Acusação expõe com clareza como Trump instigou a invasão do Capitólio
Ao cabo de três dias de contundente exposição dos fatos, os promotores do julgamento no Senado dos EUA demonstraram que o então presidente preparou, incitou e desencadeou a invasão do Congresso dos EUA no dia 6 de janeiro, na tentativa de impedir a transmissão pacífica de poder nos EUA. Acusação ressaltada pela exibição de vídeos – que deixaram os senadores em silêncio – e pelo uso das próprias palavras e tuitadas de Donald Trump, berros da turba e registros de declarações de arruaceiros.
Se Trump escapar da condenação – como advertiu o deputado e professor de direito constitucional Jamie Raskin – “qualquer presidente poderia incitar uma violenta insurreição contra o governo” no futuro.
“Que ofensa maior poderia um presidente cometer do que incitar uma insurreição contra nosso governo de sua cadeira de poder?”. “O que é – o que seria – uma conduta passível de impeachment, se isso não for?”, questionou Raskin, voltando a colocar os senadores republicanos diante da hora da verdade.
Na sexta-feira, já na alegação da defesa, os advogados de Trump, Bruce Castor e David Schoen, voltaram a asseverar que o impeachment era inconstitucional – tese já recusada pelo Senado -, que os invasores agiram por ‘conta própria’ e que, quanto à incitação da turba, ele estaria protegido pela emenda da ‘liberdade de expressão’.
Até aqui, só seis – dos 17 senadores republicanos necessários para perfazer a maioria de dois terços,, somados aos 50 democratas – sinalizaram a disposição de deter o “incitador- chefe”, como Trump foi classificado por Raskin. “Eles foram enviados aqui pelo presidente. Ele recrutou a turba e incitou a turba”, assinalou.
Não há como os onze senadores republicanos que faltam para fornecer o placar do impeachment não hajam ouvido, e também os demais parlamentares acossados no dia 6 de janeiro, os berros de “enforquem Pence” e de “Naaaancy, apareça para brincar” da turba e das portas sendo arrombadas a pauladas.
No último dia da argumentação da acusação, os promotores martelaram as palavras de Trump no ‘comício’ que serviu de concentração para o assalto ao Congresso: “vocês têm que lutar como o inferno. E se vocês não lutarem como o diabo, não terão mais um país”. Até que dá a ordem de marchar contra o Congresso dos EUA: “Vamos caminhar até o Capitólio, eu amo a avenida Pensilvânia, eu vou estar com vocês”. Antes, voltara a dizer que havia vencido “por uma avalanche de votos”.
Incitação respondida pela turba aos gritos de “invada o Capitólio, lute por Trump” e “sem Trump, sem paz”, entremeados pela farsante palavra de ordem de “parem o roubo”, dando a partida ao assalto ao Congresso dos EUA. Aliás, a marcha pela avenida Pensilvânia não estava incluída na permissão inicial para o comício, e só foi autorizada depois por ingerência direta da Casa Branca.
Os promotores também enfatizaram o modus operandi de Trump, presenciado muitas vezes ao longo de seu mandato, instigando supremacistas brancos, neonazistas, racistas e outros fanáticos, e depois os apoiando após a violência.
A acusação também denunciou a recusa de Trump em assumir a responsabilidade pela invasão e suas conseqüências, incluindo três policiais mortos e 146 feridos – um deles perdeu um olho, outro, três dedos, e um sofreu um infarte ao ser quase linchado na entrada do Capitólio. Entre os invasores, mais três mortes, uma delas na tentativa de violar o plenário da Câmara.
Como enfatizou o promotor e deputado Ted Lieu, “isso envia sua própria mensagem única e perigosa: é ‘patriótico’ incitar um ataque e escapar impune. Temos que enviar uma mensagem de que isso não pode ser feito nunca mais”.
A equipe de acusação rememorou, inclusive com vídeos, episódios anteriores em que Trump exortou seus seguidores à violência. Um dos vídeos mais chocantes é o do protesto neonazista de 2017 em Charlottesville, em que um fanático lança seu carro contra oponentes pacíficos, matando uma jovem. “Ambos os lados têm gente muito boa”, diria então Trump.
