A privatização da saúde nos EUA chegou a um ponto tão aberrante que pessoas estão sendo presas por não terem como pagar dívidas médicas. No domingo, reportagem da CBS News mostrou como o pai de um menino que sofria de leucemia foi preso em Coffeyville, no estado do Kansas, em função de uma dívida hospitalar.

A partir da Revolução Francesa de 1789, a prisão por dívida foi abolida no mundo inteiro, mas nos EUA sob Trump e o ultraliberalismo, essa excrescência vai sendo acintosamente trazida de volta da tumba.

“Ultrajante e antiamericano”, declarou o senador e pré-candidato a presidente, Bernie Sanders, condenando que pessoas nos EUA estejam sendo encarceradas por não terem como pagar exorbitantes contas médicas pendentes. É do senador a proposta de cancelar tais dívidas, que somadas chegam a US$ 81 bilhões.

Lane, o filho, fora diagnosticado com leucemia aos cinco anos de idade, e sua mãe, Heather Biggs estava sofrendo de convulsões causadas pela doença de Lyme. Como ela relatou, para ter pago as contas médicas, “teríamos que não comer, não ter uma casa”.

A CBS News registrou que Tres Biggs, o pai, “estava trabalhando em dois empregos, mas as contas médicas ficaram em atraso e, então, o impensável aconteceu”.

Ele foi preso por não atender à intimação judicial pelas contas médicas não pagas. A fiança era de US$ 500, e a família só tinha “US$ 50 ou no máximo US$100” – a área rural de Coffeyville tem o dobro da média da taxa de pobreza nacional.

À emissora de tevê, Tres disse que estava “morrendo de medo” quando foi preso pela primeira vez por uma dívida médica não paga de 2008. “Eu sou um cara do campo – tive que me despir, me lavar e vestir um macacão [de presidiário]”, disse Tres. A família Biggs havia acumulado mais de US $ 70.000 em dívidas médicas até 2012.

Em Coffeyville foi criada uma lei que exige que as pessoas com contas médicas não pagas compareçam a cada três meses ao chamado “exame de devedor” e declarem que são pobres demais para pagar. Se duas audiências são perdidas, o juiz emite um mandato de prisão por desrespeito ao tribunal.

Como assinalou o Common Dreams, a história da família Biggs está longe de ser única. Lizzie Presser, do ProPublica, relatou em outubro, depois de passar várias semanas em Coffeyvile, revendo arquivos de tribunal e entrevistando dezenas de pacientes, ter encontrado mais de 30 mandatos emitidos contra réus de dívidas médicas”. “Pelo menos 11 pessoas foram presas apenas no ano passado”.

Outro caso aberrante foi exposto pela principal entidade norte-americana de defesa dos direitos, a ACLU – Associação Americana pelas Liberdades Civis. Denise Zencka, mãe de três filho e que não teve condições de pagar a conta pelo tratamento de câncer de tireóide, foi presa na frente dos filhos enquanto ainda estava se recuperando.

Três mandatos de prisão haviam sido expedidos contra ela enquanto se recuperava na casa dos pais, e sequer sabia que tinha perdido audiências em um tribunal em que fora acionada por uma empresa especializada em cobrança. “O que está acontecendo aqui é a restauração da prisão por dívida, a criminalização da dívida privada”, assinalou a ACLU, questionando sua constitucionalidade.

Embora os casos de prisão de pessoas que não tiveram como pagar contas de hospital sejam, possivelmente, os mais indefensáveis, não são, no entanto, os únicos.

Num país onde o salário real não cresce desde os anos 1970, e as pessoas foram empurradas para se endividarem em massa, a cobrança de dívidas, passando por cima de quaisquer escrúpulos, para não falar dos mais comezinhos princípios legais, tornou-se uma verdadeira indústria nos EUA, que fatura bilhões anualmente.

“As prisões dos devedores foram abolidas pelo Congresso em 1833 e acredita-se que sejam uma relíquia do passado dickensiano. Na realidade, os cobradores de dívidas – com poderes dos tribunais e da promotoria – estão usando o sistema de justiça criminal para punir os devedores e aterrorizá-los a pagar, mesmo quando uma dívida está em disputa ou quando o devedor não pode pagar”, denunciou a ACLU.

1 em cada 3 norte-americanos com dívida já foi acionado por uma dessas arapucas. Apenas 2% dos supostos devedores acionados são representados por advogados nos julgamentos, o que dá bem uma ideia da farsa ‘judicial’.

De acordo com a entidade, estima-se em 77 milhões os norte-americanos que têm uma dívida repassada a uma empresa de cobrança privada. Dezenas de milhares de mandatos de prisão por dívida são emitidos anualmente nos EUA, com milhares desses devedores presos todos os anos porque devem dinheiro, e muitos outros mais estão ameaçados de prisão. Esses mandatos de prisão foram emitidos em metade dos estados do país.

A história de Kristy Sprayberry é emblemática dessa situação iníqua: foi presa enquanto estava cuidando de sua mãe doente e em estado terminal; sua mãe morreu dois dias mais tarde. Uma empresa especializada em dívidas havia comprado um débito de seis anos que seu senhorio cobrava, depois de tê-la despejada de um trailer e jogado fora seus pertences.

Em geral, o devedor sequer sabe que está sendo acionado judicialmente e o mandato de prisão é obtido de um juiz conivente, sob o pretexto de que o devedor não compareceu ao tribunal para prestar contas sobre a dívida e, portanto, desacatou o tribunal.

Um advogado ouvido durante a investigação realizada pela ACLU cinicamente disse que é mais fácil receber “quando o devedor está preso”. Outro disse à CBS News “que só estava fazendo seu trabalho”.

Entre as centenas de histórias coletadas pela entidade, está a de uma senhora aposentada, de pensão modesta, que deixou até mesmo de comprar os remédios de uso contínuo para saldar um débito, pois estava ameaçada de ir presa.

Em caso de dívidas envolvendo cheques devolvidos, as arapucas de cobrança privada agora têm contratos com mais de 200 procuradores distritais que lhes permitem usar o selo e a assinatura do promotor em cartas de solicitação de reembolso. Estima-se que a cada ano mais de um milhão de pessoas recebam essas cartas de ameaça de processo criminal e prisão.

MAIS ALVOS

Com a irrupção da gigantesca dívida estudantil, tais corriolas também se lançaram, como uma alcatéia de lobos, sobre essa juventude que já começa a vida adulta no vermelho. Municípios entregaram a cobrança de taxas em atraso a esses “cobradores”.

É o “varejo”. No atacado, os megabancos especulam com papéis das dívidas, que são fatiadas, embaralhadas e depois maquiadas com um selo fake das agências de classificação de risco, servindo para empinar mais derivativos, enquanto a casa não cai.

Como registra a ACLU, essa praga está “devastando comunidades no país inteiro, à medida que dívidas incontroláveis e crises financeiras domésticas se tornam onipresentes e afetam as comunidades de negros e latinos de maneira mais severa devido às antigas lacunas raciais e étnicas na pobreza e na riqueza”.