auxílio emergencial de Guedes é “jabuti” para guilhotinar estados
Diante da forte pressão da realidade social e dos mais distintos segmentos da sociedade brasileira, a equipe econômica de Guedes já estuda uma saída para a retomada do auxílio emergencial em 2021.
O recrudescimento da pandemia, o ritmo ainda lento da vacinação, o agravamento do desemprego e a persistência do quadro de estagnação econômica exigem solução rápida para a situação emergencial em que se encontram milhões de brasileiros.
A proposta governamental, explicitada pelo secretário de Tesouro Nacional, Bruno Funchal, consistiria na inclusão na Proposta de Emenda Constitucional do Pacto Federativo (PEC 188/19), hoje estacionada no Senado Federal, de uma “cláusula de calamidade”, segundo a qual o governo se livraria temporariamente da chamada “regra de ouro*” — que o impede de aumentar a dívida pública para pagar despesas correntes — e o aumento da despesa, por meio da abertura de créditos extraordinários (por meio de projeto de lei complementar) — os quais não se sujeitam ao famigerado teto de gastos, criado em 2016, que engessa o crescimento das despesas públicas à inflação do ano anterior.
O problema para aceitar essa solução são as outras imposições da PEC do Pacto Federativo, cujo escopo pretende a descentralização, desindexação e desvinculação de gastos tanto para a União quanto para os estados e municípios, de modo a abrir maior espaço no Orçamento, o que, na prática, significaria flexibilizar o uso de recursos de outras áreas, inclusive essenciais, como saúde e educação, para cobrir os encargos financeiros.
Sem dizer que a proposta também prevê a extinção de municípios que tenham menos de 5 mil habitantes e possuem arrecadação própria inferior a 10% da receita total. Na prática, se isso prevalecer, os problemas dos municípios extintos vão se agravar e os que incorporarem não será diferente.
Guedes, como todos sabem, não dá ponto sem nó.
Desde que o auxílio emergencial — programa de transferência de renda motivado pelos efeitos econômicos da crise sanitária do coronavírus — se encerrou em 31 de dezembro, quando foi destinado R$ 600 mensais para trabalhadores informais e desempregados, de abril a agosto, e, depois, R$ 300, de setembro a dezembro, a pressão cresce na sociedade e nos meios políticos para solução do impasse.
Segundo o próprio IBGE, dos 69 milhões de brasileiros que receberam o auxílio, pelo menos 1/3 desses, ou seja, entre 20 e 25 milhões, ficaram sem nenhuma renda a partir de janeiro, precisamente no momento em que a crise sanitária se acentuou, enquanto na outra ponta os empregos prometidos pela falácia governamental não apareceram, como também os chamados “bicos”, represados pela estagnação econômica.
Instituída a cláusula de calamidade, o governo ficaria desobrigado de cumprir a regra fiscal e não precisaria mais desse aval dos parlamentares.
No entanto, se a PEC for aprovada da forma como foi encaminhada pelo governo, estaríamos diante de uma solução parcial para o auxílio emergencial, posto que será limitado em valor e extensão, mas, por outro lado, o custo continuaria alto, pois o governo, segundo o próprio Funchal, mesmo com a cláusula de calamidade, ainda precisaria cumprir a meta fiscal, que prevê déficit de até R$ 247,1 bilhões para 2021, segundo a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias).
A questão é: de onde vai sair esse recurso?
A proposta acarreta maior rigidez e vedações para o crescimento do gasto de pessoal, bem como inclui novas medidas de ajuste que devem ser implementadas pelos gestores públicos para reverter a trajetória de acréscimo dos gastos e/ou pelo descumprimento do limite constitucional.
Em bom português, isso significa incluir novos engessamentos além dos fixados na lei do teto de gastos.
As medidas impostas pelo Pacto Federativo de Guedes são muito claras:
1) o saldo financeiro dos recursos do duodécimo deve ser restituído ao caixa único do Tesouro do ente federado, ou terá o valor deduzido das parcelas duodecimais do exercício seguinte, recursos que, invariavelmente, são utilizados na administração dos passivos financeiros;
2) os entes federados, para atingir as metas definidas pela nova lei, poderão reduzir em até 25% da jornada de trabalho e dos salários de servidores públicos federais, estaduais e municipais, o que é notoriamente inconstitucional;
3) os Poderes Legislativos e Judiciário, bem como o Ministério Público, por ato próprio, ficam obrigados à limitação de empenho ou contingenciamento de despesas;
4) a receita pública não poderá ser vinculada a órgão, fundo ou despesa, exceto as taxas, doações, FPM, FPE e vinculações constitucionais, o que significa eliminar as vinculações que asseguram, hoje, a implementação de importantes políticas públicas de educação, saúde, ações sociais, etc;
5) ficam extintas as garantias da União para operações de crédito de estados, Distrito Federal e municípios, o que reduz a capacidade de endividamento dos entes subnacionais.
