Reorganização do PCdoB - Foto: Fundação Maurício Grabois

O processo de diferenciação e conflito que culminou com a reorganização do PCdoB, em 18 de fevereiro de 1962, há 59 anos, teve sua origem mais próxima no surgimento do revisionismo contemporâneo, que veio à luz com força no 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética (1956), quando Nikita Kruschev assumiu a direção do PCUS, expurgou importantes dirigentes e, no seu denominado “Relatório Secreto” – logo divulgado por toda mídia imperialista –, denunciou erros reais e fictícios de Stalin e o atacou como um reles “criminoso”.

Por Raul Carrion*

Dessa forma, desqualificou quatro décadas de conquistas e avanços da URSS e do movimento comunista internacional. Não satisfeito, pretextando o risco de uma guerra mundial, propôs o abandono da ‘revolução’ e sua substituição pelo “caminho pacífico para o socialismo” e a “convivência pacífica com o imperialismo”. No 20º Congresso do PCUS tiveram início os retrocessos que levaram a Gorbachov, a Yeltsin, à desagregação da URSS e ao abandono do socialismo.

As ditas “revelações de Kruschev”, além de fornecerem um poderoso discurso anticomunista aos porta-vozes do imperialismo, causaram uma enorme confusão nos partidos comunistas de todo o mundo.

No Brasil, deram origem ao “liquidacionismo” de Agildo Barata e outros dirigentes, que passaram a defender abertamente a extinção do Partido ou a sua transformação em uma organização nacional-reformista. Esse primeiro surto liquidacionista foi derrotado e Agildo Barata acabou sendo expulso. Mas, as idéias revisionistas e reformistas – respaldadas pelo PCUS – ganharam força no interior do PCdoB.

Em agosto de 1957 – por combaterem o reformismo que crescia na direção do Partido – João Amazonas, Maurício Grabois, Diógenes Arruda e Sérgio Holmos foram afastados do Secretariado e da Comissão Política do Comitê Central. Amazonas foi enviado para o Rio Grande do Sul, onde assumiu a Secretaria política do Partido, tarefa que cumpriu até meados de 1961. Maurício Grabois foi cumprir a mesma função no Rio de Janeiro e Carlos Danielli no Espírito Santo

Com o afastamento dos que resistiam ao avanço revisionista, estava aberto o caminho para a aprovação, no Comitê Central, da Declaração de Março de 1958 – que expressou de forma clara uma guinada à direita do PCdoB – com o voto contrário somente de João Amazonas e de Maurício Grabois.

Declaração de Março de 1958

Fazendo a apologia do capitalismo brasileiro e da burguesia, a Declaração de Março afirmava que “foi-se processando um desenvolvimento capitalista nacional, que constitui o elemento progressista por excelência da economia brasileira. (…) Nas condições presentes de nosso país, o desenvolvimento capitalista corresponde aos interesses do proletariado e de todo o povo. (…) Embora explorado pela burguesia, é do interesse do proletariado aliar-se a ela, uma vez que sofre mais do atraso do país e da exploração imperialista do que do desenvolvimento capitalista.

Logo após o suicídio de Getúlio Vargas – quando os generais lhe impuseram a renúncia – e às vésperas da tentativa golpista de 1961 e do golpe militar de 1964, a Declaração afirmava, idilicamente, que “o processo de democratização é uma tendência permanente (…) pode superar quaisquer retrocessos e seguir incoercivelmente para diante. Vem-se firmando, assim, em nosso país, a legalidade democrática.” Assim, “um governo nacionalista e democrático pode ser conquistado nos quadros do regime vigente (…) esta orientação política pode vir a ser gradualmente realizada por um ou por sucessivos governos que se apóiem na frente única nacionalista e democrática. (…) “ainda quedispostos a participar dos governos de caráter nacionalista e democráticoos comunistas os apoiarão de modo resoluto mesmo que não venham a fazer parte de sua composição.

