Augusto Buonicore: O anti-feminismo na história
Foi entre os povos gregos, particularmente entre os atenienses, que a opressão da mulher adquiriu sua forma mais acabada. Nestas sociedades, mesmo a situação das mulheres das classes dominantes pouco se diferenciavam das dos seus escravos domésticos, pois ambos eram desprovidos de qualquer tipo de direito. Os próprios filósofos gregos tinham clareza desta situação. Platão afirmou: “Se a natureza não tivesse criado as mulheres e os escravos, teria dado ao tear a propriedade de fiar sozinho”.
Por Augusto Buonicore*
Os espaços sociais dos homens e mulheres eram bem delimitados. Sócrates assim os definiu: “Aos homens a política, às mulheres a casa”, sendo a política a função mais nobre de uma sociedade civilizada como a grega. Xenofonte recomendava que a mulher “vivesse sob uma estreita vigilância, visse o menos número de coisas possível, ouvisse o menor número de coisas possível e fizesse o menor número de perguntas possível”. Estas idéias anti-femininas persistiriam por séculos.
Sobre a mulher ateniense escreveu Engels: “as moças aprendiam apenas a fiar, a tecer, costurar (…). Viviam como que enclausurada, não possuindo relação com outras mulheres. O gineceu era uma parte distinta da casa, no pavimento superior, ou atrás (…) para onde elas se retiravam quando havia visitas masculinas (…). Em casa eram formalmente vigiadas (…) fora da tarefa de procriar, elas não eram mais do que a serva principal”.
Outro socialista, Augusto Bebel, completaria o quadro da tenebrosa situação que vivia aquelas mulheres de Atenas: “A mulher comparte o leito com o homem, mas não a mesa; não se dirige a ele pelo seu nome, senão chamando-o de senhor, é sua criada. Nunca podia aparecer em público; pelas ruas ia sempre coberta com um véu (…). Se cometia adultério tinha que pagar, segundo a lei de Solon, com sua vida ou com sua liberdade. O homem podia vendê-la como escrava”.
A situação destas mulheres foi soberbamente descrita na música de Chico Buarque e Augusto Boal intitulada Mulheres de Atenas.
Diante disso as mulheres preferiam se prostituir a viver na “escravidão do matrimônio”. Escreveu Engels: “Foi precisamente sobre a base da prostituição que se desenvolveram as únicas personalidades femininas gregas que, pelo estilo e gosto artístico, são tão superiores ao nível geral do mundo feminino antigo”. Eram as chamadas hetairas.
Demóstenes, orador grego, afirmou: “Nos casamos com a mulher para ter filhos legítimos e uma guardiã fiel de nossas casas” e temos “as hetairas para gozar do amor”. Por isso concluiu Bebel: “A esposa não era mais que um aparelho de parir filhos e um cão fiel que vigiava a casa”. Para os gregos da antiguidade matrimônio e amor não eram uma boa combinação.
Um outro orador assim se manifestou em relação a compra de novas prostitutas pela cidade-Estado de Atenas: “Louvado sejas Sólon! Pois comprastes mulheres públicas para o bem da cidade, para o bem dos costumes de uma cidade cheia de homens jovens e fortes que, sem tua sabia instituição, se entregariam a condenáveis perseguições das mulheres honradas”. A mesma argumentação seria utilizadas por políticos e ideólogos das classes dominantes ao longo dos séculos. A prostituição e a família se completavam na sagrada missão de garantir a perpetuação da boa sociedade.
O cristianismo e as mulheres
Os judeus dos tempos bíblicos já viviam em sociedades patriarcais, nas quais a monogamia exclusivamente feminina imperava soberana. Entre eles a poligamia era aceita apenas para os homens, especialmente os poderosos. Prova disso é o caso de Sara que teve que “oferecer” sua escrava Agar para Abraão. Raquel, por sua vez, deu a Jacó sua escrava Bilha. O objetivo era manter a descendência ameaçada pela suposta esterilidade das esposas. Mas, a poligamia não se aplicaria apenas neste caso, pois se conta que o rei Salomão tinha 700 mulheres e 300 concubinas.
