No presente artigo [cujo título completo é: Estado e grupos vulneráveis: as proteções constitucionais fundamentais no âmbito político e econômico sob o enfoque da Filosofia do Direito] desenvolvemos uma análise crítica da Constituição da República Federativa do Brasil, doravante mencionada como Constituição Federal (CF), a partir de um recorte do caput do artigo 1º1 e de parte de seus incisos e de seu parágrafo único, adotando as premissas metodológicas2 abaixo descritas.

Camilo Onoda Caldas*

Os estudos sobre Estado e do Direito, bem como as teorias constitucionais, sempre estão relacionados com determinadas perspectivas epistemológicas e filosóficas. Para nos referirmos às diferentes linhas teóricas existentes, adotaremos a proposta de Alysson Leandro Mascaro3, que delineia três caminhos do pensamento jurídico contemporâneo: juspositivismo (eclético, e.g. Miguel Reale; estrito, e.g. Kelsen e Hart; ético, Rawls, Dworkin e Habermas); não juspositivismo (existencialista, e.g. Gadamer e Heidegger; decisionista, e.g. Schmitt; da microfísica do poder, e.g. Foucault); marxismo4 (tradicional, e.g. Engels, Marx e Kaustsky; ocidental, e.g. Lukács e Gramsci; nova leitura, e.g. Pachukanis, Althusser e Teoria da Derivação5). Portanto, em nossa exposição, do ponto de vista metodológico, via de regra, faremos uma análise do ponto de vista da dogmática jurídica (ótica juspositivsita), paralelamente, serão feitos comentários a partir de outras perspectivas teóricas mais alinhadas com a zetética do direito, sempre destacando qual o referencial de análise adotado, ainda que, no campo da Teoria do Estado, nosso pensamento encontra-se especialmente alinhado com as premissas da filosofia mascariana delineadas em Estado e Forma Política6.

O ponto inicial da nossa análise consiste no seguinte trecho do art. 1º da Constituição Federal atualmente vigente que diz que “  República Federativa do Brasil […] constitui-se em Estado Democrático de Direito[…]” (destaque nosso). Sendo assim, iniciaremos com uma descrição do sentido das expressões “Estado Democrático” e “Estado de Direito” no texto constitucional. Em seguida, poderemos explicar a proteção jurídica fundamental que o constituinte originário delineou para o campo político e econômico, dentro de um modelo de Estado de Bem Estar Social, por meio da Constituição Federal.

Domínio do poder popular: o Estado democrático

A Constituição Federal do Brasil prevê expressamente a democracia como regime de governo do Estado brasileiro. Na Teoria Geral do Estado, costuma-se classificar os regimes em democráticos totalitários/ditatoriais. Nesse sentido, a democracia dependeria da existência de no mínimo três requisitos jurídicos (tripartição de poderes; direitos individuais; igualdade jurídica) e três requisitos políticos (eleições diretas; alternância de governantes; sufrágio universal). Os regimes totalitários ou ditatoriais, por consequência, seriam aqueles nos quais as características acima estão ausentes, conduzindo a uma concentração acentuada e permanente do poder político em torno de uma pessoa ou grupo (anteriormente, tais governos eram descritos como despóticos, tirânicos ou absolutistas). Um dos problemas nessa classificação decorre da dificuldade de aplica-la a determinadas situações concretas. É comum observamos, na atualidade, que a mera antipatia política (especialmente a determinados governos da América Latina), faz com que alguns países sejam taxados de “ditaduras”, mesmo com a presença de todos os requisitos acimas.

Em função da ditadura militar instaurada no Brasil, fruto do golpe de 1964, o constituinte brasileiro fez questão de destacar que o Brasil não se constitui simplesmente como Estado de Direito, mas como Estado Democrático de Direito. O parágrafo único do art. 1º complementa o ideal democrático ao afirmar que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Um dos debates mais importantes das últimas décadas diz respeito à efetividade da democracia enquanto governo do povo. A existência dos requisitos acima tem se mostrado insuficiente para que os interesses gerais da população não sucumbam diante das oligarquias tradicionais e de grupos, nacionais e internacionais, poderosos economicamente.

caput do artigo primeiro não pode ser desvinculado de parágrafo único, pois este é o desdobramento necessário de seu caput que enuncia o Brasil como Estado Democrático de Direito. Neste sentido, ele inicia-se afirmando que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (destaque nosso).