Essa frente “nacionalista e democrática” englobaria desde a classe operária, até o latifúndio: “Tendem a unir-se e podem efetivamente unir-se no movimento nacionalista a classe operária, os camponeses, a pequena-burguesia urbana, a burguesia e os setores de latifundiários que possuem contradições com o imperialismo norte-americano.” Ou seja, desapareciam os inimigos internos e o imperialismo estadunidense era o único inimigo…

Em decorrência, “existe hoje em nosso país a possibilidade real de conduzir, por formas e meios pacíficos, a revolução antiimperialista e antifeudal. (…) O caminho pacífico da revolução brasileira é possível em virtude de fatores como a democratização crescente da vida política. (…) O povo brasileiro pode resolver pacificamente os seus problemas básicos com a acumulação gradual, mas incessante, de reformas”.

Declaração de Março gerou uma acirrada luta interna, cindindo o Partido em duas grandes tendências: a “reformista” e a “revolucionária”. Ambas se confrontaram de forma aberta no 5º Congresso.

O 5º Congresso do PCdoB (1960)

A preparação do 5º Congresso – realizado entre 28 de agosto e 6 de setembro de 1960, no Rio de Janeiro – teve início em abril, quando as Teses, que reproduziam no essencial a Declaração de Março, foram publicadas no semanário Novos Rumos.

Travou-se, então, na Tribuna de Debates, um debate aberto entre reformistas e revolucionários, mostrando a existência de duas linhas opostas no Partido, como disse Maurício Grabois no artigo DUAS CONCEPÇÕES, DUAS ORIENTAÇÕES POLÍTICAS. Nele, Grabois afirma que as tendências oportunistas de direita “se manifestam com maior nitidez na questão do poder (…) limitando-se a reivindicar modificações parciais na política e na composição de sucessivos governos, nos marcos do regime vigente. Com essa tática gradualista, evolucionista (…) pretende-se atingir um poder capaz de enfrentar as tarefas da revolução (…) transformar o atual regime, em essência reacionário, num regime democrático e antiimperialista e (…) o próprio capitalismo em socialismo. (…) a tese da ‘democratização crescente da vida política’ não corresponde à realidade (…) as forças reacionária se mantém no poder e sempre que seus interesses são atingidos, apelam para a violência e atentam contra as liberdades democráticas”.

João Amazonas, no artigo UMA LINHA CONFUSA E DE DIREITA acusa a direção de “depositar suas esperanças no desenvolvimento do capitalismo e na burguesia (…) descrer na necessidade da revolução (…). É uma linha de apologia do capitalismo, de ilusões na burguesia e de subordinação do proletariado aos seus interesses(…) É equívoco pensar que as contradições entre o desenvolvimento do capitalismo e o monopólio da terra são antagônicas, como afirmam as Teses. O capitalismo, seguindo o caminho prussiano, pode se desenvolver no campo, conservando o latifúndioPode também o capitalismo crescer, subsistindo a dependência do país ao imperialismo.”

Em outro artigo, SOBRE A CONTRADIÇÃO PRINCIPAL, Amazonas contesta a tese de que a contradição principal é a que existe entre a nação brasileira e o imperialismo, afirmando que essa contradição só se torna “a principal num caso de guerra, quando existe a ameaça real de ocupação estrangeira pairando sobre toda a nação”. Ao apresentarem “a contradição principal como sendo entre a nação e o imperialismo norte-americano e seus agentes, as Teses ocultam (…) os inimigos internos nos quais se apóia a dominação imperialista”. Não “é a nação inteira que se opõe ao imperialismo ianque, mas a maioria da nação.

E Pedro Pomar, no artigo ANÁLISE MARXISTA OU APOLOGIA DO CAPITALISMO, diz que é preciso “que se ponha a descoberto as contradições de classe, que se diferenciem (…) os interesses das classes oprimidas, dos trabalhadores, do conceito geral da nação em seu conjunto”. E no artigo AINDA SOBRE A APOLOGIA DO CAPITALISMO (CONCLUSÃO) conclui: “O centro de nossas divergências reside (…) na fundamentação (…) apologética do desenvolvimento capitalista, pois isto leva a exagerar o papel da burguesia e (…) a menosprezar o papel das classes revolucionárias (…) e a abdicar (…) do papel dirigente do proletariado”.

