A representatividade racial nas organizações de esquerda
Este texto é fruto do desdobramento de uma intervenção feita por mim na reunião da Direção Nacional da entidade da qual sou dirigente e militante há 10 anos, a União da Juventude Socialista (UJS).
Por Rafael Leal*
Ao caracterizarmos corretamente o racismo como algo estrutural, estamos também dizendo que para superá-lo precisaremos de um grande movimento revolucionário que rompa (ou transforme) as estruturas sociais existentes. Na história, e pelo o que conhecemos de teoria e reflexões políticas até hoje, tal ruptura só poderia acontecer com amplos movimentos de massa que envolvam os explorados de cada sociedade. Ou seja, um movimento que congregue trabalhadores negros e brancos. Malcon X já sabia disso quando se propôs a mobilizar os trabalhadores brancos, assim como hoje nos ensina o grande professor Silvio Almeida ao dizer que a luta contra o racismo é uma luta de todos os trabalhadores contra a estrutura capitalista.
Porém, essas constatações não podem servir para que dirigentes brancos, como eu, usem como justificativa para ocupar todos espaços de lideranças das entidades de ampla representação, e achar que vão dirigir um processo de organização das massas trabalhadoras sem que estas próprias se reconheçam nestas lideranças. Este é um ponto que discutirei mais à frente. Antes disso cabe situar a questão da representatividade/identidade no local correto para as organizações que se pretendem revolucionárias.
Asad Haider em seu livro “Armadilha da Identidade” nos mostra o caráter duplo da identidade; ao mesmo tempo em que ela foi estimulada para racializar a classe trabalhadora e os mais pobres (e em alguns casos para dividi-la), é também pelo processo de afirmação da mesma em algumas formações sociais, que se pode criar uma consciência de classe revolucionária. Esta que vise uma nova sociedade onde não sejam necessárias identidades e nem classes para distinguir pessoas.
Em determinado momento do livro Asad comenta a conclusão de um estudo de Stuart Hall onde ele diz que “a raça é a maneira como a classe é vivida.” Para Asad “esse slogan não deve ser interpretado como uma descrição idealista da experiência vivida de raça e classe como categorias abstratas, como se pudessem ser aplicadas desconsiderando cada situação histórica. É na verdade uma análise materialista do modo como, nessa conjuntura histórica particular, os membros negros da classe trabalhadora desenvolveram uma consciência de luta de classe através da experiência de raça, que era ela própria vinculada a crise de hegemonia.” (1)
É neste ponto em que a representatividade de negros e negras nos espaços de liderança das organizações de esquerda é fundamental. Não se trata apenas da representação pela representação ou até mesmo da ideia de garantir reconhecimento individual de uma pequena parcela dos grupos oprimidos nos marcos do próprio capital. Por mais que as representatividades nestes termos sejam importantes elas são limitadas. Estas são as ideias dominantes (e nada revolucionárias) que existem da representatividade/identidade.
Estamos falando aqui de uma representatividade que tenha um sentido revolucionário, qual seja: coesionar uma solidariedade entre os explorados no sentido de pôr abaixo esta estrutura que os explora e que os racializa. É afirmar a identidade da raça para que se crie uma consciência que ela precisa acabar, pois é através da racialização que o capital opera sua maximização da exploração.
O movimento comunista já faz isso há um bom tempo. Nós sempre reforçamos a identidade da classe trabalhadora, porém num sentido revolucionário, de que no futuro vamos viver em uma sociedade sem classe, portanto, sem a necessidade destas identidades.
Parafraseando o gigante Milton Santos: “eu sou um negro brasileiro, mas quero ser um brasileiro integral.” Não estou dizendo aqui que a velha tática da identidade da classe trabalhadora esteja ultrapassada, ela ainda se mostra potente, principalmente com as recentes greves dos trabalhadores de aplicativos. Porém, o neoliberalismo criou uma massa de desempregados, em sua maioria esmagadora negros, que não possuem um “chão de fábrica” como elo comum para construção da solidariedade.