O trecho inicial remete a ideia de soberania popular, termo que aparece no art. 14 da CF: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos”. Tal dispositivo encontra-se em harmonia com o artigo XXI da Declaração Universal dos Direitos humanos, que estabelece que: “I- Todo o homem tem o direito de tomar parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos” e que “A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto”7. O texto constitucional adota uma posição na qual o povo é entendido como conjunto de cidadãos, status que somente é adquirido por meio da condição de ser brasileiro nato ou naturalizado. Portanto, ao contrário de outros países do mundo e da Europa, o Brasil não reconhece aos estrangeiros (nem de forma limitada) direitos políticos para votar e ser votado, que são intrínsecos aos cidadãos, mas dependem da observância de certos requisitos descritos no art.14 e 15.

A ideia de democracia contemporânea está associada a governo de povo, um regime que reconhece os cidadãos em sua coletividade como fonte do poder do Estado. Na modernidade, o filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) tornou-se o maior representante das ideias de soberania popular, defendendo que o poder dos governantes é decorrência do poder político original do povo, que dele nunca pode ser despojado8. As concepções iluministas, portanto, elaboram uma teoria com viés antropológico, se opondo a teologia política oriunda da escolástica medieval, que defendia o poder político como oriundo de Deus e algo a ser transmitido hereditariamente.

O juspositivismo ético destaca a importância dos direitos humanos, pluralismo político e de instituições políticas funcionais como meios para garantir preservar a soberania popular: “A almejada coesão interna entre direitos humanos e soberania popular consiste assim em que a exigência de institucionalização de uma prática cidadã do uso público das liberdades comunicativas seja cumprida justamente por meio dos direitos humanos. Direitos humanos que possibilitam o exercício da soberania popular não se podem impingir de fora, como uma restrição”9.

O marxismo, por sua vez, contribui para o debate ao apontar os limites estruturais da democracia no capitalismo10, explicando que neste modo de produção não há possibilidade do poder popular organizar plenamente as relações sociais no âmbito da economia (nela o poder particular dos detentores de capital, mesmo com restrições, sempre predomina). Esse limite estrutural ocorre não obstante o Estado ser soberano, pois seu poder nunca suprime o poder do capital na esfera econômica. É partir dessas contribuições que Boaventura de Souza Santos assevera: “Se, num exercício de imaginação, compararmos as relações sociais ao longo dos tempos, é no campo das relações políticas, as relações da esfera pública, que as sociedades capitalistas mais inequivocamente representam o progresso civilizacional. Pela primeira vez na história, o Estado tornou-se verdadeiramente público, isto é, deixou de ser propriedade privada de qualquer grupo específico. A concessão de direitos cívicos e políticos e a conseqüente universalização da cidadania transformaram o Estado na consubstanciação teórica do ideal democrático na participação igualitária no domínio social. Se, pelo contrário, considerarmos as relações de produção nas sociedades capitalistas, sobretudo no período do capitalismo liberal, a imagem será quase o negativo do anterior”11.

Domínio da legalidade: o Estado de Direito

O texto constitucional do art. 1º menciona que o Brasil se constitui como Estado de Direito. Isso significa que o princípio da legalidade organiza o espaço privado e o público. O domínio da legalidade em ambas as esferas encontra-se em diversos momentos do texto constitucional. Neste sentido, destaca-se: (i) o inciso II do Art. 5º: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, voltado para coibir ações de agentes públicos ou privados que possam violar a liberdade individual; (ii) o caput do Art. 37: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidadeimpessoalidade […]” (destaques nossos), que circunscreve os poderes da administração pública àquilo que está autorizado pela lei e estabelece a proibição de dar tratamento desigual, voltado a favorecer determinada pessoa, de modo a fazer prevalecer interesse particular em detrimento do público12.

Importante ressalvar que a igualdade jurídica, contudo, não significa a impossibilidade de discriminações positivas, ou seja, que tratamento jurídico diferenciado a determinados grupos que estão em situação ou posição socialmente desfavorável. Tal questão foi julgada exaustivamente pelo STF, ao manifestar-se, por exemplo, sobre a constitucionalidade da reserva de vagas (cotas) com base em critério étnico-racial em concursos públicos13 e em processo seletivo para ingresso em instituição pública de ensino superior14, temas estes abordados – do ponto de vista filosófico, sociológico e jurídico – na obra O que é racismo estrutural? de Silvio Luiz de Almeida15.

