Aldo Arantes

O julgamento definitivo das três Ações Declaratórias de Constucionalidade, 43, 44, 54 colocou na ordem do dia o debate em torno da Constituição de 1988. O Supremo Tribunal Federal (STF) vai ter que optar em respeitar ou não o texto constitucional.

Por Aldo Arantes*

A questão foi discutida recentemente pelo Supremo ao menos quatro vezes. De 2009 a 2016, prevaleceu o entendimento de que a sentença só poderia ser executada após o STF julgar os últimos recursos. Em 2016, por 6 votos a 5, a prisão em segunda instância foi autorizada.

É importante observar que esta reinterpretação da Constituição em relação à prisão em segunda instância se deu em 17 de fevereiro de 2016, pouco antes do impeachment da Presidenta Dilma. O clima que vivia o País era o de condenar o PT. É evidente que esta situação contribuiu para a decisão do STF, ao ouvir “a voz das ruas”.

O fato concreto é que a prisão em segunda instância viabilizou o afastamento de Lula da disputa presidencial.

O julgamento em curso no STF está, até agora, com quatro votos a favor da prisão em segunda instância e três, contra. Em seu voto favorável, o Ministro Fux afirmou que “não há motivos que justifiquem uma alteração do atual entendimento da Corte, que permite a execução antecipada da pena – medida considerada um dos pilares da Operação Lava-Jato no combate à impunidade”.

Todavia, os fatos revelados pelo site The Intercept Brasil mostraram que a Lava Jato agiu com objetivos claramente políticos. E trouxeram à tona a parcialidade do Juiz Moro e dos procuradores da operação. Segundo a revista Veja, feroz opositora do ex-presidente Lula, na Carta ao Leitor, se referindo aos diálogos veiculadas pelo The Intercept, eles “revela(m) de forma cabal, como Sergio Moro exorbitava de suas  funções de juiz, comandando as ações dos procuradores da Lava-Jato. (…) Fica evidente que as ordens do então juiz eram cumpridas à risca pelo Ministério Púbico e que ele se comportava como parte da equipe de investigação, uma espécie de técnico do time – e não como um magistrado imparcial (…) os diálogos que publicamos nesta edição violam o devido processo legal, pedra fundamental do estado de direito”.

Diante de tais abusos é importante identificar em nossa legislação qual deve ser o comportamento de um juiz. A Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar nº 35 de 14 de março de 1979) estabelece claramente, em seu artigo 35, que são deveres do magistrado: “ I – Cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício.”

Já o Código de Processo Penal define, em seu art. 254, IV, que “o juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes: (…) IV – se tiver aconselhado qualquer das partes”.

E o Código de Ética da Magistratura em seu art. 4 estabelece que “exige-se do magistrado que seja eticamente independente e que não interfira, de qualquer modo, na atuação jurisdicional de outro colega, exceto em respeito às normas legais”.

O artigo art. 8º fixa que “o magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito”.

Ora, as denúncias do The Intercept Brasil confirmaram o que a defesa do ex-presidente Lula denunciava há tempos: a total parcialidade do juiz Moro e dos procuradores.

Moro não cumpriu seu papel de juiz com a isenção que o cargo exige. Não levou em conta o princípio da presunção de inocência. Não identificou atos de ofício para condenar o ex-presidente, mas criou o chamado “ato de ofício indeterminado”. Assim, adotou uma atitude completamente parcial, uma postura política, cujo objetivo era colocar Lula na cadeia e impedir sua candidatura à presidência da República.

Em entrevista ao jornal Correio Braziliense, sob o título “Gilmar critica Laja-Jato: ‘Organização criminosa para investigar pessoas’”, o Ministro do STF, se referindo aos diálogos entre o juiz Moro e os procuradores afirmou que “a impressão que eu tenho é que se criou no Brasil um Estado paralelo”.

Também defensor da prisão em segunda instância, o Ministro Barroso afirmou a necessidade de se ouvir a voz das ruas afirmando que “o STF é o intérprete final, mas não é o dono dela [da Constituição] e nem tão pouco seu intérprete único. A definição do sentido e do alcance da Constituição cabe também à sociedade como um todo”. Ele tem reafirmado a necessidade do STF ouvir a voz das ruas para adotar suas posições.

Qual voz das ruas? A voz democrática construída na base do contraditório ou a falsa voz das ruas construída na base de mentiras e fake news? O Presidente Bolsonaro, sua família e seus seguidores inundam as redes sociais de falsas notícias e ameaças às instituições, particularmente ao STF.