A mulher judia carecia de quaisquer direitos e era comprada e vendida pela própria família. O casamento era um comércio como outro qualquer. Escreveu Bebel: “Se na noite de núpcias o homem acreditasse que a mulher havia perdido sua virgindade, tinha o direito não só de repudiá-la, mas também deveria ser apedrejada. Este castigo também caberia a adultera”. Os adúlteros, é claro, estavam imunes deste tipo de humilhação.
O cristianismo, conforme se expandiu e se tornou religião de Estado, foi aprofundando o anti-feminismo das culturas judaica e greco-romana. São Paulo predicou: “Que a mulher aprenda em silêncio com toda sujeição. Porque não permito a mulher ensinar, nem exercer domínio sobre o homem, senão estar em silêncio”. Em outra passagem diria aos homens “Que vossas mulheres calem nas congregações; por que não lhe é permitido falar (…) E se quiserem aprender algo, perguntem em casa aos seus maridos”.
Na lógica desse cristianismo misógino, que ganhou corpo na Idade Média, a mulher era impura e sedutora. Foi ela que, segundo a Bíblia, havia trazido o pecado ao mundo e arruinado a felicidade humana. A lenda de Adão e Eva sintetizava bem esta visão anti-feminina. Tertuliano exclamava: “Mulher! (…) foi tu que arruinaste o gênero humano. Mulher! Tu és a porta do inferno!”.
São Thomas de Aquino não ficou para trás ao afirmar que “a mulher era uma erva má” e que “nasceram para estar sujeitas, eternamente, ao julgo de seu dono e senhor, a quem a natureza destinou o senhorio pela superioridade que há dado ao homem em todos os aspectos”. Santo Agostinho escreveu: “Faz parte da ordem natural, entre os humanos, que as mulheres sejam submissas aos homens (…) Porque, por uma questão de justiça, a razão mais fraca deve submeter-se a mais forte”.
Segundo Roger Garaudy “a Igreja moldou-se, depois de Constantino, no século IV, na forma das estruturas imperiais romanas, que haviam martirizado seu fundador e que se opunham diretamente ao seu espírito, a exclusão da mulher tornou-se cada vez mais acentuada: progressiva obrigação do celibato dos padres e desconfiança sistemática diante da mulher, assimilada, num dualismo platônico, à matéria por oposição ao espírito, em suma, identificada com o pecado”.
O ódio contra as mulheres chegou ao auge nos grandes movimentos de perseguições às bruxas, que ocorreram no final Idade Média e tiveram uma roupagem religiosa – católica ou protestante. Centenas de milhares de mulheres foram presas, torturadas e assassinadas brutalmente na Europa e, depois, no Novo Mundo. O simples fato de serem mulheres que se destacavam nas suas comunidades pesou muito sobre o seu trágico destino.
Relacionando a bruxaria e a fisiologia da mulher, escreveu, em 1583, o inquisidor Leonard de Vair: “Mensalmente elas se enchem de elementos supérfluos e o sangue faz exalar vapores que se elevam e passam pela boca, pelas narinas e outros condutos do corpo, lançando feitiços sobre tudo que elas encontram”. A figura feminina era associada ao diabo e à bruxaria.
Em 1515 a cidade de Genebra queimou mais de 500 mulheres acusadas de bruxaria. No bispado de Bamberg foram queimadas 500 de uma única vez e no de Wurtzburgo, 900. Os dois últimos localizados na atual Alemanha. Muitas morreram, simplesmente, por defenderem os seus direitos seculares de exercer atividades de parteiras e curandeiras. A “caça as bruxas” foi na verdade uma “guerra santa” contra as próprias mulheres.
