Orlando Silva: São Paulo, 466 anos, primeiro quem mais precisa
Quem passa pela Praça da República nas noites de segunda-feira certamente já escutou um som forte de percussão, animado e compassado, mas diferente do nosso bom e velho samba ou de qualquer ritmo daqui.
Por Orlando Silva*
Não conheço a fundo aquele batuque nem as tradições ali expressas, capazes de reunir centenas de migrantes africanos, sob o olhar curioso dos passantes, para festejar e lembrar sua terra natal. No entanto, na comunhão daqueles povos que para cá vieram em busca de (re) construir a vida, eu reconheço São Paulo.
Assim como vejo São Paulo nas cantinas do Bixiga, na feirinha da Liberdade, nas casas do norte espalhadas pela cidade ou no verdadeiro caleidoscópio de povos que se aperta nos comércios do Brás, da 25 de Março e do Bom Retiro. A síntese de São Paulo, para mim, é diversidade.
Cheguei na cidade dos mil povos em 1992 – lá se vão quase 30 anos! – vindo de Salvador e nunca mais voltei. Encontrei novas perspectivas, trabalhei, estudei, formei família, vivi e me apaixonei por esse “caos organizado”.
Amo a cidade que me acolheu e, por isso mesmo, quero concebê-la como paradigma de oportunidade, democracia e solidariedade. Com 12 milhões de habitantes e orçamento projetado em R$ 69 bilhões de reais, essa verdadeira Cidade-Estado tem uma capacidade de realização incrível que precisa ser colocada a serviço de melhorar a vida da maioria da população.
Poderia usar sua pujança e dinamismo para atrair e incentivar a indústria de inovação, a ciência e tecnologia de ponta, que geram riqueza e bons postos de trabalho; buscar meios para minimizar os flagelos do desemprego e da pobreza através de políticas sociais; apostar efetivamente na descentralização política e administrativa e impulsionar a vastidão criativa que se espraia em seus territórios periféricos.
No entanto, infelizmente, esse imenso potencial tem sido desprezado no último período. No lugar das oportunidades, hoje vemos a exploração sem limites que obriga jovens a serem “escravos modernos” dos aplicativos de entrega ou “empreendedores” da venda de produtos nos faróis; a cidade democrática sucumbiu ao medo e à violência policial, que produz um verdadeiro genocídio contra jovens negros; não se vê a solidariedade necessária do poder público com as milhares de pessoas que vivem em situação de rua, condição inaceitável numa sociedade moderna.
A cidade virou as costas para quem a constrói e se rendeu aos privilégios de quem só a conhece por trás dos muros dos condomínios de luxo. A pirâmide de prioridades da prefeitura está invertida: há dinheiro para recapear o asfalto nos bairros da elite, mas unidades básicas de saúde são fechadas nos bairros pobres. É inconcebível que aceitemos que o município mais rico do país não seja referência nas áreas essenciais para a vida do povo, como educação e saúde.
A riqueza de São Paulo é gerada pelos braços dos trabalhadores da periferia, mas o orçamento municipal se concentra no centro expandido. O que o município tem feito pela população que enfrenta duas ou três horas diárias para ir trabalhar? Aumento de tarifa de ônibus e diminuição do tempo de uso do Bilhete Único, desmonte das políticas sociais, sucateamento dos parcos espaços de cultura, esporte e lazer. Isso não pode continuar!
Há uma vida intensa e pujante nas periferias paulistanas. Existe muito empreendedorismo de verdade, que gera emprego e renda; muita produção cultural de qualidade; inúmeros talentos das artes, da música e do esporte que começam a ser revelados nas escolas, nos saraus, nos centros de cultura e nos campos de terra. Essa turma tem orgulho de sua origem social, da sua cor, do seu território. E não quer favor de ninguém, só quer respeito e a devolução justa, por parte dos governos, dos serviços públicos pelos quais pagam como trabalhadores e contribuintes.
Quem é da periferia está acostumado a construir soluções inteligentes e criativas para os desafios do dia a dia. Os governos deveriam incentivar, deixar esse potencial fluir mais e mais para impulsionar outro ciclo de força e crescimento econômico. O futuro da cidade está em dar poder a esse povo.
São Paulo precisa urgentemente reverter a injusta e maléfica concentração de poder e verbas públicas nas áreas nobres e fazer opções objetivas e concretas pela maioria da população. Se as necessidades são infinitas e os recursos finitos, que se comece a investir e a realizar as políticas da periferia para o centro, atendendo quem sempre foi prejudicado e não eternizando o ciclo dos privilégios. Uma cidade verdadeiramente democrática cuida primeiro de quem mais precisa.
Neste 25 de janeiro, Sampa completa 466 anos. É uma data para viver tudo o que a cidade pode oferecer, mas sobretudo de lutar para que a São Paulo dos mil povos seja efetivamente para o povo.