Muitos destacados dirigentes manifestaram suas divergências com a linha reformista, como Ângelo Arroyo, Carlos Danielli, Calil Chade, Orlando Piotto e outros.

O apoio do PCUS às teses reformistas, o prestígio de Prestes e o domínio da máquina partidária garantiram a vitória no 5º Congresso das concepções revisionistas. Em conseqüência, 12 dos 25 membros do CC foram excluídos, entre eles João Amazonas, Maurício Grabois e Diógenes Arruda. Ângelo Arroyo e Carlos Danielli foram rebaixados para a suplência. Pedro Pomar e Sérgio Holmos foram mantidos como titulares, em uma espécie de “representação” da ala revolucionária.

Mas, o plenário não acolheu as acusações de fracionismo contra Amazonas e companheiros e rejeitou a proposta de alteração do nome do Partido e de retirada das referências à “revolução” e ao “internacionalismo proletário” dos Estatutos e do Programa, sob o pretexto de obter a sua legalização junto à justiça eleitoral. Só foram autorizadas alterações formais exigidas pela lei, para registro na justiça eleitoral – como o destino a ser dado ao patrimônio, em caso de dissolução; a designação de delegados junto aos tribunais e juízes eleitorais; a não responsabilização de seus membros pelas obrigações financeiras do Partido; etc.

Alguns anos mais tarde, em entrevista à revista Teoria & Debate n°6 (1988) o veterano líder comunista Apolônio de Carvalho, falando-se sobre o 5º Congresso, diria: “muitos de nós ficamos em uma situação de dúvida, sem alternativa (…). Mas por João Amazonas, Pedro Pomar, Arroyo, eu tinha imenso respeito. (…) Esses companheiros não negaram o marxismo e o Partido de maneira nenhuma. Fizeram uma luta interna limpíssima, aberta, corajosa, decidida, muito positiva. (…) eu vacilei (…). Não estava com eles para deixar o Partido e não estava com a orientação do Partido. (…) Em 1964, nós daríamos razão a eles.

E em 1981, em entrevista a Dênis de Moraes e Francisco Viana, Prestes teve que reconhecer que – com a Declaração de Março e as Teses ao 5º Congresso – o Partido havia dado uma guinada à direita:

Modificada, a nova executiva elaborou um documento que marcou época na vida do Partido: é a chamada declaração de março de 58 (…) toma umaposição que acho bastante direitista. Era o caminho pacífico. Aí, nós, uma vez mais erramos (…). Nós confundimos a possibilidade da via pacífica ao socialismo com o caminho pacífico. E caímos na passividade. (…) muitas ilusões sobre o capitalismo (…) acabamos caindo, entre 56 e 60, em posições liberais e direitistas. (…) O 5º Congresso (…) viveu realmente a euforia do liberalismo vigente (…) nossa posição era realmente direitista. Nóssaímos de uma posição esquerdista para cair nodesenvolvimentismo do ISEB.

A criação do “Partido Comunista Brasileiro” e a “Carta dos 100

Surpreendentemente, em 11 de agosto de 1961 – poucos dias antes da renúncia de Jânio Quadros e do início do “Movimento da Legalidade”, que garantiu a posse de João Goulart –, o semanário Novos Rumos publicou os Estatutos e Programa de um novo partido – o Partido Comunista Brasileiro, PCB –, retirando a menção de que o seu objetivo final era a criação de uma sociedade comunista e excluindo qualquer referência ao internacionalismo proletário e ao marxismo-leninismo. A publicação informava, ainda, que o Comitê Central encaminharia esses documentos para registro do PCB no Tribunal Superior Eleitoral.

Tais decisões afrontavam ao centralismo democrático, pois o 5º Congresso não havia delegado ao Comitê Central o poder de mudar o nome do Partido ou de fazer tão profundas alterações nos Estatutos e no Programa, o que só poderia ser feito por um Congresso partidário.

