O jornal Folha de S.Paulo completou nesta sexta-feira (19) 100 anos de existência. Impedido de realizar eventos de maior pompa em função da pandemia e também da própria crise do seu modelo de negócios, o diário usou seus espaços – virtuais e de papel – para se jactar dos seus feitos. Haja exagero!

Por Altamiro Borges*

Em editorial, que deu a linha para o restante das matérias e comentários, a Folha se vangloriou do centenário: “Em qualquer atividade, são poucas as organizações, públicas ou privadas, que chegam à marca. Menos ainda as que têm como atividade o jornalismo profissional, em sua vertente crítica”.

Deixando de mencionar os vínculos na origem com a oligarquia reacionária de São Paulo ou seu papel nefasto no golpe militar de 1964 e no apoio aos generais “linha dura”, a Folha registra que só “ganhou relevo nacional” na campanha pelas diretas-já, em 1984. O jornal seria um baluarte da democracia. Risível!

A Folha ainda jura que “seu compromisso basilar, como saberão os leitores mais assíduos, é com o jornalismo apartidário, crítico e pluralista”. Quem confere a sua linha editorial mais recente – que apostou na desestabilização política e no golpe do impeachment e ajudou a chocar o ovo da serpente fascista – sabe que isso é falso. É fake news!

Num dos trechos, o editorial afirma corretamente que “pela primeira vez sob a Constituição de 1988, os veículos como a Folha se defrontam com um adversário do regime, adorador de autocratas e torturadores, na Presidência da República”. Nesta batalha civilizatória contra o fascismo – que ajudou a chocar, insisto –, o jornal merece solidariedade.

Mas a Folha não precisa exagerar – nem mentir – na autopromoção dos 100 anos. Ao final, o editorial profetiza: “O jornal seguirá dando sua contribuição à aventura do desenvolvimento justo, democrático e solidário do Brasil nos próximos cem anos”. A conferir – sempre com espírito crítico. Reproduzo abaixo texto de maio de 2007 que aborda um pouca da triste história da Folha.

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A morte do “democrata” Octavio Frias

Por Altamiro Borges – 01/05/2007

O falecimento, no domingo (29 de abril), do empresário Octavio Frias de Oliveira, dono do poderoso grupo de mídia Folha, revela um pouco da hipocrisia da política brasileira. Nas páginas da Folha de S.Paulo e até de veículos concorrentes, surgem dezenas de declarações destacando as suas virtudes de “democrata” e de “patriota”. É humano que haja respeito diante da morte e do sofrimento dos mais próximos; é natural, também, que os jornais pincem apenas as frases favoráveis, sem entrar no mérito das críticas. O que não ajuda é falsear a realidade. Não é educativo ficar tecendo loas a um figurão tão controvertido da história nacional. Um rápido levantamento confirma que o país não perdeu um democrata, muito pelo contrário.

Veículo da oligarquia rural

A Folha nasceu em 1921 sob o formato de um jornal vespertino, a Folha da Noite. Os seus fundadores, Pedro Cunha e Olival Costa, eram jornalistas de O Estado de S.Paulo e, durante algum tempo, o jornal foi impresso e distribuído por esta empresa. O próprio Júlio de Mesquita Filho, dono do oligárquico Estadão, redigiu o seu primeiro editorial. No início, o jornal manifestou simpatia pelo tenentismo e até encampou bandeiras progressistas, como a do voto secreto e do direito de férias. Mas, como registra Maurício Puls, numa cronologia bajuladora, essa linha durou pouco tempo e jornal logo virou um instrumento da direita.

