Natural da província de Mendonza, na Argentina, Quino foi um dos maiores cartunistas do mundo, e sua obra máxima, Mafalda, é a história em quadrinhos mais traduzida da língua espanhola. A pequena e seus amigos denunciam as injustiças do capitalismo para uma legião de fãs, há várias gerações, em 30 idiomas. Na última quarta-feira, aos 88 anos, Joaquim Salvador Lavado Tejón morreu em sua cidade natal, em decorrência de um acidente vascular cerebral. Mesmo num cenário tão doloroso como que estamos enfrentando, a perda do desenhista causou uma profunda comoção e rendeu homenagens de personalidades, autoridades políticas, intelectuais e artistas de todo o mundo.

Mariana Serafini*

Mafalda nasceu em 1964 e estampou os principais jornais argentinos até 1973, mesmo ano em que se encerra a primeira ditadura militar no país. Ao longo desta década, as tirinhas publicadas diariamente denunciaram – às vezes com acidez, às vezes com leveza – a repressão da ditadura, os ataques aos direitos humanos, as políticas de austeridade, a violência de Estado e a instabilidade do mercado. Tudo isso sem sair no universo infantil habitado pela Mafalda e seus amigos Felipe, Manolito, Guille e Susanita, além de sua tartaruga de estimação, a Burocracia, e a Liberdade, uma criança que aparece só de vez em quando e chama atenção por ser tão pequeninha.

A família de Mafalda poderia ser qualquer família da classe média argentina. A mãe é uma dona de casa resignada e o pai dá um duro no trabalho para garantir uma vida estável aos filhos e férias no fim do ano em algum litoral – provavelmente o catarinense, tão povoado pelos argentinos no verão dos trópicos. Parece até uma ironia, mas o projeto inicial da tirinha era para uma campanha de publicidade de eletrodomésticos. Por isso esse cenário tão comum. A ideia era mesmo ilustrar o cotidiano do argentino médio, com um carro padrão e uma casa modesta, mas equipada. Porém o cliente não gostou da ideia da criança meio malcriada e Mafalda ficou na gaveta quase dois anos, até ganhar vida como tirinha de jornal.

O sucesso absoluto chegou rápido e nos anos 70 a tirinha começou a se espalhar pela Europa, depois de já ter ganhado os países de língua hispânica na América Latina. No começo dos 80, especificamente em 1981, a turminha chegou ao Brasil, falando em português. O que todos esses países tinham em comum eram as marcas das ditaduras, a instabilidade política e uma crise econômica. Logo, as angústias de Mafalda, por mais particulares que fossem, eram universais.

E hoje, passados quase 50 de sua última publicação, é impressionante abrir a edição com a obra completa editada no Brasil pela Martins Fontes em 1991, “Toda Mafalda”, e encontrar tantas tirinhas que expressam exatamente a angústia de agora. Não enfrentamos uma ditadura, mas um desmonte sistemático do Estado e ameaças graves à democracia. A liberdade – das mulheres, dos negros e dos pobres principalmente – segue pequena e cerceada. O mundo, que muitas vezes aparece acamado ou de cabeça pra baixo, está profundamente doente. A pandemia do coronavírus deixou um milhão de mortos em seis meses. A crise do capitalismo que se aprofundou com a crise sanitária vai causar ainda mais vítimas. E não vemos uma melhora deste cenário num horizonte próximo. A esquerda está atordoada e nada contra a maré para manter sua sobrevivência, mas não consegue apresentar uma proposta para virar o jogo.

Ao recorrer ao Toda Mafalda para tentar encerrar a matéria sobre a morte de Quino com um pouquinho de esperança, me deparei com a Mafalda dizendo o seguinte: “Hoje nada de ler jornal, nem de ouvir noticiário para não se amargar com a situação mundial. Decidi que vou só brincar”. Depois de um esforço para juntar uns brinquedos e conseguir se distrair, ela dá um olhadinha de canto de olho pro globo terrestre que vira e mexe está de cama e pergunta: “o que você estará aprontando?”. A resposta, sabemos, não é das melhores. Mas a pequena indignada segue sendo um alento pro coração dos que mesmo com tudo isso não perderam a capacidade de se indignar com as injustiças do mundo.

Mariana Serafini, jornalista e especialista em América Latina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
(PL)