Renato Rabelo: Desafios históricos da construção da Nação Brasileira
Desafios históricos da construção da Nação Brasileira
Por Renato Rabelo*
I – CONTEXTOS: História, quadro brasileiro e mundial contemporâneos.
1 – Desafios históricos da construção da Nação brasileira que compreendeu dois ciclos de transformações.
Na elaboração do Programa do PCdoB de 2009, com base no trabalho coletivo do Partido, indicamos que nosso país passou por dois ciclos disruptivos em sua trajetória nacional. [Seguindo o axioma cunhado por José Carlos Ruy em sua obra “Biografia da Nação”, que: “Não há ciência histórica sem ação política, da mesma forma que não há política sem ciência histórica”].
O primeiro ciclo, vem dos primórdios da Nação, consistiu na formação do povo, da Nação e do Estado, resultante do processo cumulativo de lutas contra o domínio colonial e a oligarquia [Ver Notas bibliográficas].
Mas quero enfatizar, o 2º ciclo, porque daí decorre a nossa experiência histórica do nacional-desenvolvimentismo, essencial para compreender a atualidade.
O segundo ciclo, é a partir da Revolução de 1930, sob a condução de Getúlio Vargas, que derrubou a República Velha, das oligarquias. Getúlio, baseado no ideário nacional-desenvolvimentista — aperfeiçoado em seu 2º governo – culminou as grandes transformações econômico-sociais do país. Neste período, foi quando se desenvolveu a industrialização brasileira, essencialmente sob controle nacional e alastrou-se a urbanização do país; e sob a liderança de Getúlio se criou o Estado Nacional Brasileiro.
Essas transformações seriam responsáveis pela mais longa trajetória de expansão da economia brasileira, a maior da nossa história, que duraria 50 anos, operando às maiores taxas de crescimento no mundo capitalista da época. Crescimento similar somente ocorreria, a partir da década de 80, na República Popular da China.
Além do aspecto propriamente econômico, o elevado caráter social da legislação trabalhista institucionalizada (CLT), que passou a vigorar para proteger e valorizar o trabalho, somou-se a um efeito econômico evidente: melhorou o poder de compra dos trabalhadores, dinamizando fortemente o mercado interno.
As Reformas de Base de João Goulart constituíram o momento elevado desse processo histórico: foram definidas oito reformas estruturais. A sua execução completaria a formação da NAÇÃO e do ESTADO nacional brasileiro – barrado com o golpe miliar de 1964.
2 – Em contraste, a partir do final da década de 1970, o Brasil embota o seu desenvolvimento.
Busco em Celso Furtado que, em 1992, elabora sua obra marcante, simbólica: “Brasil, a construção interrompida”. A partir do final da década de 1970, começa um ciclo declinante de crescimento econômico no Brasil, do aumento da desigualdade social e da pobreza.
A agenda econômica passou a ser centrada no ajuste fiscal. O objetivo principal do ajuste fiscal, num primeiro momento, (Governo do General Figueiredo no final de 1970/ Delfim Netto) era de reunir dólares para pagar os juros da dívida externa.
E, num segundo momento, desde 1990 (avanço neoliberal), juntar recursos para pagar os juros da dívida pública, sendo determinante para isso um superávit primário. Esta é a fase que o Brasil segue o Consenso de Washington de abertura comercial, desregulamentação financeira e privatização das estatais.
Na origem disso, estão, portanto, os blindados interesses dos credores externos e dos rentistas financeiros, de dentro e fora do país, o que foi agravado pelo rápido avanço da desnacionalização da economia do Brasil. Este fenômeno tem sua consequência na drenagem de grandes recursos para o exterior, na superexploração da força de trabalho e no estreitamento do mercado interno.
Trata-se de um círculo vicioso, um impasse não resolvido, gerando assim uma crise estrutural caracterizada aparentemente pelo esgotamento do padrão dependente de reprodução do capital em nosso país – Em síntese, dependente de uma crise estrutural do capitalismo no Brasil.
E mais, essa crise promove a monopolização crescente da economia brasileira e o desenvolvimento do agronegócio pela junção entre capital financeiro, capitais transnacionais e grandes proprietários de terra, que se apropriam de um superlucro – forças dominantes atuais.
O curso dessa crise se manifesta concretamente: 1) com um débil e precário crescimento econômico, assinalado pela semiestagnação; 2) com períodos de estagnação, recessão e “décadas perdidas”; e 3) marcado pelo retrocesso, com a desindustrialização e a reprimarização da economia.