Por esses motivos acredito que as reflexões do Asad Haider, apoiadas no Stuart Hall, servem para o Brasil. Jessé de Souza, importante estudioso das classes sociais no Brasil, no livro “A Construção da Subcidadania Brasileira”, argumenta algo similar quando diz que o que é invisibilizado no Brasil são as relações de classe e não de raça, ou seja, a raça passa a ser o modo como o sujeito percebe a classe.
Haider conclui brilhantemente em seu livro, quando analisa o caso Britânico, um dos primeiros países a aderir à agenda neoliberal, que a grande potência transformadora seria a união dos novos movimentos de representação de identidades com os tradicionais de classe, no sentido de lutar por uma sociedade sem identidades racializadas e sem divisão de classes. As passeatas recentes, puxadas pelas torcidas organizadas e pelo movimento negro, demonstram uma tendência neste sentido. Pela primeira vez em muito tempo vimos um perfil de manifestante mais popular em um movimento amplo da esquerda. As contradições sociais tendem a impulsionar e fazer com que isso se torne cada vez mais latente.
Claro que estas rápidas afirmações iniciais carecem de mais investigação e debate. Este texto tem este intuito também, de provocar o debate e, consequententemente, as investigações acerca desta temática. Pois bem, mesmo carecendo de mais investigações sobre a questão da representatividade e a sua importância para coesionar (ou não) uma solidariedade entre os explorados, decidi escrever esta segunda parte do texto, pois parto dos pressupostos que sustentei até agora neste texto.
Quero agora tecer algumas considerações de como podemos fazer para que estas organizações possam dar vazão ao processo de alçar quadros negros para espaços de liderança. Uma das questões basilares para que isto aconteça é que a organização tenha um permanente processo de formulação teórica e política sobre o tema, bem como uma estrutura capaz de organizar e difundir estas formulações. Não quero me ater sobre este ponto, pois aqui já temos um certo conhecimento do caminho das pedras. Quero chamar atenção para como os processos de reprodução das desigualdades sociais acontecem dentro das próprias organizações, como isto é um entrave para termos espaços de lideranças mais diversos e alguns apontamentos para superarmos esta problemática.
A primeira questão que devemos ter em mente é que não se trata de um processo simples, pois estamos falando de romper com a reprodução das condições de classe e, consequentemente, de raça. As organizações, por mais revolucionárias e progressista que sejam, reproduzem em menor medida as relações sociais que mantém as desigualdades de classe e raça. Todas as instituições (ou aparelhos ideológicos) desta estrutura social, reproduzem mesmo que inconscientemente o padrão de relações sociais hegemônicos, pois estas são compostas por indivíduos permeados pela ideologia dominante.
Peguemos a escola como um exemplo para traçar um paralelo. O professor, inconscientemente, tem uma realização do seu “self” (que?) quando consegue transmitir o seu conhecimento a um aluno. Esta transmissão acaba ocorrendo somente com os alunos que tiveram acesso a recursos (materiais ou simbólicos) que os permitem para tal. Neste processo o professor acaba se apegando a determinados estudantes e reproduzindo as desigualdades que já vem de fora da escola. Existem diversos estudos que comprovam isto e eu já pude vivenciar na minha curta experiência como professor da rede pública em Belo Horizonte este processo. O acesso aos recursos para dispor da capacidade de assimilação de conteúdo do ensino no Brasil tem um forte recorte não só de classe, mas de raça também. A assimilação ou não desses conteúdos escolares é decisiva para a ocupação destes sujeitos no mercado de trabalho. Em linhas gerais, este é um dos mecanismos de reprodução das desigualdades no Brasil e no mundo.
