Putin propõe ação conjunta com Xi por mecanismo multilateral em apoio a uma transição pacífica afegã

O hediondo atentado cometido pela afiliada local do Estado Islâmico com um homem-bomba, que matou 62 civis afegãos, 28 guardas talibãs e 13 marines nos portões do aeroporto de Cabul, e feriu mais de 150 pessoas, reforça a importância da mensagem dos governos da China e da Rússia, no dia anterior, chamando a comunidade internacional a uma ação coordenada que preserve o Estado nacional afegão, apoie uma transição pacífica e inclusiva e impeça que a instabilidade se espalhe às nações vizinhas – sem o que não é viável nem deter o terrorismo ou conter o narcotráfico.

Ao Talibã, os presidentes Xi Jinping e Vladimir Putin exortaram ao combate ao terrorismo e ao narcotráfico e, em especial, à constituição de um governo inclusivo, ao mesmo tempo em que salientaram seu consenso contra a ingerência externa no Afeganistão e pelo respeito às opções tomadas pelo povo afegão.

A análise da situação no Afeganistão foi um dos principais temas da videoconferência entre Xi e Putin, motivada pelos 20 anos do Tratado de Amizade China-Rússia, que elevou o relacionamento dos dois países a um patamar de parceria estratégica, em defesa da soberania, da democracia, da paz e do direito internacional.

As cenas brutais no aeroporto de Cabul reforçam a percepção das ameaças que atingem o país, e que são, no essencial, fruto dos 20 anos de ocupação e de crimes de guerra dos EUA, desde a tortura em Bagram até as chacinas de festas de casamento com drones, e da política da CIA, aliás, iniciada no Afeganistão nos anos 1980, de instrumentalizar fanáticos. Daí veio a Al Qaeda e seus múltiplos rebentos.

Também se mostrou fracassada a estratégia escolhida por Washington de sair deixando a casa pegar fogo, e apostando no pior depois da retirada. Foi o maior número de soldados norte-americanos mortos em um único dia no Afeganistão desde 2011.

Foi como registrou o Global Times: em sua retirada do Afeganistão realizada como “uma fuga”, os norte-americanos “não levaram em consideração a reconstrução” do país. O ataque ao aeroporto é a outra face daquele abandono da base de Bagram, na calada da noite, sem se dar sequer ao trabalho de avisar o exército fantoche.

O caos que o governo Biden provocou no aeroporto, aglomerando sem qualquer planejamento multidões de afegãos aos quais se anunciou a concessão do ‘visto para Miami’, também não era propriamente inocente e ‘preocupado’ com ex-auxiliares. Foi a promoção explícita de um “êxodo de cérebros” – como até o Talibã notou.

Agora, a grande preocupação de Biden é com o estrago que o desastre de Cabul e vergonhosa retirada do Afeganistão poderá causar nas eleições intermediárias do próximo ano.

No último dia 15, o Talibã tomou Cabul sem disparar um tiro em meio à fuga do presidente instalado pelos 20 anos de ocupação imposta por Washington. A retirada norte-americana deverá estar concluída na terça-feira (31).

O Talibã condenou o “incidente horrível” do aeroporto e prometeu “levar os culpados à justiça”. Como assinalou o jornal chinês Global Times, os ataques terroristas do Estado Islâmico só tornarão a retirada do governo Biden “mais miserável e infame”. A repetida incompetência da equipe Biden “está clara para todos”.

O morticínio no aeroporto pôs em realce uma declaração já feita anteriormente pelo Talibã, e repetida a Pequim, Moscou e Washington, de que “não permitirá” que nenhuma força use o Afeganistão para atingir um terceiro país.

Mas, como sublinhou o jornal chinês Global Times, a erradicação do terrorismo requer “cooperação máxima entre a comunidade internacional e o governo local, para que a paz e a estabilidade possam encontrar seu terreno no Afeganistão e não haja espaço para o terrorismo”.

Há, ainda, o que o GT chama de “a complexidade do Afeganistão”. “As montanhas que se tornaram o cemitério de um império após o outro, também bloqueiam o país de uma governança moderna”. “O tribalismo permite que o extremismo encontre um abrigo e um novo ponto de partida”.

Curiosamente, nos últimos dois anos não faltaram relatos, sobretudo de fontes russas, denunciando que jihadistas do Estado Islâmico vinham sendo transportados por via aérea de áreas sob controle norte-americano na Síria para o Afeganistão.

Rússia e China vêm chamando a comunidade internacional a ouvir as palavras do novo regime e “julgar suas ações”. A videoconferência também demarcou a disposição de Pequim e Moscou para ajudarem a reconstruir a paz, estabilidade e desenvolvimento no Afeganistão com base no respeito à vontade e escolha do povo afegão, em contraposição às já anunciadas sanções e novas ameaças dos EUA.

Também salientou o apoio que poderá ser prestado pela Organização de Cooperação de Xangai, que reúne os Estados ex-soviéticos da Ásia Central, Rússia, China, Paquistão e Índia, com a iminente oficialização do Irã, e na qual o Afeganistão já tem o status de observador.

Como destacou Putin, a Rússia está disposta a se comunicar de perto com a China e participar ativamente de um mecanismo multilateral sobre a questão afegã para promover uma transição pacífica, reprimir o terrorismo, cortar o contrabando de drogas, prevenir a propagação de riscos à segurança do Afeganistão, resistir à interferência e destruição por parte das forças forâneas e salvaguardar a estabilidade regional, disse Putin.

Xi enfatizou que a China respeita a soberania, independência e integridade territorial do Afeganistão, insiste em não interferir em seus assuntos internos e sempre desempenhou um papel construtivo na promoção de uma solução política para a questão afegã.

