Formas de dominação do capitalismo contemporâneo
O tema desta exposição remete às formas pelas quais, em meio a um contexto mundial de profundos desequilíbrios socioeconômicos, o capitalismo manobra, no plano da consciência e das superestruturas, para sustentar sua dinâmica irregular e predatória. O elo capaz de deslindar o conjunto das reflexões é o conceito de dominação, que remete, por seu turno, à noção de poder. A questão central que aqui se coloca é: existiriam, no quadro do capitalismo contemporâneo, novas formas de dominação? Ou, em outras palavras, haveria mutações no exercício do poder?
Longe de ser unívoca, a resposta a esse temário é sim e não. Há, por um lado, camadas mais profundas e essenciais da ontologia social cuja temporalidade é dilatada. Nesse nível, não há mudanças de fundo nas estruturas da economia capitalista, como também em suas superestruturas políticas, jurídicas e ideológicas. O modo de produção capitalista baseia-se, desde sempre, na centralidade do mercado — da produção e circulação de mercadorias. Isso não mudou, assim como não muda o fato de que as mercadorias consistem na dualidade entre valor de uso e valor de troca (MARX, 1985). No mesmo sentido, o Estado é, onde quer que se apresente, o monopólio do uso legítimo da violência (WEBER, 2003) exercido pela classe dominante (MARX E ENGELS, 1982a;1982b). As ideologias, por sua vez, jamais deixaram de expressar as “conjunções entre significação e poder” (AZEVEDO, 2018, p. 127).
Por outro lado, essas formas essenciais podem assumir, dependendo do tempo e do lugar, os mais variados aspectos fenomênicos, consubstanciando-se em distintas formações históricas. O capitalismo contemporâneo não deixou de ser capitalismo, mas certamente incorporou institutos, práticas e modos de funcionamento que o tornam singular em sua forma financeirizada atual. Como já Lênin registrava em seus estudos sobre Hegel, é necessário cultivar rotinas metodológicas capazes de distinguir entre camadas mais rasas e mais fundas da causalidade histórica: “[…] O não essencial, o aparente, o superficial desaparece mais frequentemente, não se sustenta tão ‘fortemente’, não assenta tão ‘solidamente’ quanto a essência” (LÊNIN, 1989, p. 124).
Partindo desses pressupostos, intentamos com este estudo prospectar reconfigurações nas formas de exercício do poder político no âmbito de sociedades do capitalismo avançado. Para isso discorreremos, em primeiro lugar — ainda como parte desta introdução —, sobre a própria noção de poder, apoiando-nos na fórmula dual coerção mais consenso, herdada da tradição do realismo burguês, a qual permite um movimento analítico de decomposição do poder em seus componentes elementares. Em segundo momento, faremos observações gerais relativas a certas linhas de desenvolvimento do poder político no período de ascensão e consolidação da burguesia como classe dominante.
Em seguida, buscaremos mostrar como esse processo continua a desdobrar-se nas últimas décadas, especialmente no século XXI. Para isso, primeiramente elucidaremos as mutações que se verificam no terreno da coerção, indicando a emergência, ao longo do último período, de formas extraordinariamente mediadas de emprego da violência organizada. Na sequência, abordaremos também as novas condições socioculturais que servem de base à fabricação de consensos no contexto da vida contemporânea. Por fim, e à guisa de conclusão, buscaremos recompor sinteticamente nosso objeto, mostrando como as transformações anteriormente expostas apontam, em seu conjunto, para a emergência de novas e contraditórias dominâncias, caracterizadas por inédito balanço entre elementos de coerção e consenso, sendo esta a marca principal das superestruturas no panorama do capitalismo contemporâneo.
Cabe recordar que os arrazoados aqui expostos compõem apenas uma primeira aproximação, certamente eivada de lacunas e insuficiências. Não há de nossa parte qualquer pretensão de exaurir o tema, de resto complexo e multifacetado, composto de inúmeros aspectos e dimensões, cada um dos quais a receber certa variedade de abordagens e contribuições no último período. O que procuramos a seguir é tão somente listar um conjunto de referências caras ao assunto, além de localizar as balizas adequadas à reflexão sobre esta importante temática.
Duplo caráter do poder político
Qualquer abordagem que se questione sobre transformações nas superestruturas sociais obriga-se a retomar a noção de poder. Um pensador como Antonio Gramsci costumava destacar em seus escritos aquilo que chamou de “dupla perspectiva na ação política e na vida estatal” (1977, p. 1576). Ele sublinhava, com essa formulação, o fato de que o poder político consiste numa dualidade: compõe-se, por um lado, de coerção — isto é, do uso da violência para a imposição de uma ordem — e, por outro, da elaboração de consensos, pois que nenhuma ordem social impõe-se com solidez unicamente por meio da força bruta.