Concomitantemente à existência da igualdade jurídica, a preservação do Estado de Direito depende de um arranjo institucional voltado para preservar o princípio da legalidade na esfera pública e privada. Neste sentido, a Tripartição dos Poderes do Estado é um dos principais mecanismos e, não por acaso, encontra-se estabelecido logo no art. 2º da CF – “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” – que será objeto de maiores considerações, nesta edição, pelo professor Lucas Balconi.

O constituinte originário, intencionalmente, não desatrelou o termo “democrático” do “de direito”, enfatizando que as leis sejam criadas por meio de representantes eleitos, um dos princípios dos regimes democrático. Portanto, a atuação do Estado, fora dos limites da legalidade, constitui afronta ao Estado Democrático de Direito, conforme entendimento manifestado pelo STF ao repudiar persecução criminal arbitrária (no caso julgado, oriunda de iniciativa de juiz de Direito): “Controle jurisdicional da atividade persecutória do Estado: uma exigência inerente ao Estado Democrático de Direito. O Estado não tem o direito de exercer, sem base jurídica idônea e suporte fático adequado, o poder persecutório de que se acha investido, pois lhe é vedado, ética e juridicamente, agir de modo arbitrário, seja fazendo instaurar investigações policiais infundadas, seja promovendo acusações formais temerárias, notadamente naqueles casos em que os fatos subjacentes à persecutio criminis revelam-se destituídos de tipicidade penal” (HC 98.237 – DJE 6 ago. 2010).

A partir do estudo das causas histórico-sociais que contribuíram para o surgimento do Estado de Direito é possível entender a natureza, função e finalidade do Estado e do Direito. Nenhuma teoria sobre Estado, Direito e Constituição pode ser completa se ignorar o processo histórico de constituição da forma estatal e da forma jurídica, marcado por conflitos e contradições sociais. Nesse sentido, o denominado “novo marxismo”, anteriormente citado, tem contribuído decisivamente para mostrar a relação entre o desenvolvimento do capitalismo e o surgimento do Estado de Direito, explicando a relação entre forma mercadoria (no sentido marxiano) e a forma jurídica e estatal. Dada a impossibilidade de resumir os argumentos utilizados neste sentido, recomendamos a leitura de Estado e Forma Política de Alysson Mascaro16 e da obra Teoria da Derivação do Estado e do Direito17.

Princípios fundamentais no âmbito político e econômico

O trecho final do caput do artigo 1º encerra-se afirmando que: “A República Federativa do Brasil […] constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos” (destaque nosso). As palavras finais indicam que o Estado brasileiro possui seis fundamentos descritos em cinco incisos. Uma parte dos incisos (soberania, cidadania e pluralismo político) é um desdobramento daquilo que está contido no caput e outra parte revela uma preferência axiológica do constituinte (respeito à dignidade da pessoa humana, aos valores sociais do trabalho e à livre iniciativa). Conforme ensina José Afonso da Silva, faltando um destes fundamentos, “a República Federativa não se caracterizará como Estado Democrático de Direito”18. Para nossa análise, interessa sobretudo destacar o inciso II (cidadania) juntamente com o V (pluralismo político) e o inciso IV (valores sociais do trabalho e da livre iniciativa).

A política: cidadania e pluralismo político

O inciso II da Constituição Federal destaca a cidadania como um dos fundamentos do Estado brasileiro. A cidadania implica um vínculo permanente entre um indivíduo a um determinado Estado. Dois aspectos podem ser destacados em relação à cidadania: o político e o social.

Originalmente, a vinculação estabelecida pela cidadania era pensada do ponto de vista estritamente político: cidadão é aquele que tem permissão jurídica para influenciar a formação e transformação do Estado, bem como deve se submeter à autoridade estatal, dentro dos limites do Direito, mesmo se não estiver em seu território (evidentemente, neste último caso, o Estado pode ter dificuldades para exercer tal controle). O pensamento filosófico iluminista consagrou a ideia de universalização da cidadania, estabelecendo-a como condição comum aos membros do povo. Tais ideias se contrapunham ao pensamento filosófico da escolástica medieval, que concebia um modelo estamental, no qual o poder político estava restrito aos nobres e era transmitido hereditariamente, portanto, inacessível aos súditos. É equivocado, contudo, identificar o pensamento liberal original com a defesa da universalização da cidadania ativa e da democracia19, ou seja, o ideário liberal tradicionalmente não propugnava o sufrágio universal e a expansão dos direitos políticos para todos, independentemente de gênero, raça ou condição social. Em sua origem, a expansão do voto para mulheres e negros e o fim do voto censitário (determinado pela renda do cidadão) encontrou forte resistência entre pensadores liberais. Dentro da lógica liberal, o Estado instituía apenas a universalização da cidadania passiva, que conferia somente a autorização normativa para todos se tornarem cidadãos ativos (sujeitos plenos em seu direito de votar e serem votados), ou seja, no caso dos trabalhadores, estes poderiam conquistar a cidadania ativa se fossem capazes de se tornar independentes do ponto de vista econômico, o que na prática significava restringir os direitos políticos às classes mais abastadas20. Após intensa e longa luta popular (reprimida violentamente pelo Estado) tal panorama foi alterado e os direitos políticos estendidos para a maioria do povo.