Putin disse que as mudanças atuais na situação afegã mostram que as forças externas ‘promovendo à força seus modelos políticos não funcionaram e só trarão destruição e desastre para esses países.

Embora Xi e Putin não hajam se referido explicitamente à essa política de sanções e estrangulamento delineada pelo governo Biden, as chancelarias russa e chinesa tem abertamente tratado da questão.

O ministro das Relações Exteriores Wang Yi, em conversa com sua homóloga holandesa, Sigrid Kaag, chamou a apoiar o Afeganistão, que enfrenta vários desafios – conflitos complexos de grupos étnicos e religiosos, questões de pobreza e refugiados, e risco de uma guerra civil – que precisam ser tratados.

Wang acrescentou que, como iniciador da ‘questão afegã’, os EUA não deveriam simplesmente se afastar ou impor sanções ao Afeganistão. Ele apontou que é responsabilidade dos EUA lidar adequadamente com o caos em torno do aeroporto de Cabul, fornecer a assistência econômica e humanitária necessária ao Afeganistão e ajudar a realizar uma transição suave no país por meio de ações concretas.

Também a ONU chamou o Talibã a respeitar os direitos das mulheres, que constituem, advertiu, “linhas vermelhas” para a avaliação do novo regime.

As sanções de Biden

Começam a ganhar peso os alertas quanto a que uma política de sanções e estrangulamento possa desestabilizar o Afeganistão, ameaçando sua própria existência enquanto Estado viável, empurrando multidões à imigração rumo a Europa, ampliando o narcotráfico e multiplicando a fome.

Isso sem falar na proliferação do terrorismo, de que o massacre no aeroporto é o alerta lúgubre.

As medidas iniciais de Biden subtraíram ilegalmente do novo governo de Cabul reservas de US$ 9,5 bilhões mantidas no Federal Reserve de Nova York, assim como foram vetados US$ 500 milhões em direitos de saque a que o país teria direito do FMI, além de empréstimo do Banco Mundial.

O Diretor Executivo do Programa Mundial de Alimentos da ONU, David Beasley, disse que 14 milhões de pessoas no Afeganistão – um terço da população – enfrentam insegurança alimentar. Isso inclui dois milhões de crianças que já estão desnutridas.

Ele advertiu que a agência precisa de US$ 200 milhões até o final do ano para continuar suas operações no Afeganistão. “Temos quatro milhões de pessoas nas áreas mais difíceis, onde o inverno apenas aumenta a urgência de alcançá-los”, disse ele.

Além das décadas de guerra, a segurança alimentar do Afeganistão também é ameaçada pela seca e pandemia do coronavírus.

Beasley disse que o PMA começaria a ficar sem alimentos em setembro sem o financiamento adicional. Ele disse que recebeu garantias do Talibã de que a entrega da ajuda poderia continuar sem impedimentos. “Até agora, eles [o Talibã] cooperaram e nos deram o acesso de que precisamos”, disse Beasley. “Espero que continue”.

Herança

A ocupação transformou o Afeganistão em fonte de 85% do ópio no mundo, matéria prima para a heroína. Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), o ópio em 2019 equivaleu a até 11% do PIB afegão.

No ano anterior à invasão, a produção de ópio caíra para 180 toneladas, total que sob a ocupação foi multiplicado por 40 vezes. A outra face disso se encontra nos EUA: o número de usuários de heroína nos EUA subiu de 190 mil em 2001 para 4,5 milhões em 2017, segundo a investigadora Sibel Edmonds.

Na semana passada, um porta-voz do Talibã prometeu proibir o contrabando e a produção de drogas, repetindo o que fez em 2001.

Analistas advertiram que as sanções e o colapso econômico podem estimular a produção de drogas ilícitas. “Se não houver como financiar um governo, não haverá mais empregos públicos. Muitas pessoas podem voltar para a terra. O cultivo da papoula do ópio é um trabalho muito trabalhoso. Se houver mais trabalho, pode haver mais ópio”.

“A imposição de sanções generalizadas poderia muito bem alimentar uma crise econômica que levaria a um grande número de refugiados e ao aumento dos níveis de produção de drogas, o que sem dúvida impactaria a região e a Europa”, advertiu um analista à Al Jazeera.

Segundo a Bloomberg, Cabul enfrenta uma crise econômica crescente, com preços de alimentos básicos como farinha e óleo em alta, farmácias com escassez de remédios e caixas eletrônicos sem dinheiro. O diretor do Banco Central fugiu do país.

A agricultura está em grande parte abandonada, e um terço de seus alimentos é importado.

A ocupação criou uma situação inteiramente artificial, bastando dizer que em 2020 a assim chamada ajuda internacional representou 42,9% do PIB do Afeganistão e forneceu 75% dos gastos do governo (grande parte disso alimentou a corrupção generalizada).

Apenas 35% da população tem acesso à eletricidade segundo a Afghanistan Breshna Sherkat, a empresa de energia do Afeganistão, e 70% da energia é importada, um reflexo direto do fracasso da ocupação americana. Há poucos dias, depois de pedido do novo governo afegão, o vizinho Irã retomou as exportações de combustível para o Afeganistão.

A nova situação no Afeganistão poderia possibilitar que o país seja integrado à Iniciativa Rota e Cinturão (Nova Rota da Seda), que já resultou no vizinho Paquistão investimentos de cerca de US$ 60 bilhões em projetos de infraestrutura. Um país muito pobre, no entanto o Afeganistão, segundo uma estimativa das autoridades da ocupação, tem com uma riqueza mineral estimada em US$ 1 trilhão, principalmente lítio, cobre e terras raras. “Materiais essenciais para a transição global de energia verde”, destacou a Bloomberg.