Assange devia ganhar Nobel da Paz por ser o jornalista mais perseguido
Com a decisão sobre a extradição do jornalista e mais destacado preso de consciência da atualidade, Julian Assange, para os EUA e um calabouço da CIA, marcada agora para o mês de outubro em Londres, o Comitê do Nobel, que se decidiu exatamente por homenagear este ano os jornalistas no mundo inteiro que são perseguidos, optou pelos nomes do russo Dmitry Muratov, editor-chefe do jornal de Mikhail Gorbachev, Novaya Gazeta, e da filipina e ex-CNN, Maria Ressa, para o Prêmio Nobel da Paz.
A ONU saudou a escolha como um “reconhecimento da importância do trabalho dos jornalistas nas circunstâncias mais difíceis”.
“Vimos também um aumento nos ataques a jornalistas durante o bloqueio da Covid”, assinalou a porta-voz de direitos humanos, Ravina Shamdasani.
No mundo inteiro, a premiação suscitou uma discussão sobre a perseguição a jornalistas. O que no Brasil sob Bolsonaro acontece cotidianamente, em coletivas de imprensa ou no cercadinho junto ao Palácio do Planalto.
Tanto Muratov quanto Ressa dividirão o Prêmio Nobel da Paz no valor de 890.000 euros no dia 10 de dezembro, aniversário da morte do fundador dos prêmios, Alfred Nobel.
O Comitê do Nobel assinalou que a premiação foi concedida Muratov e Ressa “por seus esforços para proteger a liberdade de expressão, que é um pré-requisito para a democracia e uma paz duradoura”.
O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, parabenizou Muratov, observando que ele “trabalha sem cessar, seguindo seus ideais”.
O primeiro e último presidente da União Soviética, Gorbachev, chamou a escolha de Muratov de “uma grande adição às nossas fileiras, entre os ganhadores do Nobel. Este prêmio eleva a importância da imprensa no mundo moderno a grandes alturas. Estou certo de que os dois laureados merecem”.
Muratov foi também homenageado pelo secretário-geral da Otan, o norueguês Jens Stoltenberg, que disse que a contribuição dele para manter “a integridade da mídia livre e independente desempenha um papel fundamental na construção de democracias estáveis”.
“Parabéns ao meu amigo Dmitry Muratov, da Novaya Gazeta, por receber o Prêmio Nobel da Paz por contar a verdade às autoridades russas. A liberdade de imprensa é essencial em todos os lugares – e aqui é mais importante do que nunca. Ótimo trabalho, Dmitry”, não se conteve o embaixador dos EUA em Moscou, John Sullivan.
Mais discreto, o presidente Joe Biden, cujo governo se recusou a retirar o pedido de extradição de Assange para os EUA apresentado por Trump – após dez anos de perseguição feroz ao jornalista, equivalente à prisão e tortura segundo altos relatores da ONU -, elogiou o trabalho dos premiados “para expor o abuso de poder”.
Em entrevista à rádio Echo de Moscou, Muratov disse não sentir “culpa” de que fosse ele o premiado e não Alexei Navalny, como esperavam as casas de apostas de Londres, mas asseverou que se fosse do comitê de premiação teria indicado o caçador de marajás (e de ‘baratas do Cáucaso’) russo.
Ele asseverou também ser uma espécie de premiação póstuma à jornalista Anna Politkovskaya, que foi assassinada há 15 anos dentro do elevador de seu prédio. Outros seis jornalistas da Gazeta foram também mortos.
Um resquício dos tempos de faroeste abertos pela perestroika e destruição da União Soviética, com a ascensão das máfias privatistas, assassinatos à luz do dia, na disputa do botim do patrimônio público soviético entre os candidatos a
oligarcas e a testas de ferro dos monopólios estrangeiros, evasão fiscal, levante jihadista, redução da expectativa de vida e brutal empobrecimento da imensa maioria.
