A Constituição de 1988 e o PCdoB, por José Reinaldo Carvalho
Neste 5 de outubro transcorre o 32º aniversário da Constituição de 1988. Apelidada pelo presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, como “Constituição Cidadã”, sua aprovação constituiu um marco da luta democrática do povo brasileiro, coroou o fim do regime militar, que tinha sido superado com a eleição de Tancredo Neves, em março de 1985, no Colégio Eleitoral.
Por José Reinaldo Carvalho*
No discurso em que promulgou a nova Carta, o dr. Ulysses, como era chamado, disse que a Constituição de 1988 é “o documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil”.
As forças conservadoras e neoliberais, a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, violaram várias vezes a Constituição, violação continuada pelos golpistas de 2016 e o atual governo de extrema direita de Jair Bolsonaro.
A aprovação da Constituição de 1988 abriu nova fase na luta do povo brasileiro e apresentava novos desafios. A tortura, prática sistemática contra presos políticos durante o regime facínora implantado em 1964, e que o atual ocupante do Palácio do Planalto defende despudoradamente, passava a ser considerada crime inafiançável e imprescritível. As eleições tornaram-se diretas em todos os níveis. Direitos e garantias individuais e coletivos foram incorporados ao cotidiano dos brasileiros, depois de 21 anos de ditadura, arbítrio e repressão, de vigência de atos institucionais de exceção que se sobrepujaram à própria Constituição outorgada pelos militares no poder, em 1967, depois emendada, em 1969, também pelo generalato neofascista.
A “Constituição Cidadã” consagrou direitos sociais, aperfeiçoou direitos trabalhistas e uma política externa que expressava os anseios de paz, multilateralismo, cooperação e desenvolvimento conjunto com os países do entorno geopolítico, formalizando a aspiração nacional de desempenhar um papel ativo no concerto internacional.
A Constituição de 1988 consagrou o Sistema Único de Saúde (SUS), pelo qual os poderes públicos em todos os níveis são obrigados a assegurar a toda a população brasileira e até mesmo estrangeiros residentes no país um sistema integrado de atendimento gratuito à saúde.
A Educação passou a ser considerada dever do Estado. A Carta Magna também garantiu à população brasileira o amplo acesso à Cultura e a defesa do Meio Ambiente, entre outros direitos sociais.
A Assembleia Nacional Constituinte funcionou durante 20 meses. Participaram 559 parlamentares, sendo 72 senadores e 487 deputados federais, eleitos em 1986. Mas seria um engano e uma injustiça atribuir as conquistas democráticas e sociais da Constituição de 1988 apenas aos parlamentares. Foi ampla e intensa a mobilização do povo, por meio de manifestações em Brasília e das célebres emendas populares ao projeto de Constituição. Essa mobilização foi indispensável à ação dos constituintes de esquerda e centro esquerda, que ao longo desses 20 meses enfrentaram a coalizão de partidos de direita filhotes da ditadura, já na época autodenominada, de “centrão”. As emendas populares refletiam as lutas da população, através das organizações dos movimentos sociais progressistas, por causas como reforma agrária, saúde, educação, previdência social, direitos trabalhistas, moradia, eleição direta, democracia participativa, regime de governo, contra o militarismo e a interferência das Forças Armadas na vida política, pela auditoria e não pagamento da dívida externa, pelo monopólio estatal das telecomunicações e do petróleo, pelo direito à comunicação e contra a censura.
Os partidos progressistas de esquerda e centro esquerda atuaram intensamente na Assembleia Nacional Constituinte e buscaram juntos consignar na Carta as conquistas democráticas e sociais num quadro político em que predominavam as forças de direita. Já durante o funcionamento da Constituinte, o governo Sarney abandonava os compromissos democráticos da fase inicial da Nova República e revelava sua essência conservadora. Nessa mesma conjuntura, as Forças Armadas tramavam para seguir tutelando o sistema político. Em conchavo com Sarney e o então senador Fernando Henrique Cardoso, o general Leônidas Pires Gonçalves, arquitetou a manutenção do papel intervencionista das Forças Armadas, que se expressa no Artigo 142 da Carta.
Apesar de toda a luta, o texto aprovado não alterou a essência antidemocrática do poder de Estado no Brasil, expressão política do domínio das classes dominantes retrógradas.