A dimensão social da cidadania foi desenvolvida ao longo do século XX, por meio de movimentos que buscavam a efetivação da democracia e a criação de um Estado de Bem-estar social, cujas consequências foram a ampliação de espaços institucionais de participação política e a positivação de direitos sociais. Trata-se do que José Afonso denomina de nova dimensão da cidadania, “que decorre da idéia de Constituição dirigente, que não é apenas um depositório de programas vagos a serem cumpridos, mas constitui um sistema de previsão de direitos sociais, mais ou menos eficazes, em torno dos quais é que se vem construindo a nova ideia de cidadania”21. Portanto, neste sentido, ser cidadão significa mais do que ser mero titular de direitos políticos. Conforme assevera Fábio Konder Comparato, a nova cidadania (dimensão social da cidadania) deve se instaurar em cinco níveis: “a) na distribuição dos bens, materiais e imateriais, indispensáveis a uma existência socialmente digna; b) na proteção dos interesses difusos ou transindividuais; c) no controle do poder político; d) na administração da coisa pública; e) na proteção dos interesses transnacionais”22. Conforme se verá a seguir, a nova dimensão da cidadania relaciona-se com o fundamento seguinte do Estado brasileiro: a proteção da dignidade humana (inciso III do art. 1º).

O inciso V da Constituição Federal destaca o pluralismo político como um dos fundamentos do Estado brasileiro. O preâmbulo da constituição Federal menciona os valores de uma sociedade pluralista. A ideia de pluralismo político se opõe a de monismo, portanto, a Constituição Federal estabelece a pluralidade como uma garantia da democracia, repelindo assim a plutocracia (restrição do poder político aos mais ricos) e a autocracia (restrição do poder político a um único partido, líder ou grupo – a expressão aristocracia, por sua vez, traduz, na literalidade, a concentração do poder político naqueles que são supostamente melhores que a maioria). O pluralismo político é garantido pelos: (i) direitos individuais (Art. 5º) de expressão (inciso IV, IX), de consciência (inciso VI e VIII), de locomoção (inciso XV), de reunião (inciso XVI) e de associação (incisos XVII ao XXI) dentre outros; (ii) direitos políticos (Art. 15 e 16); (iii) estrutura de diversidade e liberdade partidária (art. 17); (iv) princípios educacionais de pluralismo (Art. 206, inciso III).

O constituinte originário de 1988, portanto, não apenas procurou repelir a experiência traumática da ditadura militar, como também rejeitou o modelo bipartidário, muitas vezes instituído no Brasil, especialmente em períodos de crise social e econômica, como forma de reprimir institucionalmente determinadas forças, partidos e organizações políticas diretamente ligadas à defesa dos interesses populares e das classes trabalhadoras. No século XXI, no qual o reconhecimento dos direitos das minorias se fortaleceu, observamos uma contraofensiva conservadoras voltada a reprimir e até criminalizar movimentos sociais e partidos políticos, o que não se coaduna com o princípio constitucional do pluralismo político.

Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa

O inciso IV da Constituição Federal destaca os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como um dos fundamentos do Estado brasileiro. Valor social do trabalho e livre iniciativa aparecem no artigo 170 da CF como fundamentos da ordem econômica, cuja finalidade é “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. A livre iniciativa é um dos pressupostos da economia capitalista e na CF encontra-se relacionada com a liberdade (art. 5º, caput), propriedade privada (Art. 5º, XXII e Art. 170, II), à livre concorrência (Art. 170, IV), de modo que o parágrafo único do art. 170 assegura “a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. O valor social do trabalho, por sua vez, encontra-se relacionado com a liberdade para o exercício de “qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer” (Art. 5º, XIII), função social da propriedade (Art. 5º, XXIII), desapropriação por interesse social (Art. 5º, inciso XXIV), busca do pleno emprego (Art. 170, VIII) e, principalmente, com as normas instituidoras de direitos dos trabalhadores urbanos e rurais (Art. 7º e seus incisos). Conforme explica Paulo Rogério Brites:

“A Constituição Federal de 1988 é que trouxe no seu bojo a maior amplitude de direitos sociais trabalhistas, sinalizando a importância reconhecida aos direitos trabalhistas para o Brasil. Trata-se de da intervenção indireta do Estado na economia visando, entre outros objetivos, a melhorar a distribuição de renda e coibir os abusos por parte do empregador. Além disso, as normas trabalhistas também visam a melhorar as condições de trabalho e a saúde dos trabalhadores. Podem, também, serem vistas desde a perspectiva das empresas, que teriam maior previsibilidade das condutas e mais segurança nas relações jurídicas, além do fato de que as normas trabalhistas também exercem homogeneizar a concorrência. Tudo isso converge para o objetivo maior de evitar os conflitos sociais e colaborar para a paz social”23.

Não por acaso trabalho e livre iniciativa aparecem juntos no mesmo dispositivo legal, o constituinte originário traz aqui a tentativa de harmonizar dois elementos intrínsecos do capitalismo: o trabalho, enquanto relação social criadora de valor; a livre iniciativa, entendida não apenas como a liberdade genérica de celebrar contratos e de empreender, mas a possibilidade dos detentores de capital não serem impedidos de realizar a operação as trocas mercantis (dinheiro por mercadoria ou vice-versa) como meio de acumular mais capital. É preciso afastar-se da ideia pueril de que o capitalista opera apesar do Estado. O modo de produção capitalista depende, desde sua origem, da existência do Estado. Mais ainda, as intervenções do Estado na economia e os direitos sociais, ainda que beneficiem concretamente os trabalhadores, são mecanismos que colaboram – ideologicamente, economicamente e politicamente – para a reprodução do capitalismo (para se compreender melhor tais ideias, recomenda-se a leitura de autores do referido novo marxismo24 e de pensadores que integram a corrente não juspositivista25).

Nas últimas décadas, o regime de acumulação do capitalismo assumiu feições pós-fordistas e houve a ascensão de movimentos neoliberais (mais recentemente, surgiram os neoconservadores com viés fascista). Nesse contexto, as “soluções” para as crises do capitalismo (e para manutenção do valor social do trabalho e da livre iniciativa) incluem: (i) a defesa da menor intervenção do Estado na economia e diminuição dos direitos e investimentos sociais; (ii) o crescimento do discurso de ódio e de crítica aos direitos humanos, a adoção de políticas de segregação e encarceramento em massa vinculado a trabalho compulsório ou, até mesmo, a disseminação da ideia de extermínio de grupos sociais considerados indesejáveis para a sociedade e a economia.

Considerações finais

A Constituição Federal combina proteção de direitos individuais e sociais de modo a proteger grupos vulneráveis. Em primeiro lugar, a Constituição não ignora a existência de uma sociedade cindida em capital e trabalho e, nesse contexto, enuncia a valorização social do trabalho, de modo que resta subjacente o reconhecimento da hipossuficiência dos trabalhadores e sua condição assimétrica face aos empregadores, situação que resulta em garantias e proteções específicas na legislação constitucional e infraconstitucional. Em segundo lugar, ao garantir a igualdade de direitos políticos dentro de um regime democrático, o texto constitucional procura evitar que grupos (geralmente os que estão em situação econômica menos favorável) possam ser vítimas de arbitrariedades de outros que ocupam uma condição superior, situação que se verifica quando o poder político encontra-se concentrado em apenas um grupo (regime oligárquico)26.

Existem, na atualidade, movimentos políticos que afrontam as tradicionais garantias protetivas estabelecidas pelas constituições em geral. No caso particular do Brasil27, desde 2019, tais abalos tem origem no interior do próprio Estado, especialmente por conta de iniciativas e declarações advindas do Poder Executivo federal. Nesse contexto, existe um risco bastante significativo de que as proteções constitucionais individuais percam eficácia e venham a ser violadas pelos próprios agentes estatais. As ameaças mais significativas, contudo, estão dirigidas aos grupos mais vulneráveis da sociedade – trabalhadores, idosos, quilombolas, negros, mulheres, indígenas, comunidade LGBT dentre outros – que historicamente tiveram pouca ou nenhuma assistência/proteção do Estado até o advento da Constituição Federal de 1988. Sendo assim, essa substancial afronta aos direitos de indivíduos e grupos vulneráveis, seja pelas ações ou omissões do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, deve ser interpretado como esvaziamento do sentido do texto constitucional e das diretrizes estabelecidas pelo constituinte originário no artigo 1º da Constituição Federal.