Tudo isso ocorre, motivado e agravado no Brasil pela prevalência de uma política macroeconômica anti-desenvolvimento. Esta é orientada então, pelo sistêmico ajuste fiscal (fiscalismo financista) e a implantação do tripé econômico, responsável pela tendência de juros altos, câmbio apreciado por longo período, ao sabor do mercado; medidas estas, que aprofundaram a dependência, a desnacionalização, levando à financeirização da economia e à aceleração da desindustrialização.
Não há dúvida de que, nos períodos dos governos Lula e Dilma, houve significativas conquistas sociais, redução relativa da pobreza, aumento real do salário mínimo, defesa da soberania nacional e correlata política externa, grande investimento na infraestrutura, esforço pela integração regional, melhor redimensionamento na educação, superação do aval e da submissão do país ao FMI, relativa estabilidade econômica lastreada pela formação de um colchão de apreciáveis reservas cambiais.
Contudo, o exíguo 2º governo Dilma transcorreu em crise — originada desde junho de 2013 — quando a presidenta foi destituída em 2016 por um tramado impeachment, conduzido por setores políticos e judiciários dominantes, com apoio externo dos EUA.
Neste período, apesar de mudanças e conquistas significativas, prevaleceu a hegemonia financeira globalizada e a política sistêmica do ajuste fiscal. Após a queda de Dilma, a dependência se exacerbou com toda sua decorrência.
3 – Nesse transcurso no Brasil, situo brevemente o contexto do mundo contemporâneo.
Desde o fim da segunda década do século 21 a situação internacional já era caracterizada por múltiplas crises, econômica, social e política que sacodem até mesmo os países centrais.
Assim, o mundo atual já vinha passando por mudanças de vulto, seja na base produtiva e tecnológica, seja nas novas formas de dominação capitalista, seja nas relações de poder entre Estados-nações.
Seus traços mais significativos são marcados por um mundo em transição evidenciado pelo declínio relativo da hegemonia dos EUA e ascenso da China; pela crise estrutural persistente do capitalismo,manifestada na crise geral de 2008, que não superou os impasses, mas agravou-os.
Nesta etapa o capitalismo financeirizado aprofundou a crise social; os bem-sucedidos detentores da riqueza financeira, acumulam valor sob a forma de K fictício; os mais fracos, a grande maioria, sofre ameaças da crescente precarização do trabalho, do desemprego, da exclusão social e do aumento da desigualdade.
A Pandemia atual provoca uma crise sanitária de vulto. Com isso revela e acentua as consequências danosas da financeirização global capitalista, e toda sua decorrência. Cresce a disputa da classe dominante capitalista, que resulta no crescimento da tendência neofascista. Contudo, coloca em xeque o neoliberalismo e seu austericidio econômico para a maioria da população.
Destaco que, essas tendências contemporâneas com suas sequelas da crise da globalização de corte neoliberal evidenciam a atualidade da alternativa de um projeto nacional de desenvolvimento nos países dependentes da (semi) periferia do sistema internacional. Por isso assinalo:
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II – O Programa do PCdoB manifesta a atualidade do nacional-desenvolvimentismo.
Isto está expresso no Programa do PCdoB:
O nosso Programa de 2009, exprime uma síntese baseada em um RUMO a ser seguido, e no CAMINHO para isto. Está delineado na consigna: “O fortalecimento da Nação é o caminho, o Socialismo é o Rumo”. Portanto, o caráter do Programa é dado pelo OBJETIVO MAIOR, o socialismo; mas a sua atualidade consiste na transição do capitalismo ao socialismo nas condições contemporâneas, expresso na aplicação de um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento; não há passagem direta do capitalismo ao socialismo. Desse modo, o caráter e arcabouço do Programa continuam atuais.
Assim sendo, o presente Programa do PCdoB não trata da construção geral do socialismo; este é um desafio histórico, que deriva do avanço da construção da nação, que hoje não está colocado – isto seria o terceiro ciclo disruptivo, civilizacional, na visão programática.
Temos que seguir um caminho para alcançar esse objetivo maior em nosso país, que consiste na execução de um hodierno projeto nacional de desenvolvimento, ou seja, a luta pela escolha soberana e autônoma do seu próprio caminho de desenvolvimento nacional a seguir.
Vejam o que asseverou o eminente cientista Nelson Werneck Sodré: “a conclusão da construção da nação brasileira é uma etapa insubstituível para a construção do socialismo no país”.
Então, um estado desenvolvimentista já seria um grande passo a ser dado. No entanto, para esse projeto desenvolvimentista se tornar consequente, independente e autônomo, vai exigir mudanças na ordem institucional, econômico-social e política; para isto, é impossível se manter nos marcos do capitalismo dependente, periférico. Crise estrutural exige mudança estrutural.