E, malgrado a ação unificada no esforço para a construção de um sistema plenamente democrático e uma Constituição socialmente avançada, a esquerda se dividiu ao proferir o voto, em face das lacunas da Carta. O PT votou contra o texto final da Constituição. O PCB, o PDT, o PSB, a favor. O PCdoB também votou a favor, com ressalvas: “Para que seja definitivamente banida da vida política nacional a Constituição de 67/69, escrita e outorgada ao País pelos militares, a bancada do Partido Comunista do Brasil aprovará, em votação final, o Projeto de Constituição que será apresentado ao plenário da Assembleia Nacional Constituinte. Todos os parlamentares do PCdoB assinarão a nova Carta de cuja elaboração participaram ativamente. Isso não significa, no entanto, que o PCdoB apoie sem restrições o conteúdo essencial desse projeto”, afirmava a bancada do PCdoB em sua Declaração de Voto. “A Constituição de 1988 consagra um sistema de poder retrógrado, estruturalmente concentrado em mãos dos grandes capitalistas e latifundiários. Mantém uma forma autocrática de governo, o presidencialismo. Conserva o anacronismo de um Poder Judiciário totalmente alheio à soberania popular. Preserva o bicameralismo do Legislativo e o elitismo da sua composição. As Forças Armadas continuam a ser instrumento de repressão contra o povo e contra o regime democrático. O texto constitucional torna praticamente intocável a grande propriedade latifundiária, inviabilizando uma verdadeira reforma agrária. E atribui a estrangeiras a denominação de ‘empresas brasileiras’, comprometendo interesses nacionais. Essas são as questões que configuram a fisionomia da nova Carta, que assim é essencialmente conservadora, retrógrada, aquém das expectativas populares e das necessidades do País”, dizia a Declaração de Voto do PCdoB (**).
Revisitar os fatos históricos oferece elementos de reflexão para as lutas atuais.
É importante, igualmente, rememorar a posição dos comunistas sobre o sensível tema do papel das Forças Armadas na vida política. A posição do PCdoB foi apresentada no livro Constituinte Propostas do PCdoB, de cuja comissão redatora tive a honra de fazer parte, sob a direção do camarada João Amazonas. Publicado pela Editora Anita Garibaldi em 1986, o texto diz:
“O Partido Comunista do Brasil, no capítulo referente às Forças Armadas, propõe incluir na Carta Magna o seguinte:
- As Forças Armadas têm por função a defesa militar da pátria contra a agressão externa.
- As Forças Armadas, parte integrante do Estado, estruturadas com base ha hierarquia e na disciplina, são obedientes ao governo e à autoridade suprema do chefe de Estado, o presidente da República. A desobediência ao poder constituído é considerada crime.
- A administração geral e superior das Forças Armadas cabe ao chefe de Estado.
- As nomeações de almirante-de-esquadra, de general-de-exército e de brigadeiro-do-ar deverão ser previamente aprovadas pelo Congresso Nacional que poderá, por decisão majoritária de seus membros, vetar um ou mais nomes indicados pelo presidente da República, caso em que outros nomes serão enviados à apreciação do Congresso.
- As Forças Armadas não poderão intervir na vida política do país. São rigorosamente apartidárias e suas atividades estritamente profissionais. É vedado às Forças Armadas, ou aos seus membros, articulações tendentes a contestar, afrontar ou desestabilizar governos constitucionais. O golpe de Estado ou a tentativa de golpe são crimes contra a soberania popular.
- É negado às Forças Armadas agir como polícia, não podendo ser empregadas para resolver pendências políticas, nem para reprimir o povo e suas manifestações”.
A Declaração de Voto da Bancada do PCdoB na Assembleia Nacional Constituinte e as Propostas do Partido para aquela Assembleia são documentos que deveriam ser republicados. A primeira cópia impressa deveria ser emoldurada e exposta em lugar de honra na galeria de fotos da Sede Nacional do Partido, como uma homenagem à História e à Verdade.