Ressa, a outra agraciada, depois de atuar na CNN por 20 anos, encabeça o portal Rappler, que tem sido alvo de intenso escrutínio pelo governo Duterte, por suas denúncias sobre a sangrenta e polêmica ‘guerra às drogas’ do presidente filipino que, conforme organizações de direitos humanos, causou milhares de mortos.
Ela chamou a premiação de “dose de adrenalina” e disse esperar que permita que os jornalistas “façam bem seu trabalho, sem medo”. Ela enfrenta sete processos e responsabiliza o regime Duterte, em final de mandato, por “dividir a sociedade”.
Ressa afirmou que a campanha eleitoral nas Filipinas, que começou este mês, será um momento “crítico” e afirmou que seu país está muito perto de ser “democracia apenas no nome”. Duterte é proibido pela Constituição de concorrer a um segundo mandato. As pesquisas colocam entre os favoritos sua filha Sara – que ainda não formalizou a candidatura – e o filho do ex-ditador Ferdinand Marcos, que leva o nome do pai.
A organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) celebrou o anúncio, “um sinal poderoso, um chamado à ação”. O portal norte-americano Consortium News, fundado pelo jornalista que denunciou o escândalo Irã-Contras, Robert Parry, e que tem sido muito atuante no apoio a Assange contra a extradição para os EUA, não parecia tão entusiasmado.
Como assinalou o articulista David Swanson, o propósito original do prêmio era destacar “a pessoa que fez mais ou melhor para promover a comunhão entre as nações, a abolição ou redução dos exércitos permanentes e o estabelecimento e promoção de congressos de paz.”
Na realidade – apontou -, o Prêmio Nobel da Paz em geral se transformou em um prêmio “por coisas boas aleatórias que não ofendam uma cultura dedicada à guerra sem fim”.
O prêmio também é usado com frequência para denunciar violações dos direitos humanos em nações não ocidentais, alvo da contrapropaganda de nações ocidentais. O que leva a que meios de comunicação ocidentais especulem todos os anos quem será, entre os favoritos da ‘casa’, o beneficiado.
Para Swanson, os verdadeiros destinatários este ano são “a Rússia e as Filipinas, sendo a Rússia o principal alvo dos preparativos de guerra dos EUA e da OTAN, incluindo a principal desculpa para a construção de novas bases militares na Noruega”.
“Num momento em que o maior traficante de armas do mundo, o mais freqüente desencadeador de guerras, o recordista mundial de bases no exterior, o maior inimigo do Tribunal Penal Internacional e do Estado de Direito nas relações internacionais, e apoiador de governos opressores – o governo dos EUA – está alardeando uma divisão entre as chamadas democracias e não democracias, o Comitê do Nobel optou por lançar gasolina neste fogo”, alertou Swanson.
“Desde o seu início em 1993, a Novaya Gazeta publicou artigos críticos sobre assuntos que vão desde corrupção, violência policial, prisões ilegais, fraude eleitoral e ‘fábricas de trolls’ até o uso de forças militares russas dentro e fora da Rússia. Os oponentes da Novaya Gazeta responderam com assédio, ameaças, violência e assassinato”, segundo o Comitê.
Por esse critério, não havia mesmo como incluir Assange. Afinal, ele denunciou os crimes de guerra dos Estados Unidos no Iraque e Afeganistão, divulgou o vídeo do Pentágono de massacre de jornalistas e civis em Bagdá por um helicóptero Apache, mostrou a tortura de Guantánamo, expôs a corrupção e golpismo do Departamento de Estado e trouxe à tona os métodos de ‘bandeira trocada’ da guerra cibernética da CIA. Foi ainda com a ajuda dele que o denunciante do grampo geral e irrestrito dos EUA no planeta inteiro da NSA, Edward Snowden, escapou das garras de Washington. Como dizia Hillary Clinton quando secretária de Estado, só poderia ser silenciando com um drone.