Assim, a execução do Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento visa em perspectiva alcançar, através da luta transformadora, disruptiva, um Estado nacional, soberano, de democracia popular, que possa abrir caminho à outra transição, a transição socialista. Em suma, o NPND tem seu centro no desenvolvimento e sua evolução prevê a transição para um novo ciclo disruptivo na nossa história – o socialismo.
III – O Programa atual precisa ser atualizado.
1 – O Brasil vive uma crise estrutural contínua, o mundo passa por uma transição e múltiplas crises.
É nesse contexto das tendências contemporâneas mundiais (já referidas) e da contínua crise estrutural em que vive o Brasil, das mudanças do capitalismo dependente, é que devemos atualizar e redimensionar o Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento em nosso país.
Em especial, o que aconteceu depois da grande crise de 2008 e do espocar da pandemia do COVID 19, no curso de avantajado desenvolvimento tecnológico e estrutural; tal situação, nos colocou diante de maiores desafios e da exigência de manter-se em contato com os temas novos, resultantes da contemporaneidade.
No Brasil, a luta das forças de oposição e progressistas está, neste momento, em nosso país, no confronto com a ordem política dominante, galvanizada por forças de extrema direita, conservadoras e fascistizantes.
Contudo, as respostas conjunturais, imediatas e emergenciais, não devem se esgotar apenas em travar a justa luta pela vida, pela democracia, pelo emprego e pela retomada do crescimento econômico, defendido pelas forças progressistas. Esta luta segue adiante, ela vai além da pós-pandemia, e já deve se relacionar com um PROJETO estrutural de longo prazo para nosso país. É disto do que se trata.
Portanto, a questão é: qual a alternativa que supere a crise estrutural por que passa o Brasil e retome o desenvolvimento de modo consistente e duradouro. Ou seja, na atualidade como recuperar a experiência histórica no enfrentamento da dependência. Mas, sobretudo, como enfrentar os novos aspectos que contribuíram para aprofundar a crise, impondo temas novos que requerem respostas; e estudar o desenvolvimento tecnológico e estrutural, de maneira a atualizar o século 21– Este é o nosso debate.
A crise estrutural em curso no Brasil tem seu começo desde o final da década de 1970, mas podemos sintetizar no que resulta e requer análise e definição:
Como as novas características da relação de dependência tomam maior dimensão, com a globalização neoliberal, e com o capitalismo financeirizado; quando maiores recursos giram na esfera financeira e, esta, captura todos os setores econômicos em detrimento da produção. Com a super exploração e precarização da força de trabalho, o aumento exponencial da desigualdade e consequente diminuição do mercado interno; além da nova ofensiva agressiva do imperialismo, sobretudo dos EUA, para relançar sua hegemonia.
RESUMO: O impacto de toda essa situação no âmbito nacional e global, que alimenta uma crise estrutural no Brasil, tem raízes nas várias formas de dependência, contribuindo para isso, o status neocolonial atual, que onera ainda mais essa situação.
As consequências são: a inserção subordinada nos marcos do capitalismo mundial, a monopolização da economia, o aprofundamento do parasitismo rentista, a estagnação econômica, tudo favorecendo a desindustrialização e a reprimarização da economia – um grande retrocesso. Como enfrentá-los? Como vejo?
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2 – Primeiro, o debate sobre elementos centrais da ALTERNATIVA de um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento.
Levando em conta a experiencia brasileira de 1930 a 1980 e aspectos da experiencia da ÁSIA.
– A orientação e a estratégia do desenvolvimento estão essencialmente sob a condução nacional do Estado, numa clara mostra de manutenção da independência econômica – um Estado nacional e desenvolvimentista poderoso.
– Situo brevemente alguns pontos em comum dessas experiências: 1) A importância da centralidade do papel do Estado nacional na coordenação e elaboração das políticas industriais como meios de execução das estratégias nacionais de desenvolvimento; 2) A formação de conglomerados (empresariais) estatais e privados em conexão com sistemas financeiros nacionais; 3) A formação de burocracias com alto grau de instrução comprometidas com o projeto nacional; 4) O papel fundamental do Estado e dos bancos públicos de desenvolvimento no enfrentamento do problema do “financiamento do desenvolvimento”.
– Também nos exemplos de sucesso de desenvolvimento, houve formação de uma nova maioria política, convencida do lugar primordial de um PND. E partir de outra narrativa, que não a da prédica neoliberal dominante nas instituições estatais, nos maiores círculos empresariais, na mídia tradicional e na grande parte do Congresso atual.
– As ideias desenvolvimentistas que vinham ressurgindo desde a crise de 2008, agora no período da pandemia aparecem com mais força. Destaco também uma viragem teórica, cuja origem está nos paradigmas surgidos nos EUA, com referência a Moderna Teoria da Moeda (MMT, em inglês); que desmonta o modelo do fiscalismo financista e retoma a importância do investimento público. Aqui no Brasil seu representante maior é o economista André Lara Rezende.