O presidente Bolsonaro postou em suas redes sociais um vídeo no qual surge representado como um leão acossado por hienas que o atacam, sendo uma delas o STF. Com tais postagens estimula ao ódio e a mobilização contra Supremo.

Celso de Mello, Ministro decano do STF, comentando o vídeo, afirmou que  “esse comportamento revelado quanto ao vídeo em questão, além de caracterizar absoluta falta de ‘gravitas’ e de apropriada estatura presidencial, também constitui a expressão odiosa (e profundamente lamentável) de quem desconhece o dogma da separação de poderes e, o que é mais grave, de quem teme um Poder Judiciário independente e consciente de que ninguém, nem mesmo o Presidente da República, está acima da autoridade da Constituição e das leis da República”.

No passado, o deputado Eduardo Bolsonaro disse que bastava um cabo e um soldado para fechar o STF.

Já o movimento de direita “Vem pra Rua” decidiu convocar manifestações em todo o país para o dia 3 de outubro, domingo, a favor da prisão de condenados em segunda instância.

Ou seja, há um nítido processo de manipulação da opinião pública para pressionar o STF a manter a prisão em segunda instância.

A pressão dos militares tem sido no sentido de constranger o STF, particularmente as declarações do General Villas Boas.

No entanto, a Constituição é clara ao definir no seu artigo 5º, inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

E o artigo 283 do Código de Processo Penal, estabelece: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.”


Manifestando-se contra a prisão em segunda instância, o relator, Ministro Marco Aurélio, destacou: “Tempos estranhos os vivenciados nessa sofrida República. Que cada qual faça sua parte com desassombro, com pureza d’alma, segundo ciência e consciência possuídas, presente a busca da segurança jurídica. Esta pressupõe a supremacia não de maioria eventual, conforme a composição do Tribunal, mas da Constituição Federal, que a todos indistintamente submete, inclusive o Supremo, seu guarda maior. Em época de crise, impõe-se observar princípios. Impõe-se a resistência democrática, a resistência republicana.”

Já a Ministra Rosa Weber, afirmou: “Não é dado ao intérprete ler o preceito constitucional pela metade, como se tivesse apenas o princípio genérico da presunção da inocência, ignorando a regra que nele se contém – até o trânsito em julgado.”

E o Ministro Ricardo Lewandowski, disse: “A jurisprudência desse Tribunal consolidou-se, salvo um lapso de tempo, que ofende o princípio da presunção da inocência, a execução da pena em liberdade antes do trânsito em julgado da sentença.”

Na mesma linha, expressou-se o representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ao afirmar que “o entendimento da OAB é no sentido da reafirmação da Constituição da República. É no sentido da reafirmação da independência e da liberdade do Poder Legislativo. Entende a OAB que em nome da força normativa da Constituição, em nome da afirmação histórica das garantias constitucionais, a ação declaratória deve ser julgada procedente.”

Na falta de provas, de ato de ofício, capazes de caracterizar ato criminoso por parte do ex-presidente Lula, o juiz Moro fala em “atos de ofícios indeterminados”. Analisando essa questão assim se expressa o professor Pedro Serrano: “Na ausência de comprovação de que o ex-presidente tivesse recebido vantagens indevidas (o apartamento triplex no Guarujá e a reforma do mesmo) como contrapartida por ter favorecido a empreiteira OAS em negociações com a Petrobras, Moro afirmou que o pagamento foi feito ‘em troca de atos de ofício indeterminados, a serem praticados assim que as oportunidades apareçam’. Além de meramente especulativo, o fundamento foge totalmente dos limites postos na acusação, tratando-se, portanto, de imputação sem qual tenha havido direito a defesa.”

E ainda: “Voltando ao caso de Lula, a afirmação de que ele seria ‘proprietário de fato’ do triplex é extremamente frágil, pois o ex-presidente jamais teve a posse do apartamento. Como foi demonstrado pela defesa, havia somente um plano de aquisição do imóvel, do qual Lula desistiu. A defesa apresentou ainda documentos e provas, não levantados em consideração, de que o triplex é de propriedade da OAS e foi, inclusive, incorporado como bem da construtora para efeito de recuperação judicial.”

A condenação de Lula, sem provas, evidencia a prática da justiça de exceção. O tratamento de inimigo dado a ele, sem respeitar a presunção de inocência e os princípios de direitos contidos na Constituição, como a da condenação em última instância para determinar a prisão, não deixam dúvidas sobre o caráter político de seu julgamento.

A decisão a ser adotada pelo STF sobre a prisão em segunda instância está intimamente ligada à defesa da democracia e de sua base legal, a Constituição.

O constitucionalista Lênio Streck afirmou: “Contra a voz das ruas, o ronco da Constituição.”