Em foto de 2003, soldados dos EUA patrulham área perto da base de Bagram (Afeganistão)

A publicação de segunda-feira pelo Washington Post de entrevistas com altos funcionários dos EUA e comandantes militares expõe todo o fracasso da criminosa guerra dos EUA ao Afeganistão  – a mais longa da história do país –

A dimensão do fracasso da criminosa guerra de 18 anos dos EUA ao Afeganistão ficou exposta na publicação, pelo Washington Post, na segunda-feira, das entrevistas, feitas pelo próprio governo norte-americano, com altos funcionários e comandantes militares, sobre a real situação da ocupação, e seus corolários, a corrupção, miséria e devastação.

O Post obteve as entrevistas brutas após uma batalha judicial de três anos pela Lei da Liberdade de Informação. Os documentos inicialmente não eram secretos, mas o governo Obama decidiu mudar sua classificação, assim que o jornal procurou obtê-los, para impedir que a verdade fosse conhecida.

As entrevistas foram realizadas como parte do projeto “Lições Aprendidas” de iniciativa do escritório do Inspetor-Geral Especial para a Reconstrução do Afeganistão (SIGAR) entre 2014 e 2018, sob o enfoque de “rever as falhas” da intervenção com a meta de “evitar sua repetição”.

John Sopko, diretor da SIGAR, admitiu ao Post que as entrevistas forneceram evidências irrefutáveis de que o povo norte-americano tem sido “constantemente enganado” sobre a guerra no Afeganistão.

O que emerge das entrevistas, conduzidas com mais de 400 oficiais militares dos EUA, agentes das forças especiais, funcionários da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) e conselheiros seniores dos comandantes dos EUA no Afeganistão e da Casa Branca, é uma sensação predominante de fracasso, misturado à amargura e cinismo.

Sinceridade que ficou registrada à medida que os participantes não esperavam que suas palavras viessem a público.

“Se o povo americano soubesse a magnitude desta disfunção… 2.400 vidas perdidas. Quem vai dizer que esta guerra foi em vão?”, confessou em 2015, aos entrevistadores do governo, o “czar da guerra do Afeganistão” dos governos W. Bush e Obama, tenente-general, Douglas Lute, agora na reserva.

Stephen Hadley, conselheiro de segurança nacional da Casa Branca sob W. Bush, foi ainda mais explícito em sua admissão do desastre no Afeganistão e nos outros países ocupados. Ele disse aos seus entrevistadores da Sigar que Washington não tinha um “modelo pós-estabilização” – isto é, pós-invasão – “que funcionasse”, acrescentando que isso havia sido provado “não apenas no Afeganistão, mas também no Iraque”. O que é verdade, e tantos veteranos de guerra mutilados estão aí para confirmar.

“Eu não tenho nenhuma confiança de que se fizéssemos isso de novo, faríamos melhor”, acrescentou.

Um ex-embaixador no Afeganistão e ex-vice-rei, nos governos de Obama e de W.Bush, Ryan Crocker, definiu o “desenvolvimento da corrupção em massa” como o “maior e único” projeto implementado pela invasão no país. “Infelizmente e inadvertidamente”, acrescentou, se desculpando. “Uma vez que chega ao nível que eu vi”, a corrupção, observou, “fica em algum lugar entre incrivelmente difícil e totalmente impossível de corrigir”.

Corrupção irrigada desde Washington, com US$ 133 bilhões malbaratados – mais do que o Plano Marshall que reconstruiu a Europa Ocidental após a II Guerra -, com corporações norte-americanos e ‘sócios’ locais, mais políticos colaboracionistas se lambuzando todos numa escala poucas vezes vista, enquanto o país seguia em ruínas e apenas a produção de matéria prima para a heroína não parava de crescer.

Um coronel do Exército que aconselhou três dos principais comandantes dos EUA no Afeganistão disse aos entrevistadores que, em 2006, o governo fantoche apoiado pelos EUA em Cabul tinha se “auto-organizado em uma cleptocracia”.

Um ex-oficial sênior do National Endowment for Democracy disse aos entrevistadores que os afegãos com quem ele havia trabalhado “eram a favor de uma abordagem socialista ou comunista, porque foi assim que eles se lembraram das coisas da última vez que o sistema funcionou”. Ou seja, antes que a intervenção da CIA, montando com o serviço secreto paquistanês e com os mulas e o dinheiro saudita uma insurgência wahabita nos anos 1980, para impedir a reforma agrária e a educação das mulheres, entre outras conquistas que o governo popular então no poder buscava realizar. Mais de um milhão de civis morreram na guerra civil assim desencadeada.

O mesmo ex-oficial também culpou a “adesão dogmática aos princípios do mercado livre” pelo fracasso dos “esforços de reconstrução” dos EUA no Afeganistão.

Os entrevistados também falaram sobre seus esforços inúteis para treinar as “forças de segurança afegãs” – isto é, a tropa colaboracionista – para que lutasse por “conta própria” em defesa do governo fantoche e corrupto.

Um oficial das forças especiais disse aos entrevistadores que a polícia afegã que suas tropas haviam treinado era “terrível — o fundo do barril no país que já está no fundo do barril”, estimando que um terço dos recrutas eram “viciados em drogas ou talibãs”.

Outro conselheiro dos EUA disse que os afegãos com quem ele trabalhava “fediam a combustível de jato” porque estavam constantemente contrabandeando-o para fora da base para vender no mercado negro.

Enquanto essa era a realidade no terreno – assim como o avanço da guerrilha contra a ocupação -, os presidentes dos EUA no período – W. Bush e Obama – e seus principais comandantes militares não paravam de mentir, insistindo na ficção de que “progressos” estavam sendo feitos e de que a guerra estava sendo “ganha”. O mais recente a cantar ‘vitória’ foi Trump, em uma viagem relâmpago no Dia de Ação de Graças.

A Casa Branca e o Pentágono mentiam no atacado, enquanto a soldadesca, os conselheiros, os empreiteiros e a mídia amiga cuidavam do varejo.

“As pesquisas, por exemplo, não eram totalmente confiáveis, mas reforçaram que tudo o que estávamos fazendo era certo e nos tornamos um cone de sorvete se autolambendo”, disse um conselheiro de contra-insurgência à Sigar.

A fuga da realidade era tanta que, como assinalou um funcionário do Conselho de Segurança Nacional, cada piora passou a ser vista como um sinal de “progresso”.

“Por exemplo, os ataques estão piorando? Isso porque há mais alvos para eles dispararem, então mais ataques são um falso indicador de instabilidade”, relatou.

“Então, três meses depois, os ataques ainda estão piorando? ‘É porque os talibãs estão ficando desesperados, então é realmente um indicador de que estamos ganhando’”.

Tudo servia de explicação para manter o fluxo de tropas e dólares, enquanto a carnificina não parava. No ano passado 3.804 civis afegãos foram mortos na guerra, o número mais alto desde que a ONU começou a contar vítimas há mais de uma década. Os ataques aéreos dos EUA também subiram para um recorde, matando 579 civis nos primeiros 10 meses deste ano, um terço a mais do que em 2018.