– O desenvolvimento sustentável que está relacionado com a proteção do meio ambiente, numa analogia com a soberania nacional e o desenvolvimento necessário a assegurar o equilíbrio ecológico e promover o desenvolvimento socioeconômico.
3 – Segundo, o DEBATE sobre a Estratégia do desenvolvimento nas condições do Brasil.
– Na estratégia do novo desenvolvimentismo o TRABALHO deve ser o elemento central que serve de norte. No Brasil o mercado de trabalho se encontra dilacerado e deve-se partir da garantia de trabalho para todos os trabalhadores. HOJE, o Brasil tem 20 milhões de pessoas cuja renda per capita é de R$ 11,00/mês. Entre 2014 e 2019 foram perdidos mais de 2 milhões de postos de trabalho formais, e hoje ainda mais. Daí o primeiro grande desafio da criação de 20 a 30 milhões de novos empregos, em torno de 5 anos; e duplicar o salário mínimo, salário igual para trabalho igual; e salário integral para aposentados e pensionistas – tudo isso, beneficia as condições de vida dos trabalhadores, e levam o fortalecimento do mercado interno.
– Mas este norteamento compreende uma inter-relação imprescindível entre 2 fatores: o fomento das forças produtivas que vai garantir maior produção para atender as crescentes necessidades da população; e, para maior produção, é imprescindível aumentar substancialmente a taxa de investimento. Este o segundo grande desafio, avançar a taxa de investimento de 13% para 25% (China 45%). Isto já seria uma “revolução”. (Citado por Elias Jabbour, em uma live promovida pelo Cofecon sobre Políticas de desenvolvimento para o Brasil). E seguindo a experiência desenvolvimentista, sobretudo em caso como o nosso, “o conjunto do investimento deve ser alavancado pelo investimento público”.
4 – Completa a nova estratégia de desenvolvimento are-industrialização do país.
Esta vai precisar desse aumento de investimento e de sua proteção principalmente de um câmbio administrado e da prioridade nos financiamentos e encomendas do Estado. Decorre disto, o que falei das experiências desenvolvimentistas: O papel fundamental do Estado e dos bancos públicos de desenvolvimento no “financiamento do desenvolvimento”. Por isso, na reconstrução do país vai ser necessária uma reforma do sistema financeiro, que fortaleça o papel dos bancos públicos.
– A reindustrialização parte da base industrial existente, mas, principalmente, precisa dar um salto. Posso dizer que este é o terceiro grande desafio, o Brasil subir a escada tecnológica para dominar atividades produtivas mais avançadas e sofisticadas. Para subir a escada é difícil, é preciso construir um sistema nacional de inovação. É construir produtos, bens e serviços, que são necessários ao funcionamento da indústria 4.0 na contemporaneidade;só vai se desenvolver se for capaz de produzir tecnologia.
5 – Compõe este capítulo a origem dos recursos para implementar um programa dessa monta.
Mas, o que importa é a força política da decisão advinda de um governo comprometido com um avançado projeto de nação, respaldado por ampla base social e que reúna as condições da mudança da ordem econômica e financeira. O Brasil por sua dimensão e imenso potencial produtivo pode arregimentar os recursos necessários, que em grande medida estão drenados para o exterior, para o parasitismo financeiro, para os monopólios e para os mais ricos que não são tributados devidamente. E a montagem dos meios necessários estão nos exemplos do que tem acontecido nas experiências atuais do desenvolvimentismo, dos países que não estavam no centro do sistema internacional.
Enfim, as Reformas Estruturais completam o programa para as mudanças estruturais do país, tentativas já impedidas no início da década de 1960, no governo Goulart e, que hoje, requer demolir o entulho neoliberal para reconstruir o país – prioritárias, a Reforma Tributária progressiva e Reforma do Sistema Financeiro, fortalecendo os bancos estatais.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
POMAR, Pedro, “O povo conquistará a verdadeira independência” (1972).
DOCUMENTO do Comitê Central, na comemoração dos 500 anos do descobrimento do Brasil: “500 anos de luta – na construção do povo, uma cultura e uma nação novos”. Estes dois primeiros textos se referem à bibliografia do primeiro ciclo.
O PROGRAMA do PCdoB de 2019.
RABELO, Renato: “Origem, elaboração e execução do nacional desenvolvimentismo no Brasil” (2020).
SOUZA, Nilson Araújo, “Pensamento Nacional-Desenvolvimentista” (2021). Primeiro livro da Cátedra Cláudio Campos.
Os textos restantes são parte da bibliografia geral utilizada.
*Presidente da Fundação Maurício Grabois. Ex-presidente nacional do PCdoB.