A Carta dos 100 e a reorganização do Partido Comunista do Brasil
Neste 18 de fevereiro de 2020, completam-se 58 anos da reorganização do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Em referência a data, o Portal PCdoB resgata artigos que analisam a dimensão daquele acontecimento. No texto a seguir, publicado originalmente em fevereiro de 2017, o historiador Augusto Buonicore trata da série de acontecimentos que desemboca na elaboração do documento intitulado Carta dos 100, decisivo no processo de luta interna e na demarcação do movimento comunista brasileiro.
Leia o artigo na íntegra:
Às vésperas de o Partido Comunista do Brasil comemorar os 55 anos da sua reorganização, ocorrida em 18 de fevereiro de 1962, cabe destacar um acontecimento-chave para compreensão plena daquele processo. Refiro-me à elaboração do documento intitulado Carta dos 100, que teve um papel decisivo no processo de luta interna e na demarcação de campos no interior do movimento comunista brasileiro.
Por Augusto Buonicore*
Na verdade, tudo começou alguns anos antes. Em fevereiro de 1956 realizou-se o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), no qual seu secretário-geral Nikita Kruschev apresentou o polêmico “Relatório secreto”, denunciando o “culto à personalidade”, os erros e crimes de Stálin. Até então, para os comunistas do mundo todo, o nome deste dirigente soviético era reverenciado como uma figura mítica, quase sobre-humana, sobre a qual não cabia nenhuma crítica ou questionamento.
As primeiras notícias desse Relatório chegaram ao Brasil através de jornais conservadores, como O Estado de S. Paulo, e foram prontamente negadas pelos comunistas. Estes acreditavam que tudo aquilo não passava de reles falsificações forjadas pelas agências de segurança do governo imperialista estadunidense. Pensavam que somente a elas interessava caluniar Stálin, criando confusão no movimento comunista.
Passados alguns meses, o chefe da delegação brasileira ao XX Congresso e secretário-geral do partido, Diógenes Arruda Câmara, voltou ao país trazendo a informação oficial: o Relatório secreto era verdadeiro. Estabeleceu-se, então, uma crise profunda no interior do Partido Comunista do Brasil, então PCB.
Muitos, injustamente, criticaram Arruda por não ter voltado ao país imediatamente após o Congresso do PCUS. Cabe esclarecer duas questões: 1ª Já estava agendada uma visita oficial à China após o congresso soviético, algo normal quando uma delegação sai do país; 2ª Arruda não sabia do Relatório secreto quando participou do XX Congresso. Ele só tomou conhecimento quando estava na China e confirmou sua existência ao passar pela URSS no caminho de volta ao Brasil.
Diante da confirmação das notícias tão pouco alvissareiras, o valente Carlos Marighella chegou a chorar e o escritor Jorge Amado, numa carta, disse se sentir cercado de “sangue e lama” por todos os lados. Agildo Barata, secretário de finanças do Comitê Central, escreveu: “Senti uma dor no estômago, percebi que a vista estava escurecendo e, com náuseas, tive uma vontade irresistível de vomitar. O choque foi tremendo”. Este tipo de sentimento era generalizado entre os militantes comunistas. Apenas em agosto, em meio a inúmeras críticas, o Comitê Central conseguiu se reunir e começou a discutir a questão.
Dois meses depois, em outubro, à revelia da direção nacional, foi aberto um debate público através da imprensa partidária, num claro desrespeito ao centralismodemocrático. No meio desta turbulência, surgiu uma corrente interna, encabeçada por Agildo Barata, que propunha uma revisão completa da política e dos princípios organizativos do PC do Brasil (PCB), além da substituição dos principais membros da direção. Alterações que, se aplicadas, poderiam desfigurar a identidade comunista da organização.
Contudo, ocorreu uma forte reação contra esses desvios considerados direitistas, que conduziriam à “liquidação” do Partido. Algumas redações dos jornais do partido sofreram intervenção e Agildo Barata acabou sendo expulso. Com ele, saíram vários militantes, especialmente intelectuais, que formariam a Corrente Renovadora do Marxismo Nacional, de curta duração.
