Cúmplice dos EUA na ocupação do Afeganistão, Austrália admite alguns dos seus crimes de guerra

Depois de quatro anos de protelação, o governo australiano reconheceu que tropas especiais que enviou como coadjuvantes da ocupação de 19 anos dos EUA no Afeganistão cometeu crimes de guerra em 23 episódios, que resultaram no assassinato de 39 civis. Além de assassinatos, ocorreram também tortura em profusão, maus tratos e outras violações do direito internacional. 25 soldados australianos foram indiciados.

O major general que investigou os crimes, já denunciados na imprensa, Paul Brereton, descreveu as ações das tropas especiais como “vergonhosas” e uma “traição profunda” à força de Defesa australiana, retomando a desculpa rotineira das “maçãs podres” agindo à revelia do comando.

No relatório preliminar, de quatro anos atrás, há comparações com My Lay, na Guerra do Vietnã, e a Abu Graib, na Guerra do Iraque. Durante muito tempo, sucessivos governos australianos classificaram como “propaganda do Talibã” as denúncias feitas por ativistas de direitos humanos e anti-guerra. Apesar da admissão oficial, o teor das investigações foi mantido em sigilo.

Significativamente, os crimes mais hediondos ocorreram por volta de 2012, quando o governo Obama desencadeou a “escalada”, na tentativa de mudar o fracasso norte-americano na ocupação do Afeganistão.

Nenhuma das mortes ocorreu no calor da batalha e todas se enquadram na tipificação de crime de guerra de homicídio. Todas as vítimas eram não-combatentes ou já não eram combatentes.

O ponto de partida foi um estudo da socióloga militar Samantha Crompvoets sobre o comportamento das tropas especiais, feito em 2016, quando já se tornara impossível manter o encobrimento dos crimes de guerra.

Em um dos testemunhos colhidos por ela, “dois meninos de 14 anos tiveram suas gargantas cortadas” depois de terem sido parados e considerados pelos facínoras australianos de farda como ‘simpatizantes dos talibãs’. Os corpos foram em seguida “ensacados e jogados num rio próximo”.

Outro caso escabroso foi relatado pelo portal da Australian Broadcasting Corporation (a ‘BBC’ australiana) no início do mês, quando os soldados australianos, por supostamente não terem espaço para um prisioneiro em seu helicóptero, o mataram e jogaram o corpo fora. Ainda segundo a ABC, os australianos tinham reputação de crimes de guerra e atos ilegais entre seus “parceiros de coalizão” norte-americanos e britânicos.

Trechos do relatório Crompvoets registraram como os autores em um grande número de caos “se vangloriavam dos assassinatos ilegais” e revelaram a prevalência de “sede de sangue”, bem como de uma “pressão para se conformar” com essa “cultura” de ataques violentos contra civis afegãos.

Soldados iniciantes das forças especiais eram instruídos pelos seus superiores hierárquicos para assassinarem afegãos detidos, para que experimentassem o seu “primeiro assassinato”.

Execuções extrajudiciais eram maquiadas com a colocação de uma arma ou rádio junto ao cadáver de um civil ou prisioneiro assassinado, antes de ser fotografado, para possibilitar alegar ação em autodefesa ou morte em tiroteio.

Testemunhas confirmaram que pessoas foram frequentemente baleadas pelas costas apenas por terem se assustado e corrido, sob o pretexto de que estariam “correndo para um esconderijo de armas”.

O relatório Brereton afirma, ainda, com base em Crompvoets, que muitas vezes a maquiagem do assassinato era feita adicionando o nome à Lista de Alvos Prioritária do comando norte-americano (JPEL), cuja existência havia sido denunciada pelo WikiLeaks em 2010.

Nas palavras dela, “um grande número de assassinatos ilegais” tinha sido “engendrado ao contrário”. A questão que essa declaração implica é que o comando norte-americano era cúmplice em algum grau.

Ainda segundo o relatório, as regras de combate do exército eram interpretadas de tal forma que qualquer atrocidade sempre podia ser justificada. Os encobrimentos eram a norma, bem como a intimidação de potenciais denunciantes.

Alertas feitos por um intérprete afegão de que as forças especiais australianas estavam executando camponeses “nunca foram verificados”. Um soldado disse a Crompvoets que se tornara “um camaleão”. “Eu sabia o que precisava fazer para sobreviver”, acrescentou, depois de comentar que “que todos sabemos o que acontece com eles [os denunciantes]”.

Sobre os crimes de guerra, alguém comentou, como registrado no relatório, sobre a tropa especial e seus comandantes: “se eles não fizeram isso, eles viram. E se eles não viram, eles sabiam. Se eles sabiam, provavelmente estavam envolvidos em encobri-lo”. Foi dito repetidamente a Crompvoets que “todos sabem quem são os culpados”.

Com a derrota norte-americana diante dos talibãs prestes a seguir seu curso – e a retirada -, é hora dos cúmplices da ocupação cometida pelos EUA buscarem lavar as mãos e essa é provavelmente a razão pelo relatório só ter saído agora. Por azar, diga-se, no momento em que se comemora (aos menos alguns comemoram) os 75 anos do Tribunal de Nuremberg.

Assim, e sem serem levados ao Tribunal Penal Internacional, fizeram questão de expressar seus “pedidos de desculpas” e de apresentar “condolências às famílias das vítimas” o atual primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, bem como o ex-primeiro-ministro Kevin Rudd, além do representante da coroa britânica, o governador-geral David Hurley.

“Neste contexto, algumas patrulhas agiram fora dos parâmetros da lei. Regras foram quebradas, histórias inventadas, mentiras, e prisioneiros foram mortos”, encenou o atual comandante das tropas australianas, Angus Campbell, em mensagem ao “povo do Afeganistão”, depois de anunciar “um pedido de desculpas sincero e sem reservas pelos erros cometidos pelos soldados australianos”.