Notas

1- “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

2- Sobre a metodologia do Direito, vide ALMEIDA, Sílvio Luiz; BARBOSA JR., Silvio Moreira; CALDAS, Camilo Onoda; MERINO, Lucyla Tellez. Manual de Metodologia do Direito: Estudo e Pesquisa. São Paulo. Quartier Latin. 2010.

3- MASCARO, Alysson Leandro Mascaro. Filosofia do Direito. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 310 et. seq.

4- ELBE, Ingo. Marx im Westen: Die neue Marx-Lektüre in der Bundesrepublik seit 1965. 2. ed. Berlin: Akademie, 2010, p. 29.

5- CALDAS, Camilo Onoda. A teoria da derivação do Estado e do Direito. São Paulo: Outras Expressões/Dobra Universitário. 2015.

6- MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. São Paulo: Boitempo, 2013.

7- Íntegra do texto em português em: http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf

8- ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

9- HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro: Estudos de teoria política. Tradução: George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.

10- WOOD, Ellen Meiksin. Democracia contra o capitalismo. Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2003.

11-SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2000, p. 122.

12- O princípio da impessoalidade comporta diversos outros aspectos, sendo que destacamos apenas um deles. Para maiores detalhes, recomendamos a leitura de CARVALHO NETO, Tarcísio Vieira de. O princípio da impessoalidade nas decisões administrativas. 1. ed. Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2015.

13- BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). ADC 41 – DJE 17 ago. 2017 e ADPF 186 – DJE 20 out. 2014.

14- BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). ADPF 186 – DJE 20 out. 2014, RE 597.285 – DJE 18 mar. 2014 e ADC 41 – DJE 17 ago. 2017.

15- ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

16- MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. São Paulo: Boitempo, 2013.

17- CALDAS, Camilo Onoda. A teoria da derivação do Estado e do Direito. São Paulo: Outras Expressões/Dobra Universitário. 2015.

18- SILVA, José Afonso da. Comentário textual à Constituição. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 37.

19- “Estamos hoje tão acostumados a usar a expressão liberal democracia que esquecemos que os liberais puros, desde o início do século, sempre consideraram a democracia (e, note-se, a simples democracia formal) como o caminho aberto para a perda da liberdade, para a revolta das massas contras as elites, como a vitória homem-ovelha sobre os pastores-do-povo […]”. BOBBIO, Norberto. Existe uma doutrina marxista de Estado? In: ARAÚJO, Braz José; FIGUEIREDO, Eurico de Lima (org.). O marxismo e o Estado. Trad. Federica L. Boccardo e Rennée Levie. Rio de Janeiro: Graal, 1979. (Coleção Biblioteca de Ciências Sociais, v. 8), p. 43.

20- KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003.

21- SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 38.

22- COMPARATO, Fábio Konder. A nova cidadania. Lua Nova, São Paulo , n. 28-29, p. 85-106, Apr. 1993 . Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2018.

23- COIMBRA, Rodrigo. Fundamentos e evolução da limitação constitucional da duração do tempo de trabalho no Vrasil. E-Pública, Lisboa , v. 3, n. 1, p. 184-206, abr. 2016. Disponível em . Acesso 09 ago. 2018.

24- HIRSCH, Joachim. Teoria Materialista do Estado. São Paulo: Revan, 2010.

25- FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003, p. 111-113.

26- Não ignoramos que do ponto de vista sociológico o Brasil tenha absoluta afinidade com um regime de traços oligárquicos, contudo, destacamos que a Constituição Federal visa romper com essa tendência ao menos do ponto de vista formal.

27- Vide: CALDAS, Camilo Onoda; ALMEIDA, Silvio Luiz de. Estado e conflito no pós-fordismo: a ascensão do neoconservadorismo. MINHOTO, Antonio Celso Baeta; SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto (Org.). Democracia em Tempos de Fúria: Brasil 2013-2018. São Paulo: Max Limonad, 2018.

 

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