Além da crítica à Stalin, o XX Congresso do PCUS abriu uma nova página na história do movimento comunista na qual passaria a predominar uma linha de caráter reformista. Começaram a adquirir força três consignas: coexistência e competição pacífica com o imperialismo e via pacífica para o socialismo. A maneira distorcida com que as teses foram apresentadas criou ilusões sobre as possibilidades reais de acordos de longo termo com o imperialismo estadunidense e sobre uma transição sem confrontos para regimes de tipo socialista. Possibilidade que a história de então das lutas dos povos parecia negar.
Estava claro que não se tratava apenas de mudar os métodos autoritários de direção – que de fato existiam –, e sim a própria estratégia do movimento comunista internacional. O combate aos chamados stalinistas – dogmáticos e sectários – foi apenas a forma encontrada para afastar do caminho aqueles que ainda resistiam às mudanças de rumo defendidas pelo novo núcleo dirigente do PCUS e se prendiam à velha estratégia revolucionária.
No PCB, logo após a derrota das posições à direita capitaneadas por Agildo Barata, reiniciou-se a luta interna. Agora o alvo era a esquerda. Este conflito seria bem mais acirrado que o anterior e teria consequências mais graves e de longa duração. Duas concepções foram se consolidando naqueles meses: uma tendendo ao reformismo e outra revolucionária. As coisas se desequilibram quando Luiz Carlos Prestes, secretário-geral do PCB, aderiu às teses do XX Congresso e tentou aplicá-las ao Brasil. Mas as coisas não se deram sem resistência da parte de alguns membros influentes da direção.
No próprio interior do PCUS existia uma luta de posições. Ela só foi decidida favoravelmente à Kruschev no final de junho de 1957. Numa reunião extraordinária do Comitê Central, foi destituído do Presidium o chamado grupo “dogmático e sectário” do qual faziam parte Molotov, Malenkov e Kaganovitch. Três importantes dirigentes do movimento comunista. Estava dado o sinal para a realização de uma guinada política no restante dos partidos comunistas sob influência soviética.
Em agosto, sob impacto dos acontecimentos no PCUS, ocorreu a plenária do Comitê Central do PCB. Foram retirados da Comissão Executiva João Amazonas, Maurício Grabois, Diógenes Arruda e Sérgio Holmos, acusados de resistir às mudanças nos métodos de direção e na linha política. Todos foram tachados de stalinistas, e também de “dogmáticos e sectários”. O título stalinista, que pouco tempo antes poderia ser ostentado com honra, agora era tido como uma embaraçosa acusação.
Os afastamentos eram necessários para que Prestes conseguisse aprovar, sem maiores dificuldades, as novas teses influenciadas pelo kruschevismo. No início de 1958, numa outra reunião do Comitê Central, Amazonas e Grabois foram os únicos a votarem contra o documento que ficou conhecido como Declaração de Março.
O texto, que representava a consolidação das novas posições partidárias, estava impregnado de uma visão idílica sobre as possibilidades abertas pelo desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Dizia: “nas condições presentes em nosso país, o desenvolvimento capitalista corresponde aos interesses do proletariado e de todo o povo”. Nesta situação, “o processo de democratização seria uma tendência permanente” e “poderia superar quaisquer retrocessos e seguir incoercivelmente para diante”. Segundo ele, vinha “firmando-se, em nosso país, a legalidade democrática, que é defendida por amplas e poderosas forças sociais”. Por tudo isso, “os comunistas consideram que existe hoje (…) a possibilidade real de conduzir, por formas e meios pacíficos, a revolução anti-imperialista e antifeudal. Nestas condições, este caminho é o que convém à classe operária e a toda a nação. Como representantes da classe operária e patriotas, os comunistas tudo farão para transformar aquela possibilidade em realidade”.