Frente a isso, cerca de 100 conhecidos militantes e dirigentes comunistas enviaram ao Comitê Central, ainda em agosto, uma Carta solicitando que a direção partidária anulasse tal decisão, “ou então convoquem um Congresso Extraordinário para resolver sobre a mudança do nome do Partido e as modificações no Programa e nos Estatutos.”

O Comitê Estadual do Rio Grande do Sul, o Comitê Municipal de São Paulo, os Comitês Distritais da Mooca e de Tatuapé, também aprovaram documentos contestando a decisão do CC.

Apesar de ser uma longa citação, julgo imprescindível transcrever alguns trechos da Carta dos 100:

Tanto o Programa como os Estatutos, a serem apresentados à Justiça Eleitoral, referem-se ao Partido Comunista Brasileiro. Trata-se, portanto, de alteração do nome do nosso Partido, assunto não submetido ao Congresso e que nem consta de suas resoluções. (…) É certo que em determinadascircunstâncias se torna necessário mudar o nome do Partido. Tudo depende, porém, das condições concretas (…). Mas sempre como decorrência de decisão do Congresso. Quais os fatos que impõem no Brasil a modificação do nome da organização partidária dos comunistas? (…) essa alteração, aparentemente pequenaé uma séria concessão às forçasreacionárias. (…) É sumamente ridículo pensar que a legalização do Partido está na dependência de chamar-se Partido Comunista Brasileiro e não Partido Comunista do Brasil. (…) Na realidade, essa alteração tem sentido mais grave –procura-se registrar um novo partido, com programa e estatutos que nada têm a ver com o verdadeiro Partido Comunista. (…) A luta pela legalidade do Partido é uma luta política e não pode ser feita escondendo-se seus objetivos, sua doutrina e suas tradições.(…) Mais do que nunca precisamos ter em conta os ensinamentos de Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista: “Os comunistas não se rebaixam a dissimular suas opiniões e seus fins”.

Após questionar a inexistência nos novos Estatutos e Programa do objetivo final de construção de uma sociedade comunista – limitando-se ao “estabelecimento do socialismo” – e criticar a exclusão de quaisquer referências ao internacionalismo proletário e ao marxismo-leninismo, a Carta dos 100 afirma ser “bastante oportuna a citação de Lênin sobre o liquidacionismo, ao defini-lo como as tentativas de ‘liquidar (…) a organização existente doPartido e substituí-la por uma associação informe mantida a todo custo dentro dos marcos da legalidade (…), embora para isso seja preciso renunciar (…) ao programa, à tática e às tradições (…) do partido’.”

A resposta do Comitê Central foi considerar a Carta dos 100 uma ação fracionista, expulsar os seus principais signatários – entre eles João Amazonas, Pedro Pomar, Maurício Grabois, Calil Chade, José Duarte, Ângelo Arroyo, Lincoln Oest, Alzira Grabois, Guido Enders, Ary Gonçalves, Manoel Ferreira, Valter Martins e José Delgado – e dissolver organismos onde atuavam militantes divergentes. Algum tempo depois, também Carlos Danielli foi expulso.

A 5ª Conferência Nacional Extraordinária do PCdoB

Diante das medidas punitivas e da impossibilidade de alterar – pela via da democracia interna – a orientação reformista e liquidacionista do Comitê Central, os membros da corrente revolucionária concluíram que a única saída possível era reorganizar o antigo Partido. Para isso, foi convocada a 5ª Conferência Nacional Extraordinária do PCdoB. Seus principais organizadores foram João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Pomar, Carlos Danielli, Ângelo Arroyo, Lincoln Oest, Elza Monnerat e Calil Chade. Participaram da 5ª Conferência em torno de 100 delegados, vindos de cinco ou seis Estados, entre eles Guanabara, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Espírito Santo.

5ª Conferência Nacional Extraordinária – que se reuniu em 18 de fevereiro de 1962, na Rua do Manifesto, Bairro Ipiranga, São Paulo – aprovou um Manifesto Programa, manteve o nome Partido Comunista do Brasil – adotando a sigla PCdoB, para diferenciá-lo do recém criado PC Brasileiro, PCB – e elegeu um novo Comitê Central, composto por 25 membros. Destes, 11 haviam sido eleitos no 5º Congresso do Partido, em 1954. O cargo de secretário-geral foi extinto e substituído por uma direção colegiada. Estima-se que em torno de 10% da militância comunista participou da reorganização do PCdoB, entre eles um bom número de militantes com mais de 20 anos de partido. Sua base social era predominantemente operário–popular. Ao final da década de 60 cresceu a participação nele da juventude estudantil.