Ou no caso do complô de supremacistas brancos para sequestrar e matar a governadora democrata de Michigan, por manter a política de distanciamento social, contra a qual Trump chamou, via Twitter, a “libertar Michigan”.
Complô que foi precedido por uma invasão do Capitólio estadual em Lansing por supremacistas armados.
Conforme as fotos de cada dia eram exibidas, Raskin observou: “esta multidão inspirada em Trump pode realmente parecer familiar para você. Bandeiras de batalha confederadas, chapéus MAGA, armas, equipamentos de camuflagem do Exército – assim como os insurrecionistas, que apareceram e invadiram a Câmara em 6 de janeiro. O cerco do Capitólio de Michigan foi efetivamente um ensaio geral em nível estadual para o cerco do Capitólio dos EUA que Trump incitou em 6 de janeiro.”
Também a arruaça promovida em 12 de dezembro pelos Proud Boys, em que quatro igrejas negras foram atacadas e que mereceu de Trump a postagem de que “a luta apenas começou”. “Quando seus apoiadores enviaram ameaças de morte, o que ele fez? Trump os endossou”, sublinhou o deputado e promotor de acusação Joe Neguse.
“Então Trump comprou US $ 50 milhões em anúncios para promover sua mensagem para o mesmo grupo” de apoiadores, que eram violentos e estavam prontos para explodir, acrescentou Neguse. Alarido nas redes sociais que o promotor classificou de “chamado às armas”. “Ele os convidou para um evento específico, em um dia específico, em um horário específico” em 6 de janeiro “para ‘parar o roubo’”, destacou o deputado e promotor. “Ele poderia ter cancelado, era o único que podia. E não o fez”.
Raskin, por sua vez, enfatizou que Trump não tinha como querer se esconder sob a proteção da 1ª Emenda, “liberdade de expressão”, já que como presidente não pode incitar um golpe, ajudar uma potência estrangeira ou incitar uma insurreição sem violar a Constituição e seu próprio juramento de mantê-la.
Também é vazia a alegação de que, por seu mandato já ter se encerrado no dia 20 de janeiro, não haveria como julgar o impeachment de Trump. Se isso valesse, presidentes em final de mandato ficariam livres para roubar, fraudar e, eventualmente, trair o país.
Além disso, o pedido de abrir julgamento por impeachment foi aprovado no dia 13, quando Trump ainda estava no cargo.
Raskin sublinhou outra questão de fundo: que o discurso de Trump visava, na verdade, destruir os direitos da Primeira Emenda, não apenas dos congressistas forçados a fugir no Capitólio, mas das dezenas de milhões de pessoas que votaram na eleição e teriam seus votos suprimidos, se Trump tivesse sucesso.
A deputada Diana DeGette, após mostrar clipes, tuitadas e selfies dos próprios invasores do Capitólio, sublinhou que todos “pensavam que estavam seguindo ordens de seu comandante-chefe” e que eram imunes à prisão por serem “patriotas”. Ela também fez menção a postagens extremistas online no site Parler, tipo ‘hora de lutar!’ e ‘a guerra civil está diante de nós’.
Para Neguse, o incitamento de Trump não começou depois que o democrata Joe Biden o derrotou em novembro passado. Começou muito antes, na primavera passada, quando Trump, atrás de Biden nas pesquisas de opinião por 15 pontos percentuais, percebeu que poderia perder. Ele então começou a falar, com seis meses de antecedência, sobre uma “eleição roubada”, sobre ela ser “fraudada” e sobre fraude eleitoral.
A acusação observou ainda como Trump dirigiu suas baterias particularmente contra os eleitores de Filadélfia, Detroit, Atlanta e Milwaukee , cidades administradas por democratas e com grandes comunidades de pessoas de cor. Na invasão do Capitólio, era notória a presença de supremacistas brancos e todo tipo de racista.