O avanço burguês, entre os séculos XIV e XVIII, refletiu negativamente na situação das mulheres. Elas foram oficialmente excluídas de várias profissões, como a medicina e advocacia, e também das universidades. No século XIV foi proibida a sucessão feminina nos tronos. Em 1593 o Parlamento de Paris proibiu as mulheres de exercer funções públicas. O discurso religioso foi sendo completado pelo discurso pseudocientífico dos médicos e filósofos.
Os liberais e a igualdade da mulher
Os direitos políticos das mulheres constituem, atualmente, uma condição de qualquer democracia moderna – burguesa ou socialista. Hoje nenhum país que recusasse o direito de voto às mulheres poderia ser considerado democrático. Mas, esta é uma situação relativamente nova – nascida no século XX – e conquistada depois de muitas lutas.
Entre os pensadores iluministas foi Condorcet um dos poucos a abraçar a causa da emancipação política das mulheres. Em 1791 escreveu o solitário “Ensaio sobre a admissão das mulheres na cidade”. Era uma exceção à regra, pois o nascente mundo intelectual liberal-burguês não via com bons olhos a proposta de participação política do sexo feminino.
Os revolucionários norte-americanos que elaboraram a famosa “Declaração da Independência” tinham claro sua posição de superioridade sobre as mulheres e pretendiam conservá-la a qualquer preço. Diante da reivindicação de direitos para mulheres feita por sua própria esposa, o líder independentista John Quincy Adams afirmou: “Estejam certas, nós somos suficientemente lúcidos para não abrir mão do nosso sistema masculino”. A jovem república norte-americana havia sido criada para o gozo exclusivo dos homens proprietários e de pele branca.
Na revolução francesa, iniciada em 1789, se repetiria o mesmo fenômeno. A “Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos” pretendia realizar o que efetivamente prometia: “garantir os direitos dos homens” e não os direitos “de homens e mulheres”. Os homens ali não eram entendidos, como viria a ser interpretado mais tarde, como “gênero humano” e sim como membros do sexo masculino.
O principal filósofo democrático do século XVIII, e que inspirou a ala radical da Revolução Francesa, foi Jean-Jacques Rousseau. Mesmo para ele ao homem deveria caber o mundo da política (e do trabalho produtivo) e à mulher o restrito espaço do lar. O seu livro Emílio ou Da educação, especialmente o capítulo “A idade da sabedoria e do casamento”, é paradigmático neste sentido.
Segundo ele, a mulher teria sido criada pela natureza para agradar ao homem e para ser subjugada por ele, pois um era “ativo e forte” e o outro “passivo e fraco”. O seu destino era o casamento e a maternidade. Por isso: “a rigidez dos deveres relativos a ambos os sexo não pode se a mesma. Quando a mulher se queixa a esse respeito da injusta desigualdade que o homem institui, ela está errada; tal desigualdade não é uma instituição humana, ou pelo menos não é obra do preconceito, mas da razão”.
Já em 1789, após a queda da Bastilha, uma comissão de mulheres levou um manifesto à Assembléia Nacional no qual afirmavam: “Destruístes os preconceitos do passado, mas permitistes que se mantivesse o mais antigo, que exclui dos cargos, das dignidades das honrarias e, sobretudo, de sentar-se entre vós, a metade dos habitantes do reino (…) Destruístes o cetro do despotismo (…) e todos os dias permitis que treze milhões de escravas suportem as cadeias de treze milhões de déspotas”. As mulheres começavam lentamente a se rebelar contra a opressão milenar que pesava sobre elas.
A situação em que foram colocadas as mulheres depois da revolução fez com que Olympe de Gouges publicasse, em 1791, a sua “Declaração dos direitos da mulher e da cidadã” – uma resposta feminina aos limites da revolução francesa que, como a inglesa e norte-americana, não garantiu às mulheres o direito ao voto, ao acesso às funções públicas e nem mesmo o direito pleno à propriedade. As revoluções em curso mais do que burguesas, eram masculinas.