Em 1929, com a saída de Pedro Cunha, a Folha passou a apoiar ostensivamente a reacionária oligarquia do café. “O resultado desta tomada de posição contra Getúlio Vargas foi a destruição do jornal. Na noite de 24 de outubro de 1930, a multidão que comemorava a deposição do presidente em São Paulo destruiu as instalações da Folha. As máquinas de escrever e os móveis foram jogados na rua e incendiados. Olival Costa assistiu ao empastelamento da esquina. Quando a multidão deixou o prédio, ele pediu licença aos soldados para entrar no prédio. Lá viu um homem vestindo seu sobretudo. Ao observar que aquela roupa era sua, recebeu a seguinte resposta: ‘Foi sua, amigo. Hoje, tudo isto é nosso’”.

A Folha deixou de circular até janeiro de 1931, quando foi comprada por outro barão do café, Octaviano Alves. Em 1932, apoiou abertamente a oligárquica Revolução Constitucionalista “para libertar o Brasil de um grupo que se instalou no poder empenhado em desfrutá-lo” – o mesmo discurso usado atualmente pela Folha. Em 1945, contrário às mudanças progressistas efetuadas por Getúlio, Octaviano vende o jornal por considerar “inútil o trabalho e insana a espera”. José Nabantino assume a empresa sob o compromisso de manter “a imparcialidade em relação aos partidos”. Mas, ainda segundo Maurício Puls, “sua orientação fiscalista guardava certa afinidade com a UDN” – a principal organização golpista deste período histórico.

Carregando presos para a tortura

Durante este longo período, a Folha de S.Paulo foi um jornal provinciano, sem maior projeção no cenário nacional. Em 13 de agosto de 1962, endividado e desolado com uma greve dos jornalistas, José Nabantino vendeu o jornal para os empresários Octávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho. De imediato, ele se tornou um dos principais instrumentos da conspiração golpista que resultou na deposição de João Goulart. Suas manchetes espalhafatosas contra o “perigo comunista” e seus editorais raivosos contra “a corrupção e a subversão” envenenaram a classe média. O veterano jornalista Mino Carta lembra que “a mídia vinha invocando o golpe há tempos… Neste período, a Folha de S.Paulo não tinha o peso que adquiriu depois. Mas os jornais soltavam editoriais candentes implorando a intervenção militar para impedir o caos”.

Numa entrevista à jornalista Adriana Souza, o atual editor da revista Carta Capital, que já dirigiu os principais órgãos de imprensa do país e avalia que “o Brasil tem a pior mídia do mundo”, dá outros elementos indispensáveis para se entender a história da Folha de S.Paulo. Ao contrário da propaganda deste jornal, que engana muita gente com o seu falso ecletismo e a sua aparente pluralidade, Mino Carta mostra que ele sempre serviu à ditadura e construiu sua pujança graças às benesses do poder autoritário:

“A Folha de S.Paulo nunca foi censurada. Ela até emprestou as suas C-14 [veículo tipo perua, usado na distribuição do jornal] para recolher os torturados ou pessoas que iriam ser torturadas na Oban (Operação Bandeirantes). Isso está mais do que provado. É uma das obras-primas da Folha… E hoje você vê esses anúncios da Folha – o jornal desse menino idiota chamada Otavinho – que parece que ela, nos anos de chumbo, sofreu muito, mas ela não sofreu nada. Quando houve uma mínima pressão, o Sr. Frias afastou o Cláudio Abramo da direção do jornal. Digo que foi ‘mínima pressão’ porque o Sr. Frias estava envolvido na pior das candidaturas possíveis na sucessão do general Geisel. A Folha apoiava o Frota [general Sílvio Frota, ministro do Exército, da chamada linha dura, fascista]. O Cláudio Abramo foi afastado por isso”.

Prosperidade durante a ditadura

Até hoje a Folha de S.Paulo, que gosta de posar de democrata e transparente, tenta esconder esse período macabro que revela todo o seu caráter de classe e a sua postura direitista. Alguns jornalistas, talvez para conseguirem as benções dos Frias, fazem de tudo para relativizar o papel deste jornal durante a ditadura. Mario Sérgio Conti, no livro Notícias do Planalto, até registra o episódio, mas de maneira deturpada e num linguajar tipicamente reacionário. Afirma que “até o final de 1968, as organizações terroristas de esquerda destacaram alguns de seus militantes jornalistas para trabalhar na Folha… No início dos anos 70 foi a vez de policiais dos órgãos de informação da ditadura se assenhorearem do jornal”.