“A coisa mais explosiva que você pode fazer em uma democracia é convencer as pessoas de que” a eleição “foi roubada”, acrescentou a acusação, ao mostrar tuitadas de Trump, que levaram seus apoiadores a acreditarem nas mentiras que repetia.
Raskin expôs na tela a tuitada mais infame de Trump, que antecipou o 6 de janeiro: “Esteja lá! Vai ser selvagem!”.
No encerramento de sua argumentação, o promotor do julgamento, o deputado David Cicilline, foi à raiz do problema, ao colocar a questão definitiva: e se Trump tivesse sido bem sucedido?
Cicilline observou que um ataque ao Capitólio não havia acontecido nem mesmo durante a Guerra Civil Americana.
“Pela primeira vez em nossa história, um presidente em exercício instigou ativamente seus partidários a interromper violentamente o processo que prevê a transferência pacífica do poder de um presidente para o outro. Pense nisso por um momento”, destacou. “E se o presidente Trump tivesse sido bem-sucedido? E se ele tivesse conseguido derrubar a vontade do povo e nossos processos constitucionais?”
E – questão que fica para os senadores republicanos decidirem -, “Quem entre nós está disposto a arriscar esse resultado, está disposto a arriscar o futuro da nossa democracia, deixando sem resposta os crimes de Trump contra a Constituição?”
Registre-se que no debate no Senado foi considerado oportuno não entrar em detalhes sobre porque a Polícia do Capitólio ficou desguarnecida no dia do comício de Trump e porque a Guarda Nacional local foi desarmada 48 horas antes e proibida de interferir. E, ainda, porque o Pentágono demorou horas para autorizar que as Guardas Nacionais dos estados vizinhos fossem socorrer o Congresso invadido, como era pedido quase em desespero.
A defesa de Trump optou por usar apenas três das 16 horas de que dispunha, conforme aquele velho ditado de que, nessas situações de flagrante, quanto menos falar é melhor, pois se arrisca menos a se incriminar.
Assim, conforme os advogados de Trump, são os democratas que estão sendo “guiados pelo ódio” ao pretenderem condenar o ex-presidente pelo assalto ao Capitólio.
O que seria – acrescentaram – mais uma “caça às bruxas” promovida pela esquerda, como tem ocorrido “nos últimos quatro anos”. “A acusação nada tem a ver com fatos, evidências e interesses americanos”, arriscou-se a dizer o advogado Michael van der Veen.
Trump, assegurou, é um defensor da “lei e da ordem” e só os invasores é que devem ser processados pelo assalto ao Congresso dos EUA no dia da certificação da vitória da oposição democrata.
Fazendo de conta não saber que nos últimos seis meses Trump andou mentindo aos seguidores de que a eleição estava sendo fraudada, além de ter postado incitações ao comício de “Parem o Roubo” do dia 6 de janeiro em Washington, Van der Veen asseverou que o ataque ao Capitólio foi executado por pessoas que agiram “de moto próprio”.
“Não é possível incitar o que já estava para acontecer”, acrescentou Van der Veen, embora admitindo que o ataque foi um ato condenável e violento.
“Eles não ligaram nada ao que disse o presidente”, reforçou seu parceiro da defesa, David Schoen.
Como se os supremacistas brancos, neonazis, adeptos do QAnon e racistas em geral não tivessem berrado o tempo todo “Sem Trump, sem paz”, “Lute por Trump” e “Quatro anos mais” e não existissem os vídeos do comício já vistos por dezenas de milhões de pessoas nos EUA nos últimos dias.
Segundo a defesa do ex-presidente, esses grupos planejaram aquela ação “ainda antes de Trump ter discursado no comício” que antecedeu a marcha até o Congresso.
Para Van der Veen, o que Trump disse no comício “é uma retórica política comum, em nada diferente da linguagem usada por todos os partidos durante centenas de anos”.
O douto advogado também assinalou que a disposição dos democratas em cortarem as asas a Trump “divide a nação”.