Continua o documento: “O caminho pacífico da revolução brasileira é possível em virtude de fatores como a democratização crescente da vida política, a ascensão do movimento operário e o desenvolvimento da frente única nacionalista e democrática em nosso país. Sua possibilidade se tornou real em virtude das mudanças qualitativas da situação internacional, que resultaram numa correlação de forças decididamente favorável à classe operária e ao movimento de libertação dos povos”. Opiniões com as quais Amazonas e Grabois, decididamente, não concordavam. As duas tendências iriam se confrontar duramente nos debates preparatórios ao V Congresso do PCB, ocorrido em 1960.
O artigo que escancarou o debate na Tribuna de Debates daquele congresso foi de Maurício Grabois, intitulado Duas Concepções, duas orientações políticas. Vários dirigentes também se posicionaram publicamente contra a “tese-guia” apresentada pelo Comitê Central. Entre eles estavam: João Amazonas, Pedro Pomar, Ângelo Arroyo, Carlos Danielli, Calil Chade. Um detalhe: Diógenes Arruda Câmara – alvo principal dos ataques dos “renovadores” –, naquele momento, se alinhou com as posições de Prestes e criticou os oposicionistas.
Graças ao domínio que tinha sobre a máquina partidária, devido à influência do “Cavaleiro da esperança” e o apoio recebido do PCUS, a linha reformista prevaleceu e as teses oficiais foram aprovadas sem muitas modificações. Outro resultado deste acirrado embate foi que João Amazonas, Maurício Grabois, Diógenes Arruda, entre outros dirigentes históricos, não foram mais reconduzidos à direção nacional.
Depois do Congresso, as coisas pareciam caminhar para a normalização. Contudo, em 11 de agosto de 1961, o jornal Novos Rumos, órgão oficioso do PCB, publicou novos estatutos e programa partidários, que foram imediatamente registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O objetivo da manobra era tentar legalizar o partido, que havia tido o seu registro cassado em maio de 1947. Uma das razões para este ato arbitrário do Tribunal Superior Eleitoral foi que o nome PC do Brasil – e não Brasileiro – denotava ramificação com uma organização estrangeira. O argumento foi apenas um pretexto para fechar o partido. A cassação, na verdade, já havia sido decidida pelo governo antes mesmo do julgamento. Vivíamos o início da Guerra Fria que ameaçava esquentar.
Mesmo assim, a direção partidária, eleita em 1960, resolveu arriscar e mudou o nome do partido para Partido Comunista do Brasil, mantendo a sigla PCB. Entre outras alterações efetuadas incluiu-se a retirada dos estatutos de toda referência ao internacionalismo proletário, ao marxismo-leninismo e ao objetivo final: o comunismo. Estes haviam sido outros “probleminhas” levantados pela justiça eleitoral, quando da cassação do registro.
As polêmicas alterações estatutárias e programáticas, realizadas pela direção nacional, eram o que os comunistas descontentes precisavam para retomar o debate interno, congelado desde a sua derrota no V Congresso. Ainda em agosto, foi enviada ao Comitê Central uma carta assinada por aproximadamente cem militantes. Nela, exigia-se que fossem retirados os documentos registrados no TSE e fosse convocado novo congresso para discuti-los.
Afirmava a Carta dos 100: “Esses documentos constituem, a nosso ver, violação frontal dos princípios partidários, aberta infração às decisões do V Congresso, ferem a disciplina e atingem a própria unidade do Partido (…). O Comitê Central alterou o nome do Partido, modificou profundamente os Estatutos e apresentou um novo programa, atribuição exclusiva do Congresso, exorbitando, assim, às suas funções (…). Essa alteração tem sentido mais grave – procura-se registrar um novo partido, com programa e estatutos que nada têm a ver com o verdadeiro Partido Comunista. O que os comunistas desejam (…) é a legalização do velho e tradicional Partido (…). A luta pela legalidade do Partido é uma luta política e não pode ser feita escondendo-se seus objetivos, suas doutrinas e suas tradições (…). O Documento ao qual foi dada publicidade em Novos Rumos como sendo o programa dos comunistas é a negação do Partido revolucionário do proletariado em troca de uma hipotética legalidade”.