(**) Íntegra da Declaração de Voto da Bancada do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), lida na sessão de 22 de setembro de 1988 pelo líder, deputado Haroldo Lima, integrante da Direção Nacional do Partido. Publicado no Diário da Assembleia Nacional Constituinte, em 23 de setembro de 1988:
“Para que seja definitivamente banida da vida política nacional a Constituição de 67/69, escrita e outorgada ao País pelos militares, a bancada do Partido Comunista do Brasil aprovará, em votação final, o Projeto de Constituição que será apresentado ao plenário da Assembleia Nacional Constituinte. Todos os parlamentares do PCdoB assinarão a nova Carta de cuja elaboração participaram ativamente. Isso não significa, no entanto, que o PCdoB apoie sem restrições o conteúdo essencial desse projeto.
Toda Constituição, ainda que apresente dispositivos aparentemente contraditórios, tem uma estrutura básica que determina o seu caráter. Não pode ser considerada metade boa e metade má. Os princípios que a norteiam são indivisos.
Inegavelmente nesta Constituição há relativos avanços em face às cartas anteriores que nosso País já teve. O movimento democrático, nossa bancada e parlamentares progressistas de outros partidos, empenharam-se firmemente em defesa desses avanços, entre os quais o Mandado de Injunção, o Mandado de Segurança Coletiva, o habeas-data, a condenação da tortura como um crime imprescritível e inafiançável, a duração do trabalho de 44 horas semanais, a jornada de 6 horas para turnos ininterruptos, a licença-gestante de 120 dias, a liberdade e a unicidade sindical, o direito de greve, o voto aos 16 anos, a manutenção do sufrágio proporcional para o Legislativo, a garantia da liberdade de organização partidária, certo fortalecimento dos poderes do Congresso.
Para aqueles que pensam que os direitos sociais são os pontos mais importantes de uma Constituição, a de 1988 pode ser considerada relativamente boa. Mas não são essas conquistas que conformam a feição essencial da Carta Magna. Esta se expressa fundamentalmente pelo sistema de organização do Poder pelos mecanismos de defesa dos privilégios de classe, pelo impedimento real de acesso das grandes massas da população às esferas do Poder, pelas funções reservadas às Forças Armadas, pelas franquias que concede ao capital estrangeiro.
A Constituição de 1988 consagra um sistema de poder retrógrado, estruturalmente concentrado em mãos dos grandes capitalistas e latifundiários. Mantém uma forma autocrática de governo, o presidencialismo. Conserva o anacronismo de um Poder Judiciário totalmente alheio à soberania popular. Preserva o bicameralismo do Legislativo e o elitismo da sua composição. As Forças Armadas continuam a ser instrumento de repressão contra o povo e contra o regime democrático. O texto constitucional torna praticamente intocável a grande propriedade latifundiária, inviabilizando uma verdadeira reforma agrária. E atribui a estrangeiras a denominação de “empresas brasileiras”, comprometendo interesses nacionais.
Essas são as questões que configuram a fisionomia da nova Carta, que assim é essencialmente conservadora, retrógrada, aquém das expectativas populares e das necessidades do País.
O próprio exercício dos direitos conquistados está subordinado a esse sistema de dominação. A maior parte deles depende ou de leis ordinárias ou complementares, em geral restritivas. Depende também de interpretação do Poder Judiciário, de estrutura retrógrada, ou do assentimento de governantes desprovidos de sentimentos populares. Não por acaso a Constituição, além do estado de sítio, criou o denominado estado de defesa, na verdade contra a luta popular, estado esse inexistente nos textos de todas as constituições brasileiras, introduzindo entre nós somente em 1978 através da Emenda nº 11 do regime militar. Com mecanismos como esse, gerados no período do arbítrio, a Constituição não avança sequer para conceber um governo democrático burguês moderno.
A Bancada do Partido Comunista do Brasil, PCdoB, formulando esta Declaração de Voto que traduz os princípios democráticos e socialistas que propugna desde 1922, quando o PC do Brasil foi fundado, reafirma seu compromisso de prosseguir no caminho pela modernização e transformação democrática profunda do estado brasileiro, ao mesmo tempo em que se empenhará, ao lado do povo, pelo rigoroso cumprimento das conquistas registradas na Constituição de 1988″.
*José Reinaldo Carvalho, jornalista, editor da página Resistência, membro do Comitê Central e da Comissão Política Nacional do PCdoB
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(PL)