A polêmica sobre a história como ciência é política e ideológica
Como já foi visto, muda a forma como as classes sociais e seus intelectuais condicionam, nas diferentes épocas históricas, as maneiras de contar a história e reconstruir o passado de acordo com sua ótica ideológica e sua visão de mundo, ressaltando seus heróis e os feitos dos antepassados que reconhece como os seus.
Por José Carlos Ruy*
No Brasil, um exemplo desta reconstrução, que legitima o presente, é representado pela obra de Francisco Adolfo Varnhagen. Historiador “oficial” do Segundo Reinado, ele foi pioneiro em ressaltar a importância da luta pela expulsão dos holandeses que haviam ocupado Pernambuco e parte do Nordeste no século XVII, e foram derrotados pela resistência dirigida pelos Restauradores, isto é, os latifundiários escravistas que estiveram à frente da luta que uniu os brasileiros para expulsar o invasor holandês (Varnhagen, 1981 e 2002).
Dois séculos depois daqueles acontecimentos, Varnhagen foi o historiador da oligarquia lstifundiária, agromercantil e escravista que dominou a monarquia após a Independência, em 1822. E destacou como fato fundador da nacionalidade justamente o evento onde os antepassados dessa oligarquia agiram com força criativa e papel dirigente incontestável. Eventos históricis em que os antepassados daquela oligarquia se constituíram em porta-vozes da sociedade e encarnaram a nacionalidade que nascia. Sua valorização por Varnhagen e pela historiografia posterior foi uma resposta a necessidades semelhantes, que os bisnetos daqueles senhores de terras e escravos enfrentavam então: o desafio de construir a nacionalidade sob sua hegemonia.
Além de ser condicionada pelos interesses mais gerais dos atores e classes sociais, a história como ciência tem uma dinâmica própria. Em certa medida, ela adquire, como todas as demais ciências, uma autonomia relativa, gerando seus próprios problemas e questões cujo esclarecimento depende da reflexão a respeito de resultados já alcançados e também da descoberta de novos dados sobre o passado, que permitem aprimorar o conhecimento e as teses que a orientam como ciência.
A luta política condiciona o conhecimento do passado e a seleção e hierarquização dos fatos em relatos consistentes nos quais os acontecimentos e os heróis podem surgir como legitimadores do status quo atual e da dominação de classe. Ou da contestação a esse status quo a partir da emergência de novas forças sociais cujo objetivo é construir novas, mais avançadas e justas maneiras de viver em sociedade.
Este é um dos traços que move a história como ciência. “Cada idade, ou cada praticante, pode fazer novas perguntas à evidência histórica, ou pode trazer à luz novos níveis de evidência. Nesse sentido, a ‘história’ (quando examinada como resultado da investigação histórica) se modificará, e deve se modificar, com as preocupações de cada geração ou, pode acontecer, de cada sexo, cada nação, cada classe social”, diz o historiador marxista inglês Edward P. Thompson (1981).
Se a emergência de novos personagens e a ação de novas classes sociais condiciona tão fortemente o relato histórico, é preciso frisar também outro aspecto, de natureza técnica e historiográfica. Novas evidências históricas surgem na esteira do desenvolvimento do próprio conhecimento histórico e da história como ciência, levando à descoberta, valorização e incorporação de traços que ainda não haviam sido notados ou percebidos a partir dos documentos e evidências conhecidos.
Estes fatores – a emergência de novos protagonistas no cenário político e social, o desenvolvimento do conhecimento histórico, e da própria história como ciência – fazem a história avançar. São fatores que caminham juntos, como Engels já havia chamado a atenção.
Os acontecimentos do passado não mudam nem podem ser mudados. Mas o relato sobre eles pode ser moldado e reavaliado pelos intérpretes ou interesses e visão de mundo de cada classe social.
Ocorre um duplo movimento. De um lado, a luta política leva ao enriquecimento do conhecimento do passado pela incorporação da percepção de diferentes dimensões do que ocorreu e das situações vividas pelos seres humanos. Por outro lado, o próprio desenvolvimento dos instrumentos usados pelo historiador permite a formulação de novas perguntas e obriga à reorganização do conhecimento que se tem do passado.
Estes fatores emergem principalmente nos momentos de ruptura social, que são períodos de aceleração histórica e de grande efervescência política, cultural e ideológica. São períodos em que os problemas e contradições mais gerais das sociedades são amplamente debatidos, sendo propostas soluções para as questões candentes enfrentadas pelas classes e grupos sociais.
Historiadores tão diferentes e notáveis como Fernand Braudel e Edward H. Carr reconheceram esta especificidade da história.
Numa aula inaugural no Collège de France em 1950, Braudel disse que as “grandes catástrofes não são forçosamente as produtoras, mas são seguramente as anunciadoras infalíveis das revoluções reais, e constituem sempre uma intimação a ter que pensar, ou melhor, repensar o universo”. Carr foi mais sintético e, numa conferência pronunciada em Cambridge, em 1961, reconheceu não haver nada “como uma revolução para criar um interesse pela história” (Braudel: 1992; Carr: 1982).
Nos momentos de ruptura as classes dominantes precisam reexaminar o passado em busca de novos argumentos para defender e fortalecer a legitimidade de seu mando. Em contrapartida, para as classes e setores sociais que as desafiam, esse reexame faz parte do esforço de aprender com a experiência das gerações anteriores e identificar as leis mais gerais que regem a evolução da sociedade, cujo conhecimento é necessário para uma postura fértil e criativa frente aos desafios e contradições do presente. Buscam construir sua própria identidade de classe ao expor a antiguidade e persistência de sua luta contra a opressão.
Esta é outra importante característica da história como ciência: é uma ciência política. Ela nasceu nos palácios, em tempos imemoriais, quando os escribas tinham a função de registrar os feitos e glórias dos poderosos. Com o tempo, a emergência das classes sociais que estão em oposição ao sistema de poder vigente trouxe pontos de vista alternativos na elaboração dos relatos sobre o passado.
Esse é um debate em que historiadores, cientistas sociais e outros intelectuais dão de bom grado sua contribuição.
Uns encaram a história como ciência; outros recusam esse estatuto a ela. Estas são as duas vertentes da arte de contar a experiência humana, e a postura do historiador revela sua adesão aos que querem manter tudo como está, ou os que defendem a mudança e o avanço social.
Além de científica, a polêmica sobre o caráter da história e a possibilidade de seu conhecimento objetivo é política e ideológica, e separa nitidamente pesquisadores comprometidos com a perspectiva da mudança social e da intervenção humana no curso da história daqueles que, por várias razões e múltiplas maneiras, defendem a manutenção e a hegemonia da ordem social vigente, pregam a descrença nas mudanças e, com mais força, na impossibilidade da intervenção humana consciente e organizada para influir no curso da história.
Referências:
Braudel, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo, Perspectiva, 1992.
Braudel, Fernand. Reflexões sobre a história. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
Carr, Edward H..Que é história? Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982
Thompson E. P.. A miséria da teoria – ou um planetário de erros (uma crítica ao pensamento de Althusser). Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981
Varnhagen, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. Belo Horizonte, São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1981
Varnhagen, Francisco Adolfo de. História das lutas com os holandeses no Brasil – desde 1624 até 1654. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército Editora, 2002
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José Carlos Ruy* é jornalista, escritor, estudioso de história e do pensamento marxista.
As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do PCdoB