O aumento da desigualdade poderá ser uma das principais heranças da pandemia do coronavírus. É o que prevê o jornalista Fernando Canzian, em artigo intitulado Saída da crise em ‘K’ ampliará desigualdade.

Canzian acredita que a retomada econômica não será em “V” (queda e recuperação) – como gosta de apregoar o ministro da Economia, Paulo Guedes – nem em “L” (queda e estagnação). Na verdade, afirma, o que vem se impondo é o “K”. “Os mais ricos e companhias maiores ganhando e os trabalhadores e empresas menores empobrecendo, abrindo a distância entre os dois grupos”.

O jornalista aposta que ampliação do fosso entre as pessoas acontecerá em escala mundial. Segundo ele, dois movimentos contrários devem contribuir para a situação. O primeiro é o isolamento social, que atingiu em cheio o setor de serviços, repleto de vagas precárias e salários baixos. Segundo o Banco Mundial, 70% dos empregos nos países em desenvolvimento são informais e, em um terço dessas economias, quatro em cada 10 trabalhadores cairiam na pobreza se deixassem de trabalhar.

O segundo é o fato de que a avalanche de dinheiro barato dos bancos centrais tem chegado com mais facilidade às grandes empresas e provocado a revalorização de ativos como ações.

Canzian diz ainda que a ampliação entre a desigualdade não se restringirá às pessoas: acontecerá também entre países. “Com mais poder de fogo para financiar pacotes de ajuda a empresas e consumidores, as economias avançadas aumentarão a distância relativa sobre os países mais pobres, sobretudo daqueles muito endividados”, prevê.

A desvalorização das moedas dos emergentes deve aprofundar esse efeito, limitando a importação de tecnologia para elevar a produtividade futura. Nesse cenário, afirma o jornalista, o Brasil pode ser particularmente afetado. Além de ter a maior dívida pública como proporção do Produto Interno Bruto (PIB, soma dos bens e riquezas produzidos em um país) entre os grandes emergentes, o Brasil tem dois terços das vagas de trabalho no setor de serviços, a maior parte delas informais.

Enquanto os trabalhadores formais – que ganham 40% mais que os sem registro – receberam alguma proteção com o programa de redução de jornada e salários ou a suspensão temporária de contratos, os informais só tiveram o auxílio emergencial de R$ 600 por três meses, com provável prorrogação por algum tempo.

Com essa deterioração do mercado de trabalho e um crescimento anêmico que já vinha antes da crise – o PIB cresceu 1,1% em 2019, patamar inferior ao dos dois anos do governo de Michel Temer – o Brasil poderá ficar atrás de 89% dos países de uma lista de 192 na recuperação econômica pós Covid-19, segundo o Instituto Brasileiro de Economia da FGV.

Canzian diz ainda que no Brasil e no exterior, os pacotes bilionários de ajuda a empresas devem aprofundar a desigualdade, pois estão chegando com mais rapidez e em maiores quantias aos negócios que já dispõem de melhores condições. Especialistas tem acompanhado a dificuldade de micro e pequenos empresários para obter crédito.

O artigo também cita os Estados Unidos, afirmando que o país também deve registrar um aumento da desigualdade. “Antes da pandemia, o país ostentava desemprego de apenas 3,5%, o que começava a gerar ganhos salariais para os trabalhadores na metade mais pobre da população. Havia ainda diminuição nas taxas de desocupação entre brancos e negros e estreitamento da diferença salarial entre os dois grupos é de um terço atualmente”, ressalta.

O jornalista destaca que após o tombo histórico de abril por conta da pandemia, a economia americana criou 2,5 milhões de vagas em maio, e o desemprego cedeu de 14,7% para 13,3%.Os rendimentos, porém, não acompanharam a recuperação; e o desemprego entre os negros, ao contrário, subiu 0,1 ponto, para 16,8%

A Europa deve ser igualmente afetada. Apesar de a desigualdade interna nos países ser relativamente menor do que nos EUA e na China, “a pandemia deve aprofundar as diferenças salariais entre empregados formais e informais e entre os que puderam trabalhar em casa e os que não tiveram essa chance. Regionalmente, alguns países como Espanha, Itália e Grécia, com maior dependência no setor de turismo, também devem ser mais afetados”, acredita Canzian.

O aumento da desigualdade e os efeitos a longo prazo, no entanto, devem ser particularmente severos sobre os mais pobres, especialmente na África e na America Latina. As Nações Unidas preveem que a pandemia jogará cerca de 420 milhões de pessoas de volta à extrema pobreza em todo o mundo, aumentando ainda de 135 milhões para 265 milhões o total de habitantes no planeta que voltarão a sofrer períodos de fome crônica.

“Se isso se confirmar, será um retrocesso imenso em uma tendência positiva que ganhou tração nos anos 1980, quando o total de miseráveis no mundo passou a encolher consistentemente de 43% da população para cerca de 10% até antes da pandemia”, conclui o jornalista.

Fonte: Folha de São Paulo