Este mesmo processo acaba ocorrendo (e muitas vezes é aprofundado) no seio das nossas organizações. Quantas vezes não vimos quadros que tiveram ascensão meteóricas, pois eram dotados de boa oratória, capacidade de escrita, boa formulação teórica, entre outras qualidades, que fizeram com que se destacasse e logo alcançasse espaços importantes de direção? A grande maioria destes quadros oriundos da classe média e brancos. Por outro lado, quantas vezes vimos quadros que por conta de limitações (lembrando que não são deles e sim da estrutura em que eles cresceram) foram escanteados, limados e esquecidos pelas organizações? A grande maioria destes oriundos de classe populares e negros. Eu poderia passar uma tarde toda dando exemplos das duas situações. Inclusive, eu mesmo sou fruto da primeira situação, apesar de ser filho de uma técnica de biblioteca e um comerciário, tive muito acesso a capital cultural desde cedo, graças a meus tios e a um bom estudo no ensino fundamental. Por ser branco, nunca tive as portas fechadas e muito menos me senti menosprezado ou não acolhido em qualquer ambiente. Sobre a segunda situação (que segunda?), já vivenciei avaliações duras com quadros sem levar em conta o contexto social em que eles cresceram e todo tipo de racismo estruturado na sociedade. Coisas do tipo, “ele não sabe mexer numa planilha de excel, como vai ser dirigente da organização?”, “não consegue escrever um ofício ou fazer uma nota de conjuntura”, “não sabe fazer uma fala” “não conseguiu articular tal situação” e etc. Avaliações que mais pareciam um RH de uma grande empresa.
Diante disso, não podemos ficar somente repetindo como um mantra que precisamos alçar quadros negros a espaço de direção. É necessário ter uma mudança profunda nas organizações. Precisamos de uma política de quadros que dê conta de fazer uma avaliação completa do militante, identificar as limitações e potencialidades individuais e estruturais e, principalmente, incentivá-lo e orientá-lo a como desenvolver as potencialidades e vencer as limitações. Nossos cursos de formação precisam garantir a participação de quadros das camadas populares e negros, com bolsas e auxílio para garantir tal participação. Nas nossas decisões de quem ocupa determinada tarefa devemos “passar na frente” os quadros negros e das camadas populares, por mais que tenhamos quadros aparentemente mais “qualificados”. Além de “passar na frente” devemos ser generosos na avaliação, levando em conta sempre as limitações que o racismo estrutural e a desigualdade social impuseram para a pessoa.
As mudanças que listei acima não são só mudanças na política de quadros da organização, inclusive serão insuficientes se assim a encararmos. As mudanças devem acontecer também na dimensão da prática cotidiana da militância. Todos militantes, e principalmente os dirigentes, devem refletir sobre as condutas que reproduzem estas desigualdades no seio das organizações. As próprias interações fora dos fóruns precisam ser revistas. Antes de toda avaliação sobre as qualidades e limitações de um quadro devemos levar em conta os amplos aspectos da sua trajetória, sermos generosos e solidários para contribuirmos com seu desenvolvimento.
O debate está longe de se esgotar aqui. Muitas outras iniciativas e ações podem ser debatidas e incluídas neste processo. O que é importante, e que espero ter conseguido transmitir com este texto, é de posicioná-lo em sua devida complexidade e urgência. Sairmos somente da deliberação e analisarmos todo padrão de reprodução da desigualdade e do racismo dentro das organizações é fundamental para este passo tão importante. Somente alçar, de maneira esporádica, uma liderança negra ou outra sem revisar e transformar as estruturas de reprodução da desigualdade dentro da organização será como tapar a ferida e não tratar a doença.
Notas
(1) HAIDER, Asad. Armadilha da Identidade. Editora Veneta, Ed 01 – 2019. Pg. 124
*Professor de Sociologia, Graduando em Ciências Sociais PUC-MG e membro do Grupo de Estudos Ciência e Revolução sobre Marxismo e Althusser para o tempo presente. Dirigente do PCdoB de Minas.