A menina que nasceu em São Petersburgo, em 1872, filha de pais nobres, somente foi conhecer a filosofia marxista, os escritos de Plekhanov e os bolcheviques depois de casada e mãe. A transformação de nobre em revolucionária se deu através de muito estudo, ao que seu marido reputava como “uma ofensa pessoal”.

Por Fernando Horta*, no Sul21

 “Nós, conscientemente, não podemos deixar tudo que pertence ao campo da moral ou a outras construções ideológicas à disposição total do liberalismo burguês. Para nós, a emancipação feminina não é um sonho, nem mesmo um princípio ético, mas uma realidade concreta, um fato que diariamente precisa ser tornado real. O que é “utópico é a crença feminista de que novas e livres formas de amor, casamento e família são possíveis sem uma transformação radical de todo o sistema social”. Assim, Alexandra Mihaylovna Kollontai escrevia na introdução do seu livro “Bases sociais das questões feministas” (социальные основы женского вопроса) de 1906. A menina que nasceu em São Petersburgo, em 1872, filha de pais nobres, somente foi conhecer a filosofia marxista, os escritos de Plekhanov e os bolcheviques depois de casada e mãe. A transformação de nobre em revolucionária se deu através de muito estudo, ao que seu marido reputava como “uma ofensa pessoal”.

Kollontai foi testemunha ocular do Domingo Sangrento (22/01/1905), quando a guarda pessoal do czar massacrou manifestantes que marchavam pacificamente até o Palácio de Inverno, em São Petersburgo, pedindo pão. O episódio é o deflagrador dos movimentos de 1905, conhecidos como “O ensaio geral”. Nas palavras de Kollontai: “Vi milhares de crianças mortas a tiro ou feridas além da possibilidade de sobrevivência”. Esta experiência marcaria toda sua trajetória política.

Em 1905, Kollontai já era conhecida por escrever artigos críticos acerca da situação russa e do marxismo, e por fazer “leituras coletivas” com operários de diversas fábricas. A verdade é que Kollontai não precisou dos Bolcheviques ou Mencheviques para se fazer política. Após sua participação nos eventos daquele ano, e por ser já conhecida crítica do regime dos Romanov, Kollontai é obrigada a se exilar (primeiro na Suíça e depois Alemanha) entre 1908 e 1917. Neste período, produz boa parte de seus trabalhos afirmando que “tenho mantido a luta pela emancipação e igualdade das mulheres mesmo com o duplo desafio de ser cidadã e mãe” demonstrando a dificuldade de uma mulher, mãe viver no exílio.


Kollontai como embaixadora russa na Suécia acompanhada pelo rei Gustav V algo próximo a 1930

Retornando a Rússia após fevereiro de 1917, apresentou à Duma (governo provisório) um projeto de lei para criar um seguro maternidade. O resultado de pesquisa e argumentação em favor do projeto rendeu o livro “Sociedade e Maternidade” (Общество и материнство) publicado em 1916. Kollontai afirma a “necessidade” de qualquer governo de se envolver diretamente na proteção e no bem-estar da mulher grávida e da criança na primeira infância. Em que pese a extensão dos argumentos, o governo provisório rejeita a lei.

Em 1915 se filia aos bolcheviques e afirma que “cruzaria o Rubicão”, pois sentia que os bolcheviques estavam fadados por “seus sacrifícios a algo grandioso”. Durante a guerra, Alexandra Kollontai trabalha em estrita conexão com Lênin e é uma das responsáveis pela organização da III Internacional. As obras de Kollontai passam a ser impressas na Noruega, Suécia, EUA e Suíça e são tão conhecidas quanto as de Lênin naquele momento. Sua capacidade intelectual, sua proximidade com os bolcheviques e sua energia fazem-lhe a primeira mulher eleita para o soviet de Petrogrado. Em sua biografia, afirma “se me perguntarem qual foi o maior momento da minha vida, o mais memorável eu digo, sem dúvida, o momento em que o poder soviético foi proclamado em outubro de 1917”.


Kollontai como embaixadora russa na Suécia em 1940.

Já como Comissária Nacional da Seguridade Pública, no governo bolchevique, Kollontai coloca em prática a proteção à maternidade e aos trabalhadores em idade avançada, fazendo do governo revolucionário a vanguarda da proteção social às mulheres. Segundo o historiador Mark Steinberg, “nenhum marxista russo jamais escreveu de forma tão explícita sobre gênero, intimidade ou emotividade e de forma tão fortemente ligada às questões da revolução socialista”. Profética, Kollontai afirma que “na idade da pobreza capitalista, das contradições de classe e da moral individualista, nós todos vivemos e pensamos sobre o gélido sentimento da inescapável e inevitável solidão espiritual” (“A Nova Mulher” ensaio de 1913).

Kollontai fala de sexualidade, de amor, de prazeres no início do século XX com uma desenvoltura peculiar. Sempre buscando o Futuro e a “Nova Mulher” que surgiria através da luta contra a “prisão moral” e a “servidão amorosa”, buscando algo além da “monogâmica e possessiva forma de família” que necessariamente gerava a “subordinação da mulher”. Kollontai afirmaria que “o código moral sexual é parte integral da ideologia de classe burguesa” e por isto mesmo a questão sexual não poderia ser colocada em separado da luta proletária. “Os proletários precisam descobrir que as antigas formas de virtudes femininas são amarras que previnem a transformação social” e que para romper com isto a mulher precisaria se tornar um “ser humano com valor próprio”, não por ser mãe ou fêmea.

Em 1922, foi nomeada embaixadora na Noruega, depois no México e na Suécia trabalhando até 1945. Foi uma das primeiras mulheres a ocupar o cargo de embaixadora no mundo, vindo a falecer em 1952. Na plenitude de sua juventude, Kollontai escreveria no jornal Pravda em março de 1917: “Não fomos nós mulheres as primeiras a ir para as ruas lutar por liberdade junto com nossos irmãos, a morrer por isto se necessário? Então porque exatamente quando se começa a construir uma nova Rússia estamos sentido o medo da liberdade e vamos ignorar metade da população livre deste país?”

Alexandra Kollontai é a própria revolução. Inescapavelmente.


Kollontai em Moscou. Pouco antes de falecer em 1952 aos 79 anos escreveu em seu diário “Eu amava a vida e queria muito ser feliz”

*Fernando Horta é professor, historiador, doutorando na UnB.