Filme (Não Olhe Para Cima). Foto: Netflix

Atenção – este texto contém spoilers

A Netflix acertou em cheio na sua estratégia de audiência para o final de 2021. Produziu um filme concebido milimetricamente para fazer sucesso no mundo algorítmico: impulsionado pela polêmica, pela lacração e polarização. As redes sociais já estão fervendo entre os que consideram Não Olhe para Cima, filme roteirizado por Adam Mckay e David Sirota e dirigido por Mckay, um grande filme ou um péssimo filme.

Por Renata Mielli*

Entre críticas e elogios e busca de personagens da vida real análogos aos da obra de ficção, as redes sociais estão bombando e, com isso, a audiência da plataforma de streaming também. Afinal, no mundo dominado pelas Big Techs não dá para ficar de fora dessas polêmicas.

O filme sobre o apocalipse foi filmado entre novembro de 2020 e fevereiro de 2021. Entre edição, pós-produção e lançamento não foram mais do que sete meses. Tudo isso para garantir que o filme sobre o fim do mundo fosse lançado no final de um ano quase apocalíptico, se levarmos em conta que mais de 3,4 milhões de pessoas, de um total de 5,4 milhões, morreram vítimas de Covid-19 em 2021. Numa das piores pandemias da história.

Não Olhe para Cima é uma sátira social, gênero difícil de se realizar porque lida com personagens que mesclam um conjunto de referências a situações e pessoas reais.

O apocalipse em Não Olhe para Cima não é causado por um vírus. A ameaça à vida no planeta terra vem do espaço, um cometa em rota de colisão com a Terra, descoberto por dois cientistas Randall Mindy (Leo DiCaprio) e Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence).

A partir daí, a trama se desenvolve na cruzada dos dois cientistas para alertar o governo dos Estados Unidos e do restante do mundo sobre a ameaça eminente ao planeta.

Os autores desenvolvem sua trama para fazer uma escrachada denúncia social. Que é mais do que apenas levar para as telas as consequências de termos países governados por Trumps e Bolsonaros e por uma legião de negacionistas. O filme é uma crítica à mídia e às Big Techs que manipulam de forma determinante o comportamento das pessoas.

A busca por audiência, cliques e popularidade é o que move cada personagem, inclusive o próprio cientista Mindy, que se vê inebriado ao ter mais de 250 milhões de pessoas seguindo o seu “canal” e que se transforma num sex simbol midiático quando a jornalista Brie Evantee (Kate Blanchett) diz que o cientista bonitão pode voltar quando quiser ao seu programa. Cada decisão tomada pela presidenta dos Estados Unidos, Janie Orlean, vivida por Meryl Streep, é calculada para em função de sua imagem. Os jornais praticamente não se importam com a notícia sobre o fim do mundo e continuam dando relevância para escândalos e celebridades na busca por competir com o modelo clickbait – caça click – imposto pela internet e redes sociais.

Apenas a cientista Dibiasky parece perceber o cenário surreal que se estabelece. Ela e o cientista negro Oglethorpe, interpretado por Rob Morgan, são os personagens que representam a racionalidade em toda a trama. Não à toa, são uma mulher e um negro que ocupam esse lugar no filme.

Mas se a ameaça que vem do espaço pode ser evitada pela tecnologia desenvolvida na Terra e pela ação dos países, a ameaça que as Big Techs representam pelo seu poder econômico e político não tem oposição. Aliás, quem acaba com o planeta não é o cometa, mas a Big Tech Bash.

No início do filme, o lançamento de um novo aparelho celular – o Bash Vida – parece uma barriga, não se encaixa na trama. Peter Isherwell é uma caricatura síntese dos CEOs das Big Techs, um mix de Steve Jobs, Elon Musk, Bill Gates e Mark Zuckerberg. Mas no momento em que entra em curso um plano para destruir o cometa, o dono da Bash reaparece e muda, literalmente, o curso da história da humanidade.

Na verdade, ele nunca deixou de estar no controle. Ele é a evolução. E o diálogo central da história se desenvolve 1 hora e 24 minutos depois do início do filme, entre Dr. Mindy e Peter Isherwell. É neste momento que os autores jogam na nossa cara o alerta sobre o perigoso poder das Big Techs, pela frase do seu CEO reproduzida abaixo:

“Bash tem mais de 40 milhões de dados sobre você, sobre todas as decisões que você tomou desde 1994. Eu sei quando você terá um pólipo no cólon, e você já tem uns 4 ou cinco neste momento. Ainda não são tão preocupantes, mas mesmo assim eu faria um check up quando der. Mas mais importante do que isso é que eu sei o que você é, eu sei quem você é. Meus algoritmos determinaram 8 tipos fundamentais de perfis de consumidor, você é um idealista do estilo de vida. Você acha que é motivado pelas suas convicções éticas, mas você corre na direção do prazer, e foge da dor como se fosse um ratinho. Os nossos algoritmos podem até prever como você vai morrer, com 96, 96,5% de precisão”.

O plano da Bash para extrair trilhões de dólares do cometa não dá certo. E apesar do algoritmo ter errado a maneira como Dr. Mindy iria morrer, acertou que a presidenta dos Estados Unidos morreria devorada por um bronteroc – ou seja lá o que isso for.

Não Olhe para Cima e a ameaça apocalíptica vinda do espaço é apenas uma paródia, mas o perigo que as Big Techs sem regulação representam para a sociedade é a grande realidade escancarada pelo filme.

 

*Renata Mielli é da direção nacional do PCdoB, coordenadora do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, doutoranda em Ciências da Comunicação (ECA-USP), integrante da Coalizão Direitos na Rede.