Draghi cai após endossar sanções dos EUA que provocaram alta da inflação e do desemprego na Itália

O presidente da Itália, Sergio Mattarella, dissolveu o parlamento nesta quinta-feira (21) e antecipou as eleições para 25 de setembro, após a renúncia do primeiro-ministro do país, o banqueiro Mario Draghi, no início do dia, após 18 meses de governo.

Na véspera, sua coalizão de “quase todos” entrara em colapso, quando três dos principais partidos da base, o Movimento 5 Estrelas (M5S), a Forza Itália e a Lega boicotaram um voto de confiança que ele havia convocado em um derradeiro esforço para evitar a antecipação das eleições.

Títulos e ações italianos caíram acentuadamente na quinta-feira, em paralelo à crise política e à primeira alta de juros na zona do euro desde 2011. A Itália é a terceira maior economia da União Europeia. As eleições regulamentares estavam previstas para a primavera de 2023. Assim como a Alemanha, a Itália tem uma enorme dependência do gás russo (40%), embora tenha alternativas mais fáceis de substituição.

A crise política acabou com meses de tensa estabilidade em Roma, durante os quais o ex-banqueiro e então primeiro-ministro jogou um papel chave para submeter a Itália à guerra por procuração dos EUA/Otan contra a Rússia na Ucrânia e às sanções decretadas por Washington. Tradicionalmente, o país tem boas relações com a Rússia, como visto quando do socorro russo aos italianos no auge da pandemia.

O colapso do governo Draghi também expressa a desagregação que a submissão às sanções contra a Rússia vem causando no Velho Continente, desde a renúncia do primeiro-ministro inglês Boris Johnson, passando pela perda, por Emmanuel Macron, da maioria absoluta no parlamento francês, e mais uma série de governos abalroados pelas urnas ou crises, como a Bulgária.

Dada a aura que cercava Draghi de “salvador do euro” com sua “bazuca do BCE”, sua queda indica que governantes menos laureados podem ainda mais facilmente se verem diante de destino igualmente inglório.

Pacote pós pandemia

Na Itália, inclusive, a principal motivação para a “coalizão de quase todos” os partidos com representação no parlamento – e para o nome de Draghi – havia sido o polpudo pacote de ajuda pós-pandemia da União Europeia de 209 bilhões de euros, cuja contrapartida é a aplicação de mais ‘reformas’ ditadas por Bruxelas.

O gatilho para a crise foi a decisão do M5S de se ausentar na semana passada de uma votação no Senado sobre um pacote inicial de ajuda de 23 bilhões de euros, que o partido considerou insuficiente para atender às camadas mais vulneráveis da população, especialmente quanto ao salário mínimo, num quadro de inflação em alta, estreitamente ligada às sanções contra a Rússia e seu petróleo e gás. Seguiu-se o primeiro pedido de renúncia de Draghi, recusado por Mattarella, e a nova tentativa de recomposição, devidamente gorada.

“Tenho um forte medo de que setembro seja uma época em que as famílias terão de pagar a conta de luz ou comprar comida”, advertiu na semana passada o líder do M5S, e ex-primeiro-ministro, Giuseppe Conte, que acusou o governo Draghi de não fazer o suficiente.

Inflação recorde

A inflação italiana bateu em junho o recorde de 36 anos, chegando a 8 %, sendo que, na energia, a alta foi de 48,7% (contra 42,6% no mês anterior), de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatísticas (ISTAT).

Subjacente a esse impasse, há no interior do establishment político italiano divergências quanto a embarcar de mala e cuia nessa senda anti-Rússia, existindo registros de oposição de Conte à entrega de armas ao regime de Kiev.

Ao anunciar a antecipação de eleições, Mattarella disse que o período que a Itália está passando “não permite pausas nas intervenções indispensáveis para contrariar os efeitos da crise econômica e social e, em particular, da subida da inflação, que, provocada acima tudo pelo custo da energia e dos alimentos, traz consequências pesadas para as famílias e empresas”.

Segundo a CNN, a renúncia de Draghi ocorreu “apesar de sua popularidade entre muitos dentro do país e do apoio de líderes mundiais, que o vêem como uma importante voz europeia ao enfrentar o presidente russo Vladimir Putin e sua guerra na Ucrânia”. A renúncia de Draghi – acrescenta – não representa apenas um desafio para o futuro da Itália – mas também para a Europa.

A porta-voz imperial sublinhou que Draghi tem sido “uma figura chave na resposta do Ocidente à guerra da Rússia na Ucrânia. Ele foi um dos primeiros líderes europeus a propor sanções contra a Rússia, inclusive visando seus oligarcas e aumentando a pressão sobre seu banco central”.

No mês passado, registrou a CNN, Draghi se encontrou “com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky em Kiev”, ao lado do premiê alemão Olaf Scholz e do presidente francês Emmanuel Macron, apesar da “crescente reação” na Itália às sanções e ajuda à Ucrânia.

O ministro das Relações Exteriores da Itália, Luigi Di Maio, recém saído do M5S, disse ao Politico na semana passada que os russos “estão comemorando agora a queda de outro governo ocidental”. Ele acrescentou: “Agora duvido que possamos enviar armas [para a Ucrânia]. É um dos muitos problemas sérios”.

A Itália é o único país europeu onde os salários reais caíram desde 1990, em 2,9%, segundo dados oficiais da OCDE. O número de pessoas que vivem na pobreza absoluta aumentou para 5,6 milhões durante a pandemia de coronavírus.

Sob Draghi, a crise social e econômica da Itália se intensificou. A taxa oficial de desemprego é de 8,4%, cerca de dois pontos percentuais superior à média da UE. Pior ainda, a taxa de desemprego juvenil é de 24%. Mais de 3,4 milhões de pessoas estão empregados precariamente, segundo estatísticas oficiais.

O que tem se traduzido em greves espontâneas ou oficiais contra a perda de empregos, baixos salários e condições de trabalho insustentáveis, que afetam principalmente o transporte ferroviário e aéreo, mas também as telecomunicações, a indústria automobilística e outros setores. Em abril e maio, os sindicatos de base convocaram greves gerais de um dia.

Teme-se agora que a crise do euro, que quase provocou o colapso da moeda única há uma década, volte a eclodir. O spread, o diferencial da taxa de juros entre os títulos do governo italiano e alemão, que contribuiu significativamente para a crise em 2010, voltou a subir acentuadamente. Dito de outra forma, os endividados bancos italianos voltaram a subir no telhado.

Além disso, a taxa de câmbio do euro em relação ao dólar está em seu nível mais baixo, alimentando ainda mais a inflação, principalmente no setor de energia, que é negociado em dólares. Se o BCE reagir com taxas de juros mais altas, isso poderá arrastar ainda mais a economia italiana para o abismo.

“É um grande golpe para a capacidade da Itália de entregar políticas e reformas no curto prazo”, lamentou Lorenzo Codogno, chefe da LC Macro Advisers e ex-funcionário sênior do Tesouro italiano, ouvido pela CNN. “Haverá atrasos e interrupções com eleições antecipadas e, provavelmente, nenhum orçamento até o fim do ano.”