Manifesto Programa indicou como as principais causas do atraso do país a dominação imperialista, o monopólio da terra e os grupos monopolistas da grande burguesia, definindo que o inimigo principal era o imperialismo, em especial o norte-americano. Afirmou ser “impossível resolver os problemas fundamentais do povo nos marcos do atual regime”, descartou, nas circunstâncias de então, “o caminho pacífico da revolução” e apontou para a necessidade de um novo governo, popular e revolucionário:

O Partido Comunista do Brasil, que se orienta pelo marxismo-leninismo e que objetiva o socialismoe o comunismo, considera que na presente situação a principal tarefa do povo brasileiro é a luta por um governo revolucionário, inimigo irreconciliável do imperialismo e do latifúndio, governo de liberdades, cultura e bem-estar para as massas.

Para conquistar esse governo revolucionário, propôs uma ampla frente:

Os operários e os camponeses, núcleo fundamental da unidade do povo, junto com os estudantes, os intelectuais progressistas, os soldados e marinheiros, sargentos e oficiais democratas, os artesãos, os pequenos e médios industriais e comerciantes, os sacerdotes ligados às massas e com outros patriotas constituirão o elemento indispensável para conseguir um governo popular que realize um programa revolucionário. A unidade da esmagadora maioria da nação é necessária e possível e, sob a direção da classe operária, será a força capaz de varrer todas as barreiras que se ergam no caminho da emancipação nacional e social do povo brasileiro.

Além do Manifesto Programa, foi aprovada a Resolução Em Defesa do Partido, historiando os acontecimentos que levaram à ruptura entre os comunistas brasileiros e à necessidade de reorganização do Partido Comunista do Brasil, agora com a sigla PCdoB.

Conferência também decidiu retomar a publicação do jornal A Classe Operária – que havia sido abandonado. Sua primeira edição foi às ruas em março de 1962, com uma tiragem de vinte mil exemplares (inteiramente esgotada), na qual foi divulgado o Manifesto Programa. A partir de então A Classe Operária passou a ser publicada a cada 15 dias, se esgotando rapidamente, o que mostrava a sua boa aceitação. O país vivia um momento de grande participação política e de luta pelas “Reformas de Base”.

João Amazonas e Diógenes Arruda com Ramiz Alia, Enver Hoxha e outros comunistas albaneses no início de 1979

As primeiras relações internacionais e a Resposta à Kruschev

Ao contrário do que afirmam alguns falsificadores da história, a reorganização do PCdoB se deu a partir das contradições que se desenvolveram no seio do Partido Comunista do Brasil, entre “reformistas” e “revolucionários”, sem qualquer participação ou influência do PC da China ou do Partido do Trabalho da Albânia, que nesse momento sequer haviam iniciado a sua polêmica pública com o PCUS, que só foi desencadeada em março de 1963.

Aliás, o primeiro relacionamento internacional do PCdoB se deu com Cuba revolucionária, através de uma visita de João Amazonas e Maurício Grabois à Havana, convidados para assistir às comemorações do Primeiro de Maio. Na ocasião, ambos se entrevistaram com Fidel Castro e Che Guevara, ainda que de forma rápida, e aproveitaram para estabelecer os primeiros contatos com as representações da China, Albânia e Coréia. Só em 1962, João Amazonas e Lincoln Oest visitaram à China, sendo recebidos pessoalmente por Mao Tse Tung, com quem mantiveram uma conversa de cerca de três horas. A primeira viagem à Albânia só se deu em 1963, com uma viagem de Pedro Pomar e Consueto Callado à Tirana.