“As mães, as filhas, as irmãs, representantes da nação, reivindicam constituir-se em Assembléia Nacional”, assim se iniciava a “Declaração dos direitos da mulher”, que no seu 10º artigo afirmava se “a mulher tem o direito de subir ao cadafalso, também lhe deve ser dado o direito de subir à tribuna”.
Gouges subiu ao cadafalso e foi guilhotinada em novembro de 1793. Escreveu o jornal Le Moniteur: “Ela desejou ser um homem de Estado, e parece que a lei puniu esta conspiradora por ter esquecido as virtudes que convêm ao seu sexo.” A sua morte, no entanto, se deve mais a razões de ordem política imediata. Ela havia defendido teses que iam contra o poder revolucionário, dirigido pelos jacobinos. Por exemplo, advogou a necessidade de um plebiscito para que os franceses decidissem se desejavam a República ou a Monarquia. Posicionou-se contra a pena de morte, mesmo para a família real, e ficou ao lado dos girondinos que começavam a ser proscritos. Mulher de língua ferina chamou Robespierre de “animal anfíbio” e Marat de “aborto da humanidade”.
O terror revolucionário recrudesceu após o assassinato de Marat, um dos mais populares propagandistas revolucionários. A sua assassina foi justamente uma mulher, a jovem girondina Charlotte Corday. O ódio contra as mulheres girondinas tomou conta das massas populares. A feminista Théroigne de Méricourt foi atacada na rua – despida e apedrejada – e acabou enlouquecendo e, anos depois, morreu esquecida num asilo de alienados.
Logo após a execução de Olympe de Gouges todos os clubes políticos femininos foram fechados. O revolucionário Chaumette ao propor a lei que proibia os clubes afirmou: “A Natureza disse à mulher: seja mulher! Os ternos cuidados para com a infância, as doces inquietudes da maternidade, eis ai teu trabalho”. Assim, a revolução popular minava as suas próprias bases sociais.
Robespierre e os jacobinos foram derrubados em 1794. Ao terror vermelho seguiu-se o terror branco. O líder jacobino e cerca de cem de seus seguidores foram imediatamente degolados sem julgamento. As mulheres francesas, rapidamente, sentiriam este revés da revolução.
Em 1795 um decreto determinou que: “todas as mulheres se retirarão, até ordem contrária, a seus respectivos domicílios. Aquelas que, uma hora após a publicação do presente decreto, estiver nas ruas agrupadas em número maior que cinco, serão dispersas por força das armas e presas até que a tranqüilidade pública retorne à Paris.” A nova Convenção anti-jacobina proibiu as mulheres de assistir suas reuniões, a menos que estivessem acompanhadas de um homem.
A consolidação da derrota das mulheres se deu com a aprovação dos Códigos Civil e Penal, aprovados respectivamente em 1804 e 1808, já sob o governo de Napoleão Bonaparte. Neles se restabelecia o princípio de que “a mulher deve obediência ao homem”. O marido passava a ter legalmente, entre outras coisas, o direito de exigir que os Correios entregassem a ele todas as cartas endereçadas a esposa, de dispor livremente do seu salário – muitos receberiam os salários pelas esposas. Para tudo a mulher necessitava da autorização do pai ou do marido.
Segundo o “código napoleônico” a mulher adultera poderia ser condenada de três meses até dois anos de prisão. O adultero, pelo contrário, deveria pagar apenas uma pequena multa. Um dos seus redatores justificou tal disparidade: “A infidelidade da mulher supõe mais corrupção e tem o efeito mais perigoso que aquela do marido” e Engels, por sua vez, ridicularizou o artigo do código que decretava solenemente que “a criança concebida durante o casamento terá por pai sempre o marido” e concluiu irônico: “Eis aí o último resultado de três mil anos de monogamia.”
Seriam precisos ainda mais de 100 anos de lutas encarniçadas para que as mulheres pudessem, finalmente, usufruir de direitos políticos e civis iguais aos homens. É isso que começaremos tratar no próximo artigo.
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