Simone Barreto Silva, radicada na França desde 1990, foi esfaqueada dentro da Igreja em Nice

ataqOs sinos de todas as igrejas da França soaram em homenagem às três vítimas da insana chacina da manhã de quinta-feira na Basílica de Notre Dame, em Nice: a brasileira “nota mil” radicada na França há 30 anos, Simone Barreto Silva; o sacristão boa praça que completaria 55 anos na sexta-feira, Vincent Loquès; e uma sexagenária cuja identidade não foi divulgada.

No local, pessoas vêm para colocar flores, acender velas e prestar uma homenagem silenciosa. Um dos buquês diz: “Nice ainda está de pé. Descansem em paz.”

O dono do restaurante onde Simone procurou socorro, o muçulmano Brahim Jelloule, estava perplexo com o ataque à Basílica: “Isso não é o Islã. Eu conheço o Corão de cor, e não é isso que ele prega”. Foi ele que, alertado por Simone, acionou a polícia. Antes de morrer, a brasileira pediu: “digam a meus filhos que eu amo eles”.

A comunidade brasileira de Nice está em estado de choque. Natural de Salvador, Simone foi para a França adolescente junto com a irmã Bárbara, como integrante de uma companhia de dança, a Oba Brasil, que promove apresentações na Europa de samba, batucada e capoeira.

Outros familiares também foram para lá depois, uma foi trazendo a outra. Obteve a cidadania francesa, se formou em gastronomia e aos 44 anos era cuidadora de idosos. Tinha três filhos, um de 6, um de 10 e outro de 15.

Todos os anos, Simone dançava na Ala das Mulheres no evento cultural brasileiro Resistência da Lavagem da Madeleine, em Paris. Em Nice, Simone e sua família organizavam a Festa de Iemanjá da cidade.

Simone será enterrada na França, onde vivem os filhos e boa parte de sua família. Loquès, que havia trabalhado na construção civil, era sacristão há 20 anos, dez deles na Notre Dame. Era o faz-tudo, disse o ex-pároco, Jean-Louis Gordian. “Ele era um menino corajoso, cheio de dinamismo”, acrescentou. Louquès havia se casado novamente. Tinha duas filhas adultas com sua primeira esposa, uma enfermeira e a outra trabalhadora de puericultura. Da idosa, só se sabe que deixa filhos adultos e era casada. Ela teve a cabeça quase decapitada, e tombou do lado da pia batismal.

PESADELO

O novo ataque é um pesadelo para Nice que, em 2016, fora alvo de atentado durante o Dia da Bastilha, com um extremista lançando um caminhão contra uma multidão, atropelando centenas de pessoas e matando 86.

O autor do atentado foi baleado e preso pela polícia e está em estado grave. Ele foi identificado como o tunisiano Brahim Aouissaoui, de 21 anos, que cruzara o Mediterrâneo em um barco de refugiados, chegara em 20 de setembro à Ilha de Lampedusa (Itália), onde ficara de quarentena por causa da Covid, entrara no continente, em Bari, em 9 de outubro e sumira do mapa, reaparecendo em Nice na véspera do ataque. A família achava que ele tinha ido em busca de trabalho.

O governo brasileiro lamentou a morte trágica de Simone e expressou solidariedade à França, enquanto o consulado anunciou que está prestando toda a ajuda. Também o governador da Bahia, Rui Costa, e o prefeito de Salvador, ACM Neto, manifestaram seus pêsames aos familiares de Simone.

A Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (Fambras), em nota, repudiou os ataques e expressou sua solidariedade às famílias das vítimas. Como salientou o vice-presidente da entidade em entrevista ao Sputnik Brasil, Ali Houssein El-Zoghbi, “Quero deixar claro que essa ação não pode ser considerada islâmica. É muito importante que a mídia retrate isso de maneira clara e precisa. Estamos falando de uma população de quase um quarto dos habitantes da Terra. E o islã preconiza a preservação da vida. Isso precisa ficar claro”.

O Islã – enfatizou – preconiza que “quem mata uma pessoa inocente, é como se tivesse matado toda humanidade”. “Isso precisa ficar evidenciado para que não se acuse o Islã e muçulmanos em razão da ação de alguns que seguem a religião de maneira equivocada”.