É nessas circunstâncias que, em 14 de julho de 1963, o CC do PCUS publicou uma “carta-aberta” à direção do PC da China, acusando-a de apoiar grupos que “atuam contra os partidos comunistas dos Estados Unidos, Brasil, Itália, Bélgica, Austrália e Índia (…). No Brasil, são apoiados pelos camaradas chineses frações expulsas das fileiras do partido (como, por exemplo, o grupo Amazonas-Grabois)”.

Essa tentativa dos revisionistas soviéticos de responsabilizar a China pela divisão dos comunistas no Brasil foi respondida poucos dias depois, através de uma carta que ficou conhecida como Resposta a Kruschev, tornando o PCdoB o primeiro partido comunista, fora do poder, a confrontar publicamente os revisionistas soviéticos. Após relatar as divergências políticas e ideológicas que tornaram necessária a reorganização do PCdoB, o documento afirma:

Ao apontar os camaradas chineses como responsáveis pela divisão do movimento comunista no Brasil, os dirigentes do PCUS (…) não concebem que diante da traição dos oportunistas, inevitavelmente surgiriam em nosso país os elementos dispostos a erguer a bandeira revolucionária. (…) Quando se iniciou a discussão no Comitê Central do PC do Brasil, os camaradas que posteriormente procuraram reorganizar o Partido não conheciam as divergências no movimento comunista internacional. Mais tarde, ao se inteirar da existência de questões controvertidas, ignoraram sua real profundidade. Somente com a publicação de uma série de artigos no Diário do Povo e na Bandeira Vermelha, de Pequim (…) puderam os membros do PC do Brasil (…) constatar que (…) trata-se de luta de significação histórica entre o marxismo-leninismo e o revisionismo contemporâneo.

Na mesma “Resposta a Kruschev”, o PCdoB afirma: “O PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL apresenta um programa revolucionário, proclama seus fins socialistas, afirma abertamente sua adesão aos princípios do marxismo-leninismo e dointernacionalismo proletárionão esconde seu nome nemsuanatureza de classe. O Partido Comunista Brasileiro renega o velho Partido, renuncia ao programa revolucionário, oculta se nome, deixando em realidade de ser o Partido do proletariado”

O PCdoB e o golpe militar de 1964

O PC Brasileiro vivia “momentos de glória” durante o governo João Goulart, do qual participavam diversos de seus dirigentes. A ponto de afirmarem – às vésperas do golpe militar – que os comunistas estavam no poder… Enquanto isso, o PCdoB, recém reorganizado, tinha que “remar contra a maré”, fazendo um esforço hercúleo para conquistar a militância que divergia da política reformista do PCB e estabelecer vínculos mais estreitos com as massas.

No clima de semi-legalidade existente, João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Pomar, e outros dirigentes percorriam o Brasil, de Norte a Sul, estruturando o Partido e participando das mais variadas ações de massas. A Classe Operária era um importante instrumento nessa empreitada.

Conforme relata a Resposta a Kruschev, “em um ano e meio de trabalho, o Partido passou de centenas de membros para alguns milhares, estruturou-se em todo o país e aumentou sua influência entre as massas. Elevou sua atividade política e cresceu de modo significativo a difusão de sua imprensa.”

Enquanto o PC Brasileiro estava totalmente atrelado à burguesia nacional e ao Governo Goulart, o PCdoB havia assumido uma postura “esquerdista”, mantendo uma crítica extremamente dura em relação a Jango.

O PCB não acreditava na viabilidade de um golpe de direita e apostava em uma saída militar – e não política. O PCdoB alertava insistentemente sobre o golpe em preparação.

No dia 28 de março, o Comitê Central do PCdoB reavaliou sua postura de oposição ao Governo Goulart e, diante do golpe iminente, decidiu apoiá-lo em questões específicas. Lançou, então, o manifesto Nós e o Governo do Goulart.

Quando o golpe militar ocorreu – em 1º de abril de 1964 – o PCB foi pego totalmente desprevenido, sendo duramente golpeado pela repressão.

