Avós de desaparecidos em manifestação das Madres de Plaza de Mayo, Argentina.

A ditadura militar argentina de 1976-1983 se baseou em torturas e desaparecimentos generalizados para erradicar os opositores políticos, reais ou imaginários. Para disfarçar o terror imposto pelo regime militar, a direita ainda se refere àqueles anos como uma “guerra suja”. Mas a única maneira correta de descrever a ditadura é como um período de “terrorismo de Estado”.

Por Constanza Dalla Porta* e Pablo Pryluka**

Nos EUA e em grande parte do mundo, a expressão “guerra suja” tornou-se um rótulo comum para descrever a ditadura na Argentina entre 1976 e 1983. Da Casa Branca à universidade e à imprensa internacional, o termo foi tomado como uma abreviação política para aqueles anos sombrios em que a repressão, o sequestro e todos os tipos de violações dos direitos humanos foram usados pelo Estado para manter o poder.

Mas até que ponto a expressão “guerra suja” é correta? Até que ponto é neutra? Com a implicação de ter dois lados em guerra, cada um atacando o outro com, senão força igual, pelo menos alguma força comparável, a expressão implica uma dinâmica de poder muito diferente daquela que existiu durante os anos da ditadura argentina. Às vezes, usada também para descrever outros regimes violentos no Cone Sul [Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai – nota da redação], a expressão distorce a verdade da história sul-americana de maneira mais ampla, mesmo que alguns possam usá-la ingenuamente.

Compreender a história da expressão “guerra suja” e as posições ideológicas e políticas que a sustentam, ajuda a descartá-la completamente e buscar uma linguagem que descreva mais adequadamente o assassinato de oposicionistas pelo regime militar que tomou o poder, na Argentina, com o golpe de 1976.

Historicamente, não é correto descrever os anos de ditadura na Argentina como uma guerra suja. Não havia dois lados disputando o controle do território, nem havia um exército profissional para rivalizar com as forças do Estado, fossem forças armadas oficiais, a polícia ou as várias formações paramilitares.

A violência política foi certamente a característica da paisagem argentina desde o início dos anos 1970. Antes do golpe de 1976, havia movimentos de guerrilha de esquerda como Montoneros e o Exército Revolucionário do Povo, e organizações paramilitares de direita como a Aliança Anticomunista Argentina. O golpe inaugurou uma nova era de violência sistemática e inconteste que deixou pouco espaço para esses movimentos.

Grupos guerrilheiros de esquerda não tiveram chance de se igualar seriamente ao poder das forças do Estado. A capacidade armada da resistência revolucionária nunca foi capaz de enfrentar com sucesso ou continuamente a violência do Estado, e certamente não usaram táticas repressivas. Como Daniel Feierstein e Eduardo Duhalde demonstraram, a atividade

guerrilheira que caracterizou os anos anteriores à ditadura foi rapidamente esmagada pelas forças do Estado. Alguns meses após o golpe, os líderes das organizações de esquerda estavam mortos, desaparecidos ou exilados. O terror político durou até 1983.

Só se pode entender a expressão “guerra suja” no contexto mais geral da Guerra Fria e a luta dos EUA contra o comunismo de maneira mais ampla. A doutrina de segurança nacional originada nos EUA identificou o que considerava como ameaças internas à segurança enfrentadas em cada país da América Latina. Por meio de programas de treinamento específicos para as forças armadas locais, os militares dos EUA ensinaram técnicas de tortura e contra insurgência destinadas a lutar contra o que era visto como comunismo, para destruir inimigos internos.

Mas a repressão política na América Latina foi muito além desses objetivos declarados. Membros de partidos de esquerda e sindicatos, assim como judeus, homossexuais e muitos outros vistos como em desacordo com a visão católica conservadora foram rotulados de “subversivos” ou mesmo inimigos de guerra – uma designação que sugere erroneamente que esses ativistas políticos seriam guerreiros armados.

Essa retórica de guerra escondeu os objetivos políticos e sociais da junta militar. Adotando um escopo mais amplo, as ditaduras do Cone Sul trabalharam para desmantelar os estados de bem-estar social que haviam sido recentemente construídos e, com ele, esmagar os sindicatos. Quando o neoliberalismo se estabeleceu sob o terror das forças armadas, qualquer vestígio de resistência foi silenciado. Como Federico Lorenz lembra, a tendência foi pensar nos desaparecidos como jovens Che Guevaras. Na realidade, a maioria eram trabalhadores e sindicalistas.