El-Zoghbi manifestou, ainda, a preocupação sobre a falta de uma legislação que coíba ataques aos ícones religiosos. “Achamos inadequado e desproporcional que ícones religiosos sejam atacados. O respeitar ao próximo, assim como o exercício da liberdade, estabelece que tenhamos bom senso”. Isso, porém, – ressaltou – “não justifica a mínima violência contra o ser humano”, mas é um ponto “carente de discussão”.

Questão que, em meio a enormes manifestações em países de fé muçulmana em repúdio a charges obscenas que ‘retratam’ o Profeta Maomé, também preocupa religiosos cristãos. O arcebispo de Toulouse, monsenhor Le Gall, disse ao France Bleu, que “a religião não pode ser ridicularizada impunemente”: “veja o resultado que dá”. A declaração foi feita no dia seguinte ao ataque em Nice.

FRATERNIDADE

“Essas questões de charges, eu as acho perigosas, porque colocamos lenha na fogueira. Tudo isso deve ser apaziguado. Porque essas charges são contra os muçulmanos, mas também contra a fé cristã”, disse o arcebispo Le Gall, respondendo à pergunta de por que as igrejas foram visadas.

Ele disse acreditar “profundamente” que se deve parar de publicar esse tipo de charge. “A liberdade de expressão tem limites, como todas as liberdades humanas.”

A noção de fraternidade é essencial, acrescentou: “a liberdade de estarmos juntos, de falarmos juntos, a liberdade de sermos irmãos, mas não de estarmos com raiva”.

Mesma preocupação manifestada pelo representante da ONU para a Aliança das Civilizações, o ex-ministro das Relações Exteriores espanhol, Miguel Ángel Moratinos, que na quarta-feira fizera um apelo pelo “respeito mútuo por todas as religiões e crenças”.

Na mesma nota, ele advertira que “insultar religiões e símbolos religiosos sagrados provocam ódio e extremismo violento, levando à polarização e fragmentação da sociedade”.

BRAHIM

“A Tunísia condena veementemente o incidente terrorista em Nice e expressa sua solidariedade ao governo e ao povo francês”, afirmou em comunicado seu Ministério das Relações Exteriores.

Sublinhando a sua “rejeição a qualquer forma de terrorismo e extremismo”, a Tunísia alertou contra “a exploração ideológica e política das religiões” e rejeitou “qualquer vínculo [entre religião] e terrorismo”, segundo o texto. O governo tunisiano também anunciou a abertura de uma investigação sobre Aouissaoui.

Na casa da família Aouissaoui em Thina, um subúrbio pobre de Sfax, seus pais e nove irmãos choraram enquanto falavam. Quando as reportagens da televisão mostraram a cena do ataque, eles o reconheceram de sua videochamada.

Ele havia ligado para sua família para dizer que havia deixado a Itália. “Você não é educado. Você não conhece o idioma. Por que você foi aí?”, disse sua mãe, Gamra. “Mãe, ore por mim”, ele respondeu.

Conforme o promotor francês, depois de chegar a Nice por volta da madrugada de quinta-feira, ele passou cerca de uma hora e meia na estação ferroviária, depois calçou sapatos novos e inverteu o casaco. O ataque foi minutos depois.

Em Thina, Aouissaoui trabalhava em uma garagem como frentista e mecânico e andava de moto, contou a família. Cerca de dois anos atrás ele tinha começado a orar frequentemente em casa, segundo seu irmão, depois de abandonar o álcool e as drogas.

“Seu comportamento nunca foi suspeito. Nunca ouvi falar dele lidando com grupos extremistas ou qualquer coisa relacionada ao terrorismo ou extremismo”, relatou o vizinho Achref Fergani.

“Meu irmão é uma pessoa amigável e nunca demonstrou qualquer extremismo”, disse seu irmão mais velho, Yassin. “Ele respeitava a todos e aceitava suas diferenças desde criança”. “Ele disse que estava indo para a França por ser melhor para o trabalho”, acrescentou.