Já o PCdoB – como afirma o documento O Golpe de 1964 e seus ensinamentos (agosto de 1964) – “em que pese a brutalidade da repressão, que também atingiu suas fileiras (…) não ficou perplexo e pôde resguardar a maior parte de suas forças. (…) Infelizmente, o PC do Brasil não dispunha de suficiente influência entre as massas para levá-las a interferir de maneira adequada nos acontecimentos.”.

A sede d’A Classe Operária foi fechada, mas ela voltou a circular, clandestinamente, em maio de 1964.

A partir de então, foram 21 anos de combate à ditadura militar e outros 36 anos de lutas em defesa da soberania nacional, das liberdades democráticas e dos direitos dos trabalhadores, após a redemocratização.

A vida acabou por dar razão àqueles homens e mulheres que – em uma atitude de enorme audácia e enfrentando todo o tipo de dificuldades – souberam “remar contra a maré” e preservar a história e a política revolucionária do Partido Comunista do Brasil ao reorganizá-lo em 1962.

Enquanto, nesse mesmo período, o PC Brasileiro desagregou-se em dezenas de organizações, a maior parte das quais já não existe, o PCdoB fortaleceu-se, agregou outras forças revolucionárias e tornou-se um Partido Comunista com mais de 400 mil filiados, enraizado no conjunto dos movimentos sociais e com presença real na luta de idéias e na vida política do país.

Certamente, são muitos os ensinamentos que todos os revolucionários podem tirar desses 59 anos da reorganização do Partido Comunista do Brasil.

 

BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL

  • AMAZONAS, João. Sobre a Contradição Principal. Jornal Novos Rumos, 29 de julho a 04 de agosto de 1960, https://www.marxists.org/portugues/amazonas/1960/08/04.htm
  • AMAZONAS, João. Uma Linha Confusa e de Direita. Jornal Novos Rumos, 10 a 16 de junho de 1960, https://www.marxists.org/português/amazonas/1960/06/16.htm
  • BERCHT, Verônica. Coração Vermelho: a vida de Elza Monnerat. São Paulo: Editora Anita Garibaldi e Fundação Maurício Grabois, 2013
  • BERTOLINO, Osvaldo. Maurício Grabois: uma vida de combates. São Paulo: Editora Anita Garibaldi e Fundação Maurício Grabois, 2012.
  • BERTOLINO, Osvaldo. Pedro Pomar: idéias e batalhas. São Paulo: Editora Anita Garibaldi e Fundação Maurício Grabois, 2013.
  • BERTOLINO, Osvaldo. Testamento de luta: a vida de Carlos Danielli. São Paulo: Editora Anita Garibaldi e Fundação Maurício Grabois, 2002.
  • BUONICORE, Augusto. Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas. São Paulo: Editora Anita Garibaldi e Fundação Maurício Grabois, 2012.
  • CARONE, Edgard. O PCB: 1943 a 1964 – Vol. 2. São Paulo: Difel, 1982.
  • MAKLOUF, Luis; AMAZONAS, João; et al. Pedro Pomar. São Paulo: Ed. Brasil Debates, 1980.
  • MORAES, Dênis; VIANA, Francisco. Prestes: lutas e autocríticas. Petrópolis/RJ: Vozes, 1982.
  • PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO. PCB; vinte anos de política: 1958-1979 (documentos). São Paulo: LECH – Livraria Editora Ciências Humanas, 1980.
  • PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL. A Linha Política Revolucionária do Partido Comunista do Brasil (M-L). Lisboa: Edições Maria da Fonte, 1974
  • PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL. Em defesa dos trabalhadores e do povo brasileiro: documentos do PC do Brasil de 1960 a 2000. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2000.
  • PRESTES, Luiz Carlos. Carta aos comunistas. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1980.
  • RUY, José Carlos; BUONICORE, Augusto. (organizadores) Contribuição à história do Partido Comunista do Brasil. São Paulo: Editora Anita Garibaldi e Fundação Maurício Grabois, 2012.

*Raul Carrion, historiador e membro da Comissão Política do PCdoB/RS. Foi vereador de Porto Alegre em três legislaturas e deputado estadual do RS por duas legislaturas. Atualmente, preside a Fundação Maurício Grabois-RS

(PL)