Continua o texto: “Por imperativo de disciplina partidária somos obrigados a acatar a resolução Política do V Congresso, a lutar por sua aplicação. Mas nada nos obriga a aceitar um condensado reformista das medidas expostas como Programa do Partido (…). Diante da situação criada pelo Comitê Central a ele nos dirigimos, apelando para o espírito do Partido e de seus membros, no sentido de que acatem as decisões do V Congresso, substituindo os documentos publicados em Novos Rumos por outros que se coadunem com as decisões do último Congresso, ou então convoquem um Congresso Extraordinário para resolver sobre a mudança do nome do Partido e as modificações no Programa e nos Estatutos”.
A Carta com as assinaturas entregue ao Comitê Central se perdeu, por isso não se sabe, ao certo, quais foram os signatários. Os autores da Carta, pretendendo entregá-la o mais cedo possível, não tiveram tempo de procurar um número maior de aderentes. Inclusive, importantes figuras no processo de reorganização do PCdoB não tiveram conhecimento da sua existência e, portanto, não puderam assiná-la. Este era o caso de Lincoln Cordeiro Oest, Elza Monnerat e Dynéas Aguiar.
A Carta deve ter circulado de maneira restrita, principalmente no Rio de Janeiro, Guanabara, Espírito Santo, São Paulo e Rio Grande do Sul. Temos informações de que elementos da base comunista da Estrada de Ferro Leopoldina assinaram – e através deles a Carta chegou às mãos do ferroviário Guilherme Tavares no Espírito Santo. Em São Paulo os principais animadores da iniciativa foram os militantes dos Comitês Distritais da Mooca e do Tatuapé.
O certo é que grande parte dos comunistas brasileiros não teve conhecimento da Carta dos 100. A própria direção partidária fez questão de não divulgá-la. Ela somente foi publicada em abril de 1962 no jornal A Classe Operária, logo após a reorganização do PC do Brasil.
No dia 20 de agosto o Comitê Distrital da Mooca, dirigido por Ângelo Arroyo, aprovou um documento dizendo que ele havia resolvido: “continuar lutando pelo cumprimento das decisões do V Congresso; defender a existência e manutenção do Partido Comunista do Brasil; solicitar ao CC o reexame e anulação do registro do Partido Comunista Brasileiro, do Programa e dos Estatutos. Que o CC trave a luta pela legalidade do Partido sem violar os princípios partidários”. Possivelmente, a mesma atitude tenha sido tomada pelo Comitê Distrital do Tatuapé, dirigido por Pedro Pomar e José Duarte, onde a oposição era mais forte.
O Comitê Estadual do Rio Grande do Sul, no qual João Amazonas ainda era o principal dirigente, endossou as opiniões presentes na Carta dos 100. Na resolução aprovada afirma-se: “As decisões adotadas pelo Comitê Central podem causar sérios prejuízos à própria unidade orgânica do movimento comunista do Brasil. Muitos militantes do atual Partido Comunista do Brasil poderão ser levados a negarem-se a se integrar no pretendido Partido Comunista Brasileiro sem infringir o centralismo democrático e mesmo fundamentar a recusa protestando fidelidade revolucionária à doutrina marxista-leninista, ideologia científica da classe operária”. E conclui: “A necessidade de assegurar a unidade do Partido Comunista, com base na doutrina marxista-leninista, em um momento de transcendental importância na vida de nosso povo e de toda a humanidade, bem como a conveniência da realização de um profundo exame dos agudos e complexos problemas da situação nacional e internacional e da orientação política dos comunistas brasileiros à luz de novos acontecimentos e de experiência contemporânea da luta dos povos pela libertação nacional e pelo socialismo, são as razões que recomendam a urgente convocação de um Congresso Nacional Extraordinário para o debate das questões apontadas”.
