Tem raízes remotas a exclusão estrutural que combina a implementação de um sistema capitalista periférico e dependente, o racismo e o cisheteropatriarcado na sociedade brasileira que tem por alvo preferencial a população negra, especialmente as mulheres negras. Dessa forma, a intersecção das opressões mantém quase que intacta a posição das mulheres negras na base da chamada pirâmide socioeconômica, quaisquer que sejam os ciclos, fases ou momentos econômicos pelos quais o sistema capitalista esteja passando. Existe um alvo indesejado, desumanizado, perseguido, criminalizado por este sistema, a maioria negra de sua população.

Por Ângela Guimarães*

Abro este artigo com esta afirmação para que compreendamos o quão estrutural é a exploração da população negra, sobretudo as mulheres, dada a intensidade da violência estatal e doméstica que recai sobre as mulheres negras, o ciclo intergeracional da pobreza que nos atribui a chefia de 63% das famílias em situação de pobreza extrema, a nossa invisibilidade e sub-representação nos espaços de poder, a persistência da nossa sub-representação no topo das carreiras do serviço público e mundo corporativo por mais que parte de nós tenhamos conseguido, graças à conquista das ações afirmativas, ultrapassar as barreiras educacionais. Os dados são estarrecedores e amplamente conhecidos do grande público.

No entanto, a nossa luta e organização histórica tem conseguido apontar as contradições profundas deste sistema, conformar uma agenda de lutas e reivindicações e em momentos de maior abertura democrática – como a elevação do primeiro operário e da primeira mulher à presidência da República – friccionar o sistema, forçar brechas e assegurar importantes conquistas embora as dimensões estruturais pouco tenham sido afetadas de modo a atingir o núcleo estrutural desta opressão.

Merecem destaque a luta por direitos sexuais e reprodutivos, a denúncia do sistemático genocídio da população negra, das desigualdades no mundo do trabalho, da violência doméstica e estatal contra as mulheres, da sub-representação na mídia e espaços de poder e a conquista das ações afirmativas nas Universidades que contaram com destacada participação das mulheres negras seja nas organizações de base do movimento negro, periférico e comunitário, nos cursinhos pré-vestibulares para negros (os quilombos educacionais), nos Núcleos de Estudos Afro-brasileiros das Universidades, nas ONGs de mulheres negras, nas entidades nacionais da luta antirracismo, na ampla plêiade que compõe a luta antirracismo no Brasil. As últimas quatro décadas foram pródigas em temas, discussões e reivindicações organizadas a partir do compromisso ético, intelectual e político de mulheres como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Luiza Bairros, Mãe Beata de Yemanjá, Mãe Stella de Oxóssi, Makota Valdina Pinto, Fátima Oliveira, Marielle Franco, Sueli Carneiro, Wânia Sant’anna, Petronilha Goncalves, Edna Roland, Olívia Santana, Nilma Lino Gomes, Conceição Evaristo, Ubiraci Matildes, Deise Benedito, Lúcia Xavier, Regina Adami, Creuza Oliveira, Nilma Bentes, Jurema Werneck, Vilma Reis, Cida Bento, Eliane Cavalleiro, Givânia Silva, Vanda Menezes, Zélia Amador, dentre centenas de milhares de outras que dão a dimensão das várias gerações de mulheres negras em luta e das quais somos continuidade desde Dandara dos Palmares, Luiza Mahin, Aqualtune, Tereza de Benguela, Ana Romana, Antonieta de Barros e tantas anônimas guerreiras.

Sabemos, no entanto, que quando a situação econômica e política piora para o conjunto da população, ela se agrava muito mais na vida das mulheres negras. Também é de público reconhecimento que embora os governos democráticos e progressistas de Lula e Dilma não tenham representado ruptura com a ordem capitalista que sustenta o racismo estrutural, foram os únicos a conseguir apresentar respostas e implementação de políticas de promoção da igualdade racial com vistas a atenuar as brutais desigualdades raciais que alicerçam a realidade brasileira como resposta à intensa pressão do movimento negro organizado.
Por este motivo, consideramos arrasadoras as consequências do Golpe de 2016 contra a presidenta Dilma que representou a ruptura com a nossa frágil e limitada democracia e abriu margem para a ascensão do neofascismo ao governo federal com a eleição de Bolsonaro em 2018. Tudo isso se agrava neste contexto da pior pandemia dos últimos cem anos que encontrou no Brasil, o pior governante do mundo no seu enfrentamento, resultando em mais de 10 milhões de pessoas contaminadas e mais de 250 mil pessoas mortas por Covid-19. A arrasadora pandemia nada tem de “democrática”, ela veio aprofundar as crônicas desigualdades socioeconômicas, raciais e de gênero com as quais o Brasil lida há séculos e para as quais nunca ousou responder com o vigor de reformas estruturantes, políticas afirmativas e profunda distribuição de renda.

Estamos vivendo o maior momento aumento do autoritarismo desde o fim da Ditadura Militar com severos e profundos ataques à combalida democracia, retrocesso em direitos sociais, desmonte de políticas públicas destinadas à base da pirâmide onde a população negra é maioria, destruição ambiental, ataques aos povos indígenas, quilombolas e de matriz africana, desregulamentação da venda de armas, congelamentos dos investimentos em saúde, assistência social e educação, desmonte da indústria nacional, leilão de nossas riquezas, privatizações e venda do nosso patrimônio, desemprego em massa, precarização e terceirização como regras para quem trabalha, aumento da fome, desamparo e desesperança, intensificação da violência racista, misógina e Lgbtqia+fóbica, dentre outras dimensões deste projeto genocida. Por sermos as mais duramente atingidas por este projeto ultraliberal, racista, misógino, antinacional e neofascista e também por carregarmos a potência de quem mais se confronta com este mesmo sistema produtor e reprodutor das desigualdades, nós, mulheres negras, somos as mais ativas denunciantes desta grave situação e também as portadoras do futuro.

Neste sentido, estamos presentes na construção das ações de solidariedade comunitárias, coletivas, sociais desde as bases territoriais das periferias urbanas, povoados e distritos rurais, povos tradicionais de matriz africana, das águas e das florestas, chão de fábrica, nano e microempreendedoras, escolas de ensino médio e Universidades, cursinhos pré-vestibulares, movimentos culturais, empreendimentos da economia solidária, ONGs, movimentos sociais tradicionais, slams e saraus de poesia, intelectualidade negra nas universidades, centrais sindicais e todos os espaços onde estejamos e também somos aquelas que lideramos e integramos coalizões dos movimentos sociais como as várias articulações e fóruns de mulheres negras brasileiras, as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, a Convergência Negra e a Coalizão Negra por Direitos, o Levantes das Mulheres Brasileiras, a exigir a retomada do auxílio emergencial de 600 reais até o final da Pandemia, a defesa do emprego, a luta por vacinação gratuita para todas as pessoas pelo SUS de forma gratuita e o Fora Bolsonaro, grito que ecoa em cada canto deste país!

 

*Socióloga, gestora pública, professora da Rede Pública Estadual de Educação da Bahia e Presidenta Nacional da Unegro.