Outro livro, o recém-lançado “A trajetória de Octavio Frias de Oliveira”, do jornalista Engel Paschoal, é quase uma peça publicitária de adulação do dono da empresa. O próprio autor confessa que o biografado é “meu tipo inesquecível entre todos”. Mas apesar destas tentativas de ocultar a história, o envolvimento da Famiglia Frias com os órgãos de repressão é inquestionável. Até já serviu para uma cômica disputa entre duas empresas reconhecidas pelo servilismo nos duros tempos da ditadura. Como resposta a uma coluna da jornalista Barbara Gancia, uma famosa lambe-botas da Folha que acusou a TV Globo de ter apoiado o regime militar, o diretor de jornalismo da poderosa emissora, Evandro Carlos de Andrade, deu o troco:

“Aproveito para recomendar que procure saber um pouco da história da Folha, empresa apenas comercial que prosperou extraordinariamente na ditadura, não graças à receptividade do público e à qualidade do que produziu, mas apenas em retribuição ao incondicional apoio dado por este jornal ao regime militar. A senhora por acaso já se interessou por saber a causa de, naquele tempo, serem queimadas as Kombis da Folha?”, retrucou o diretor da TV Globo (20/01/2000). Na fase mais cruel da ditadura, a Folha divulgava a “morte” de “terroristas” em “emboscadas com a polícia”, quando estes ainda estavam na prisão. A falsa notícia servia para acobertar as torturas, como no caso do assassinado de Joaquim Seixas. Como resposta, grupos armados incendiaram três peruas da empresa e o durão Frias passou a dormir no prédio da Folha.

Baluarte do receituário neoliberal

A briga entre a TV Globo e a Folha serve para elucidar que foi exatamente na fase mais dura da ditadura que a Famiglia Frias ergueu o seu império com base nos subsídios e nas benesses do poder. A cronologia apologética já citada registra que, em 1967, “a Folha dá início à revolução tecnológica e à modernização do seu parque gráfico. O jornal é pioneiro na impressão offset em cores, utilizada em larga tiragem pela primeira vez no Brasil… Em 1971, o jornal adota o sistema eletrônico de fotocomposição, pioneiro no Brasil”. No mesmo ano, lembra o texto, “o ex-capitão Carlos Lamarca, líder do grupo guerrilheiro MR-8, é morto pelo Exército na Bahia. O deputado Rubens Paiva é seqüestrado por militares e desaparece”.

Protegida pela ditadura, a Folha cresceu e passou a ter projeção nacional. Ainda em 1977, ela atendeu as ordens de Hugo de Abreu, outro general linha dura, que pediu a demissão do escritor Lourenço Diaféria, que escrevera uma crônica sobre um bombeiro que “urinara” na estátua de Duque de Caxias, no centro de São Paulo. No seu livro autobiográfico, “O outro lado do poder”, Hugo de Abreu descreve: “Telefonei para o doutor Otávio Frias e ele disse: ‘Meu general, estou aqui de mão na pala, fazendo continência’”. Apenas quando nota que o regime estava nos estertores é que o jornal passou a pregar a redemocratização, ao mesmo tempo em que se colocava como “pioneiro” do receituário neoliberal de desmonte do Estado.

Na sua badalada pluralidade, a Folha deu espaço para FHC e para o sociólogo tucano Bolívar Lamounier e abriu suas páginas para Plínio Correa de Oliveira, líder da seita católica Tradição, Família e Propriedade (TFP) e para o pefelista Marco Maciel. Num primeiro momento, apoiou o “caçador de marajás” Fernando Collor como única forma de derrotar Lula, mas logo depois engrossou o coro do impeachment. Durante os oito anos de FHC, ela nada falou contra as suspeitas privatizações e pregou a ortodoxia macroeconômica. Com a eleição de Lula, porém, tornou-se um dos principais instrumentos da oposição de direita. Mesmo colunistas com um passado mais crítico, como Clóvis Rossi, passaram a verter ódio contra o presidente.