Um acontecimento político de grande significado faria com que a polêmica interna fosse momentaneamente suspensa. No dia 25 de agosto, Jânio Quadros renunciou à presidência da República. Seu vice, João Goulart, que estava visitando oficialmente a China, era uma pessoa vista com temor pelos setores conservadores. Por isso, a cúpula militar impôs um veto à sua posse. Iniciou-se, então, uma grande luta pelo cumprimento da Constituição de 1946 e para que fosse empossado o sucessor legal.
O epicentro da resistência democrática foi o Rio Grande do Sul. Ali o governador Leonel Brizola, com apoio do III Exército, montou a “rede da legalidade”. A diretoria da UNE, comandada por Aldo Arantes, deslocou-se para aquele estado. Formaram-se batalhões de voluntários e o país chegou à beira de uma guerra civil. Este grande movimento democrático e patriótico impôs uma derrota aos planos golpistas. Jango assumiu em sete de setembro, embora sob um regime parlamentarista. A saída negociada – que contou com apoio tácito da direção comunista – descontentou vários setores mais radicalizados, inclusive os brizolistas e os signatários da Carta dos 100.
Debelada a crise da sucessão e assumindo Jango, a direção do PCB iniciou as punições aos autores da Carta dos 100, dizendo que eles faziam parte de um grupo antipartido. Em dezembro de 1961, o jornal Novos Rumos publicou notas de diversos Comitês Estaduais informando as expulsões de João Amazonas, Pedro Pomar, Maurício Grabois, Ângelo Arroyo, Carlos Danielli, Calil Chade, José Duarte, entre outros. E muitos foram advertidos e suspensos.
Ainda nesse mês, após o anúncio das expulsões dos dissidentes paulistas, foi lançado o manifesto Aos trabalhadores e ao povo de São Paulo, assinado conjuntamente pelos Comitês Distritais do Tatuapé e da Mooca. Afirma o texto: “Foi divulgada pelo semanário ‘Novos Rumos’, em nome dos comunistas de São Paulo, uma nota afirmando que os veteranos militantes do movimento comunista José Duarte, Pedro Pomar e Ângelo Arroyo não pertencem mais a este movimento. A publicação citada não tem nenhum valor e há de receber a merecida resposta de todos os operários conscientes, de todos os bons comunistas. Isto porque os referidos militantes jamais abandonaram seu Partido nem se prestaram a dividir suas fileiras, mantendo-se fiéis à causa do socialismo e comunismo. Ao passo que atuais detratores não têm autoridade de excluí-los de coisa alguma, já que eles é que deixaram o velho partido do proletariado, o Partido Comunista do Brasil, e renegaram seus princípios a fim de obterem as boas graças da Justiça das classes dominantes em favor do registro de um novo partido, o Partido Comunista Brasileiro.”
Continua o manifesto dos comunistas paulistas: “A hora está exigindo das forças revolucionárias, independência de atitudes e luta contra todo espírito de capitulação, bem como a corrupção da consciência da classe operária pelas ideias burguesas. A hora exige, sobretudo, a defesa da existência de um Partido único e coeso da classe operária, um partido marxista-leninista, autenticamente revolucionário.” E conclui: “É para isso que convocamos todos, especialmente os camaradas que ainda são enganados por uma política falsa, oportunista, que pode parecer muito ‘honrada’, mas por isso mesmo, é a mais perigosa e prejudicial aos interesses do movimento operário e revolucionário, pois só tem servido para confundir os trabalhadores, para desprestigiar os comunistas e enfraquecer suas fileiras”.
Logo em seguida, sairia outro Manifesto – agora nacional – intitulado Aos comunistas e amigos do Partido, assinado por João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Pomar, Calil Chade, Ângelo Arroyo, Carlos Danielli, José Duarte e Valter Martins (Pepe). Estes nomes constituiriam o núcleo principal dos envolvidos na reorganização do PCdoB, ao qual rapidamente se uniriam Lincoln Cordeiro Oest, Elza Monnerat e Dynéas Aguiar.