O pretexto apresentado pelo governo é o de permitir a desobrigação, desindexação e desvinculação do orçamento público, visando maior margem para as decisões de investimentos e políticas públicas, no entanto, na prática, os recursos mobilizados por esses mecanismos terão como destino o pagamento de passivos financeiros, ao que o setor rentista agradece penhoradamente.
Sob um quadro de redução brutal da renda e do consumo, das famílias e dos governos, com inevitáveis e gritantes reflexos nas arrecadações em todos os níveis, os investimentos e as políticas públicas continuarão deprimidas e sem condições de vitaminar as economias nacional, regionais e locais.
A lógica de Guedes e de seus pupilos é e sempre será a do rentismo.
Estamos diante de um ministro da Economia que não sabe raciocinar fora dessa lógica, a não ser quando se trata de utilizar artimanhas para se beneficiar com a administração de fundos de pensão, sua especialidade, hoje sob investigação dos auditores de contas da União.
Alguns especialistas concluíram que o novo Pacto Federativo proposto por Guedes desiquilibra mais do que equilibra a relação entre União, estados e municípios.
Pela proposta, a política de concentração dos recursos nos cofres do Tesouro Nacional é da ordem de 54% da receita tributária disponível, enquanto os estados serão aquinhoados com 24% e os municípios com a fatia menor de 18%.
Uma inversão flagrante das prioridades, considerando que as carências sociais e econômicas se concentram, fundamentalmente, nos estados e municípios, a partir dos quais a parcela mais expressiva da arrecadação é gerada.
Além disso, a vinculação da distribuição dos royalties do petróleo aos resultados fiscais alcançados pelos estados e municípios é um condicionante que, inexoravelmente, favorecerá ainda mais a concentração dos recursos provenientes dessa atividade nos cofres da União, gerando prejuízo abismal aos entes subnacionais produtores. Trata-se de outra manifesta violação da Constituição.
A PEC 188/19 integra um plano maior, chamado cinicamente de “Mais Brasil”. Outras duas propostas de emenda constitucional compõem o plano: a PEC da Revisão dos Fundos (PEC 187/19) — que propõe a extinção de todos os fundos infraconstitucionais para “desamarrar” o dinheiro destinado a esse; e a chamada “PEC Emergencial” (PEC 186/19), que traz ajuste fiscal gradual, com contenção do crescimento das despesas obrigatórias para todos os níveis de governo.
Como vemos, a proposta do secretário Funchal, a serviço de Guedes, é utilizar o auxílio emergencial, reclamado ardentemente pela sociedade brasileira, como uma espécie de “jabuti” a induzir a aprovação da PEC do Pacto Federativo.
Dessa forma, Guedes, como sempre, dá com uma mão e tira com a outra, como é de seu estilo.
Aliás, o ministro revelou despudoradamente sua esperteza naquela fatídica reunião com Bolsonaro e demais colegas de ministério quando insinuou um abraço falso nos servidores públicos enquanto colocaria uma “granada” no seu bolso.
Faz de conta que está atendendo aos brasileiros que hoje se encontram sem renda e sem emprego, com a retomada do auxílio emergencial, mas tira de outros tantos por meio das medidas fiscalistas contidas num pacto que desiquilibra, ainda mais, o princípio federativo inscrito na Constituição Federal.
Medidas como uma reforma tributária progressiva, taxação dos lucros dos bancos, pornográficos, como diria Brizola, e dividendos e transferências de transnacionais para o exterior; elevação do valor real do salário-mínimo e da renda do trabalhador como impulsionadores do consumo; ou, ainda, a implementação de política ousada de compras governamentais para impulsionar cadeias produtivas nacionais, nada disso passa pela cabeça rasa de Guedes e cia.
O auxílio emergencial, que poderá tirar do desalento milhões de famílias das quais foi usurpado, desde janeiro, o direito ao alimento e outras necessidades essenciais, foi reduzido à condição de “jabuti” para aprovar o arrocho pretendido contra estados e municípios, com todas suas consequências, quando há alternativa, mais rápida e segura, já adotada em 2020: a decretação, por mais uma período, do Estado de Calamidade, que dá ao governo as mesmas armas da pretendida cláusula de calamidade, sem as restrições da regra de ouro e do teto de gastos e sem a necessidade de guilhotinar e aprisionar entes subnacionais (estados e municípios) hoje já gravemente combalidos em suas economias.
(*) Prevista na Constituição é um mecanismo que proíbe o governo de fazer dívidas para pagar despesas correntes, como salários, benefícios de aposentadoria, contas de luz e outros custeios da máquina pública.