A pregação do golpe midiático

Com a eclosão da crise política em maio de 2005, a Folha de S.Paulo virou um palanque da mais raivosa oposição. Ela chegou a fazer coro com os hidrófobos do PFL na proposta do impeachment de Lula, numa autêntica pregação do golpe midiático. Um atento comerciante paulista, Eduardo Guimarães, teve a paciência de acompanhar as manchetes deste jornal em setembro de 2006. Elas foram arroladas no seu blog na internet (www.cidadania.com) e impressionam pelo alto grau de manipulação. “As mensagens desfavoráveis para o candidato Lula são a maioria esmagadora… Já os adversários de Lula, sobretudo o principal, Geraldo Alckmin, foram totalmente poupados. Esse é um fato incontestável”.

As conclusões do comerciante foram confirmadas por dois institutos que monitoram sistematicamente a imprensa: o Datamídia, da PUC-RS, e o Observatório Brasileiro da Mídia, filial do Media Watch Global. O primeiro identificou que, entre 13 e 19 de julho, a Folha dedicou 778 centímetros/coluna de texto com tom positivo para Alckmin, enquanto Lula teve, no mesmo período, 562 centímetros/coluna de mensagem positiva. Já o Observatório pesquisou os principais jornais e revistas de julho a agosto, incluindo a Folha, e constatou que o Lula foi retratado de forma negativa em 47,41% das matérias, contra 31,2% em que foi tratado positivamente. No caso de Alckmin, a situação se inverte: 44,56% favoráveis e 31,42% negativas.

Apesar desta descarada manipulação, todas as sondagens eleitorais ainda apontavam a vitória de Lula no primeiro turno para o desespero dos “deformadores de opinião” da mídia. A “operação burrice” de alguns petistas afoitos, que tentaram comprar o dossiê da “máfia das sanguessugas”, apenas realimentou o sonho da direita de forçar o segundo turno. Aproveitando a ocasião, o filho de Frias, o yuppie Otavinho, afirmou em editorial que o dossiêgate comprovaria que “a cúpula petista instalou uma máfia sindical-partidária no aparelho do Estado. A função dessa máfia é garantir condições para que Lula e seu grupo se eternizem no poder… O que caracteriza os integrantes dessa máfia é a lealdade antiga e canina a Lula, o chefão”.

O tiroteio deste jornal na semana que antecedeu as eleições foi devastador. Manchetes sensacionalistas e centenas de matérias, até na seção de esporte, visaram satanizar o presidente e apelaram para o imperativo do segundo turno “pelo bem da democracia”. Pesquisa do Datafolha até foi antecipada, contrariando a Lei 9.504 que disciplina as eleições, para dar a impressão da inevitabilidade do segundo turno.

A distorção da Folha de S.Paulo foi tão brutal que até o seu próprio ombudsman, Marcelo Beraba, teve de registrá-la envergonhado. “O fato de considerar a conspiração para a obtenção do dossiê mais importante do que o dossiê não significa que eu esteja de acordo com o pouco empenho dos jornais na apuração das denúncias contra Serra e Barjas Negri [dois ex-ministros de FHC envolvidos na compra superfaturada de ambulâncias]. Uma cobertura não anula a outra” (FSP, 24/09/06). Na prática, a empresa do falecido Octavio Frias de Oliveira, que no passado cedeu suas caminhonetes para o transporte de presos políticos, hoje prega abertamente um golpe midiático. Esta conduta golpista, seguida pelo grosso da mídia, deveria servir ao menos para acabar com as ilusões sobre o papel imparcial dos meios de comunicação no Brasil.

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Altamiro Borges* é jornalista e presidente do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e membro do Comitê Central do PCdoB.

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