De acordo com a definição mais difundida, durante uma guerra suja, o Estado emprega todos os recursos para lutar contra um inimigo oculto. Não é uma guerra convencional porque não há batalhas abertas – o Estado precisa realizar uma busca minuciosa para encontrar seus inimigos. Importante, os inimigos do Estado estão armados e secretamente ativos; em consequência, sequestros, torturas, estupros e centros de detenção clandestinos são, então, vistos como necessários. As regras da guerra parecem sofrer mudanças quando se trata de erradicar um opositor clandestino.

Foi de acordo com essas regras mutantes que os militares argentinos usaram para defender seu desempenho durante a ditadura. Numa cruzada contra aqueles que pretendiam subverter o estilo de vida católico e tradicional do país, a junta proclamou que lutavam contra um inimigo interno e escorregadio. Como James Brennan mostrou, o uso da expressão “guerra suja” foi favorecido pelos próprios militares nos últimos estágios da ditadura. Foi usado pela primeira vez em uma entrevista coletiva pelo general Reynaldo Bignone, último chefe da junta militar, de 1982 a 1983.

O uso da expressão pela junta militar não foi casual. A expressão “guerra suja” invoca deliberadamente outra campanha de contra insurgência, praticada pelos franceses na Argélia. De fato, muitos militares argentinos haviam sido treinados em táticas de contra insurgência por agentes de inteligência franceses. Ao se referir aos anos da ditadura como uma guerra suja, a junta militar reivindicou vincular sua batalha à dos franceses, buscando assim legitimar-se com o exemplo de seus colegas europeus.

A expressão “guerra suja” foi inventada precisamente por aqueles que cometeram crimes durante a ditadura argentina. Por que tantos o usam hoje sem crítica? É como se falar sobre a “Passagem do Meio” para descrever o comércio transatlântico de escravos.

Em dezembro de 1983, dois meses após a queda da ditadura e a transição para a democracia, o então presidente Raúl Alfonsín criou a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP). Após uma investigação minuciosa, a Comissão publicou o relatório “Nunca Más”, que continha testemunhos de tortura, sequestro, desaparecimento e outras violações de direitos humanos durante a ditadura. Seu prólogo, escrito pelo famoso escritor argentino Ernesto Sábato, afirmou que “durante a década de 1970, a Argentina foi devastada pelo terror da extrema direita e da extrema esquerda”.

Essas palavras abriram as portas para um debate que continua hoje. Muitos acusaram o relatório “Nunca Más” de promover a chamada teoria dos dois demônios, que atribui a responsabilidade pelas violações dos direitos humanos às forças do Estado e aos grupos guerrilheiros. Em 2006, em um esforço para resolver essa deturpação, sob a administração de Néstor Kirchner, esse prólogo foi reescrito em uma nova versão do relatório. Significativamente, na presidência de Mauricio Macri em 2016, o prólogo original foi restaurado.

A expressão “guerra suja” carrega essa bagagem hoje. É profundamente ofensiva para as vítimas e suas famílias que sofreram – muitas das quais ainda estão vivas. Usar essa expressão, conscientemente ou não, significa alinhar-se a uma leitura de direita da história que busca diluir a responsabilidade pela violência da ditadura e justificar as torturas e desaparecimentos generalizados que os militares praticaram.

Como se pode nomear com mais precisão o período que a direita da Argentina designa como “guerra suja”? Estudiosos latino-americanos e lutadores pelos direitos humanos buscam uma expressão melhor, e muitos argumentam que “genocídio” seria mais correto devido à sua ênfase no extermínio de uma parte específica da população. Outros se concentraram nas características precisas dos estados autoritários, propondo termos como “estado paralelo” para destacar o uso ilegal da repressão ou “estado de segurança nacional” para sublinhar suas origens ideológicas.

O conceito de terrorismo de estado pode ser mais adequado devido à ênfase em objetivos e métodos. O termo indica claramente o emprego de práticas ilegais para espalhar o terror entre a população e impor um modelo econômico, social, cultural e político específico. De fato, é esse conceito que a maioria das conversas sobre direitos humanos na Argentina emprega hoje.

Palavras são importantes e expressões como “guerra suja” não podem ser usadas inocentemente. Não houve guerra; houve apenas perseguição, tortura, desaparecimento e extermínio. Não se pode ecoar a linguagem da junta e não se pode reproduzir sua narrativa.

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Constanza Dalla Porta* é estudante de doutorado no departamento de história da Universidade de Princeton.

Pablo Pryluka** é doutorando no departamento de história da Universidade de Princeton.