CÍRCULO

Do mundo inteiro chegaram manifestações de apoio ao povo francês e de repúdio ao terrorismo. ONU, o Papa Francisco, Rússia, Grã Bretanha, União Europeia, Alemanha e Itália. Também governos como a Turquia e a Arábia Saudita – apesar de recentes confrontos com o governo Macron, em razão da equiparação feita pelo Palácio Eliseu de charges obscenas e ‘livre expressão’.

“É claro que aqueles que cometeram um ataque tão selvagem a um local sagrado de culto não podem ser inspirados por qualquer valor religioso, humano ou moral”, afirmou Ancara.

O ministro das Relações Exteriores do Irã, Mohammad Zavad Zarif, ao condenar o atentado em Nice, convocou a substituir “o círculo vicioso do discurso de ódio, provocações e violência” pela “razão e sanidade”.

“Devemos reconhecer que o radicalismo apenas gera mais radicalismo e a paz não pode ser alcançada com provocações desagradáveis”, acrescentou.

Em suma, o que Zarif está advertindo é que sem que se leve em consideração os sentimentos religiosos de quase 2 bilhões de crentes islâmicos – o que é incompatível com a insistência em charges ofensivas e gratuitas (além de obscenas e de péssimo gosto) – é difícil que multidões indignadas parem de ir às ruas, como vem se repetindo no Líbano, na Líbia, no Iêmen, no Irã, no Iraque, em Bangladesh, na Índia, no Paquistão, no Afeganistão, na Palestina, em Mali e na Somália, Queimando ou pisando retratos de Macron e convocando a boicotar produtos franceses.

Em Paris, a histeria anti-islâmica vem sendo insuflada de forma grosseira. Um deputado de extrema-direita conclamou à criação de uma “Guantánamo francesa”. A chefona do Rally Nacional, Marine Le Pen, quer sinal verde para a xenofobia e a repressão.

Tentam chamar de islamismo “de esquerda” a qualquer denúncia contra o racismo antiárabe – quando, como se sabe, foram as forças de direita que praticaram o mais deslavado clientelismo com grupos fundamentalistas nos subúrbios pobres, para tirar proveito eleitoral.

Afinal, não era o governo de Paris um dos mestres de marionetes operando na Líbia e na Síria? E essas marionetes não tinham trânsito livre do norte da África e do Oriente Médio para Paris ou Londres?

Analistas observam que, com Macron bastante desgastado tanto pela política de corte de direitos – como na Previdência -, quanto pelo manejo da pandemia e da economia, e eleições marcadas para 2022, o presidente francês resolveu pescar nas mesmas águas em que Le Pen costuma encher seu samburá.

O ministro do Interior, Gerald Damarnin, disse que a França está engajada em uma guerra contra ‘a ideologia islâmica’. Segundo o primeiro-ministro Jean Castels, “a resposta do governo será dura, implacável e imediata”.

Ou seja, além de implementarem uma política racista antimuçulmana e anti-imigrantes, ainda querem aproveitar a oportunidade para dividir a população e assaltar os direitos democráticos.

“De acordo com Sergei Fedorov, do portal RT, Paris “está tentando apagar o fogo com gasolina”.

“Macron repete o tempo todo que é necessário garantir a liberdade de expressão e respeitar todos os sentimentos religiosos, mas não devemos esquecer que existem cerca de 6 milhões de muçulmanos franceses, que têm suas próprias ideias sobre o que deveriam ser as charges. É importante levar em conta as especificidades dessa parcela da sociedade, embora, é claro, não haja justificativa para atos terroristas”, ressaltou.

No fog do ataque de Nice, circulou a notícia de outro ‘ataque islâmico’ em Avignon. Depois veio a público que se tratava de um membro de 33 anos do movimento fascista ‘Generation Identitaire’, vestindo uma camisa ‘Defenda a Europa’, que ameaçou um lojista norte-africano com uma arma e fez uma saudação nazista, assim como outros transeuntes, antes de ser baleado e morto pela polícia. À noite, em Nice, como registrou a Al Jazeera, integrantes do ‘Identitaire’ tomaram ruas berrando “Islã, saia da Europa”.