Há autores que veem Machado de Assis como alienado. Não é verdade. O exemplo é a maneira como ele deixou registradas, literariamente, suas impressões do 13 de maio, quando a escravidão foi proibida.

Por José Carlos Ruy

Machado de Assis, que é, por muitos, considerado o maior escritor brasileiro, é também motivo de grandes controvérsias – muitos cobram dele uma militância política e social que, por temperamento e limitações próprias do tempo e do meio em que viveu, ele não externava. Muitos militantes e escritores não conseguem ver crítica social ou sentido de natureza política em sua obra. O mais radical nessa linha foi o escritor e dirigente comunista Octávio Brandão que, diz Gustavo Bernardo Krause, ao qualificá-lo como “cético”, “niilista”, “cínico” e “pessimista”, foi autor do “ataque mais violento que Machado recebeu”.

A avaliação de Brandão é errada e injusta. Os escritos literários machadianos estão repletos de referências sociais e políticas, apesar das limitações pessoais e sociais que Machado tinha e vivia.

Como escritor ele pode ser visto como um realista dialético, que colocava na boca de alguns personagens as emoções, sentimentos e convicções que o autor se considerava impedido de manifestar de forma direta.

Um bom exemplo são as referências à escravidão e à abolição que existem em sua obra ficcional.

Geralmente, quando se trata do tema escravidão na obra de Machado de Assis, são lembrados os contos “Pai contra mãe” ou “O caso da vara” – que contam a ação de um caçador de escravos fugidos (no primeiro), ou a omissão de um rapaz que fugia, ante o castigo cruel de uma meninota escrava (no segundo).

Mas há inúmeras outras referências, sempre condenando a escravidão, em sua obra – nos contos e nos romances.

Veja-se, por exemplo, os comentários do Conselheiro Aires (em “Memorial de Aires”).

O personagem descreve os comentários que circulavam no Rio de Janeiro desde meses antes da Abolição. Numa anotação que tem a data de 20 de março, ele comenta que o personagem Barão de Santa Pia, grande fazendeiro e proprietário de escravos, pensava em alforriar seus cativos porque eram dele e de sua propriedade fazia soberanamente o que decidisse, sem que o Estado (a princesa Isabel, no caso) pudesse interferir em seu poder soberano de propriedade. Nesta passagem, só não vê quem não quer a crítica à oligarquia, à ação do Estado ao interferir no direito de propriedade e proibir a escravização de seres humanos: “Quero deixar provado, teria dito Santa Pia, que julgo o ato do governo uma espoliação, por intervir no exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso.” E concluiu com uma manifestação de “esperteza” oligárquica, para ter mão de obra dócil e mal paga: “Estou certo que poucos deles deixarão a fazenda; a maior parte ficará comigo, ganhando o salário que lhes vou marcar, e alguns até sem nada, – pelo gosto de morrer onde nasceram.”

Mais adiante, Aires, um diplomata aposentado, manifestou sentimentos antiescravistas que podem ser atribuídos a Machado de Assis. Numa anotação do começo de maio, registra: “dizem que, abertas as Câmaras, aparecerá um projeto de lei. Venha, que é tempo. Ainda me lembra do que lia lá fora, a nosso respeito, por ocasião da famosa proclamação de Lincoln: ‘Eu, Abraão Lincoln, Presidente dos Estados Unidos da América…’ Mais de um jornal fez alusão nominal ao Brasil, dizendo que restava agora que um povo cristão e último imitasse aquele e acabasse também com os seus escravos. Espero que hoje nos louvem. Ainda que tardiamente, é a liberdade, como queriam a sua os conjurados de Tiradentes”.

E anota, em 7 de maio: “O ministério apresentou hoje à Câmara o projeto de abolição. É a abolição pura e simples. Dizem que em poucos dias será lei.” Nota de 13 de maio: “Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sanção da Regente.”

E registra o que viu na cidade do Rio de Janeiro: “Estava na Rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral – cortejo organizado para rodear o paço da cidade, e fazer ovação à Regente. Disseram-me depois que os manifestantes erguiam-se nos carros, que iam abertos, e faziam grandes aclamações, em frente ao paço, onde estavam também todos os ministros. Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da História, ou até da Poesia. A Poesia falará dela, particularmente naqueles versos de Heine, em que o nosso nome está perpétuo”.

Como cidadão, Machado de Assis sempre foi muito cauteloso e reservado, evitando externar abertamente opiniões pessoais. Mas, como escritor, esteve sempre presente – seja positivamente, através de opiniões que seriam dele como autor, ou negativamente, ao descrever personagens cujos comportamentos e opiniões condenou. Não foi um alienado, como se pode ver no registro que deixou em Memorial de Aires.

Referências

Assis, Machado de. “Memorial de Aires” (1908). São Paulo. Ática, 1985.

Brandão, Octávio. “O niilista Machado de Assis”. Rio de Janeiro, Organização Simões, 1958.

Krause, Gustavo Bernardo. “O bruxo contra o comunista ou: o incômodo ceticismo de Machado de Assis”. In “Kriterion”, vol.48, nº.115. Belo Horizonte, 2007. In: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2007000100014. Consultado em 23/01/2020