O longo documento narra detalhadamente o processo de perseguição aos dissidentes: “Diante desta situação que envolvia um grande número de membros do Partido, a direção nacional, sem nenhum sentido unitário, enveredou pelo caminho das medidas administrativas. Na capital de São Paulo foram dissolvidos os Comitês Distritais do Tatuapé e da Mooca e destituídos dois secretários do Distrital do Brás. No Comitê de Empresa da Estrada de Ferro Sorocabana foram destituídos dois secretários, inclusive o primeiro secretário, bem como foram afastados dois membros do Comitê Distrital de Belém. Em Campinas, um dos secretários foi alijado do Comitê Municipal. Ainda na Capital de São Paulo foi dissolvida a organização dos jovens do bairro Santa Cecília. No estado do Rio, foi afastado um membro do Comitê Municipal de São Gonçalo e foram advertidos e suspensos da atividade partidária alguns militantes de Niterói; em Nova Iguaçu o Comitê Municipal está ameaçado de dissolução. No Comitê de Empresa da E. F. Leopoldina, em virtude da ação atrabiliária do assistente da direção nacional, criou-se uma situação tão intolerável que a maioria dos membros foi obrigada a se afastar”. O restante do documento, encontrado nos arquivos do Brasil Nunca Mais, está ilegível. Atos como estes se repetiram também em outros lugares, como no Rio Grande do Sul.
Nestes textos já estavam expressos os principais elementos do discurso do PC do Brasil, que seria reorganizado dois meses depois. Para seus redatores, não poderiam ter sido expulsos de um partido ao qual nunca chegaram a pertencer: o Partido Comunista Brasileiro. Pelo contrário, a maioria é que teria abandonado o verdadeiro Partido da classe operária, o Partido Comunista do Brasil, e fundado outra organização: com novo nome, novos estatutos e programa. Este debate sobre qual seria o verdadeiro partido comunista fundado em 1922 se estenderia pelas décadas seguintes.
Diante da impossibilidade de mudar os rumos que tomava a direção do PCB, os membros da chamada corrente revolucionária resolveram dar o passo que os levaria ao rompimento definitivo com o grupo de Prestes. No dia 18 de fevereiro de 1962 realizou-sena Rua do Manifesto, bairro do Ipiranga, a 5ª Conferência (extraordinária) visando a reorganizar o Partido Comunista do Brasil. Ali se aprovou o Manifesto-Programa e o relançamento do jornal A Classe Operária, que estava registrado no nome do Maurício Grabois. Menos de 10% dos militantes optaram por aquele caminho temerário. Mesmo alguns que assinaram a Carta dos 100não ousaram dar o que acreditavam ser um “salto no escuro” e preferiram ficar com o PC Brasileiro.
Aquele evento aparentemente modesto acabou tendo grande relevância na história da esquerda brasileira. Poucos, na época, tinham completa consciência do significado daquele ato. Para muitos, parecia ser obra de alguns sonhadores, sem grande futuro. A história, porém, reservaria muitas surpresas. No curso de algumas décadas, o PCdoB acabaria superando a influência do PCB – que chegou a ser apelidado de “partidão”. Este, no início dos anos 1990, mudaria os seus estatutos, o programa, abandonaria os seus símbolos e até ao nome dado em 1961. Passaria a se chamar Partido Popular Socialista (PPS), deixando de lado toda e qualquer veleidade comunista ou mesmo socialista, transformando-se em linha auxiliar do neoliberalismo (1). Por outro lado, o pequeno PCdoB tornou-se o principal partido comunista no país e uma referência para o movimento comunista internacional que começava a se reorganizar após a crise do socialismo, simbolizada na débâcle da URSS e dos países do Leste Europeu.
Nota
(1) Um pequeno e aguerrido grupo de militantes e dirigentes do Partido Comunista Brasileiro denunciou a liquidação daquela organização e iniciou a luta para reorganizá-la, como ocorreu no final de 1961. Esta é a origem do atual PCB, que também reivindica suas origens em 1922.