A fórmula gramsciana não surge com o marxismo. Ela já se achava colocada pelo menos desde o realismo político burguês. É bem conhecido o trecho em que, no capítulo 18 d’O Príncipe — dedicado a uma digressão sobre até que ponto deve um governante manter a palavra empenhada —, Maquiavel resgata a antiga lenda do centauro Quíron. O centauro, recorde-se, é um ser híbrido — metade homem, metade cavalo. Na visão maquiavélica, esse personagem mitológico forneceria boa descrição da anatomia do poder:
[…] A um príncipe torna-se necessário saber bem empregar o animal e o homem. Esta matéria, aliás, foi ensinada aos príncipes, veladamente, pelos antigos escritores, os quais descrevem como Aquiles e muitos outros príncipes antigos foram confiados à educação do centauro Quíron. Isso não quer dizer outra coisa, o ter por preceptor um ser meio animal e meio homem, senão que um príncipe precisa saber usar uma e outra dessas naturezas: uma sem a outra não é durável. (MAQUIAVEL, 1976, p. 102)
Séculos mais tarde, Gramsci retomaria a tese do centauro com o fito de reafirmar que poder e ação política sempre incorporam, em qualquer de suas formas, as dimensões “ferina e humana, da força e do consenso, da autoridade e da hegemonia, da violência e da civilização, do momento individual e daquele universal (da ‘Igreja’ e do ‘Estado’), da agitação e da propaganda, da tática e da estratégia etc.” (1977, p. 1576). Para destacar o caráter dinâmico das conexões e transições entre significação e poder, Gramsci elaborou de maneira rigorosa o conceito de hegemonia, que nos fala da dialética entre a violência organizada e a dimensão civilizatória do discurso.
Usos anteriores da ideia faziam referência a formas de poder ou dominação no âmbito das relações entre Estados. Importado para o marxismo, o conceito passou a ser aplicado às relações políticas entre classes e segmentos sociais. A noção já podia ser detectada nos escritos de Lênin, seja por meio da utilização aberta do termo, seja por meio de formulações que, embora prescindindo da utilização da palavra, antecipavam francamente algumas de suas referências posteriores. Segundo Gruppi (1991), nas primeiras vezes em que foi empregado por Lênin, no contexto dos esforços políticos empreendidos na Rússia pré-revolucionária, o termo hegemonia designava a direção do partido operário na luta democrática contra o tsarismo. Mais tarde, passou a ser utilizado em sentido ligeiramente mais amplo, para indicar a direção política da classe operária sobre o conjunto das massas trabalhadoras.
Entretanto, talvez tenha sido nas ocasiões em que Lênin não empregou o termo que possamos detectar sentidos mais próximos daqueles que viriam a ser consagrados posteriormente. É o que podemos constatar em Uma grande iniciativa, texto no qual o líder revolucionário russo afirma: “A ditadura do proletariado […] não é só a violência sobre os exploradores, nem sequer é principalmente a violência” (LÊNIN, 1982b, p. 149). Como se depreende dessa formulação, já para Lênin coerção e consenso constituíam-se em referências importantes para pensar a temática do poder.
Podemos mais bem entender essa dualidade com o recurso aos conceitos de política e ideologia. Segundo o filósofo e crítico cultural britânico Terry Eagleton, “a política se refere aos processos de poder mediante os quais as ordens sociais são mantidas ou desafiadas, ao passo que a ideologia diz respeito aos modos pelos quais esses processos de poder ficam presos no reino do significado” (1997, p. 24). Dito de outra maneira, a política corresponde ao exercício do poder propriamente dito, enquanto a ideologia é a forma como esse processo transborda para o plano do discurso.
Podemos concluir, por conseguinte, que a abordagem do realismo maquiavélico segue atual. As formas de dominação política apresentam-se como o centauro: metade animalescas, metade humanizadas. O que muda, então, em nosso tempo? Mudam as formas de violência legitimada, que se tornam menos diretas e mais mediadas. Registram-se, outrossim, importantes mutações no campo da pacificação pelo consenso, com a emergência de novo envoltório cultural a condicionar as dinâmicas discursivas. Tudo pesado e sopesado, é ineludível que transformações tais, vistas de conjunto, contribuem para o estabelecimento de um novo balanço entre coerção e consenso, na tessitura mesma do poder político. Na relação entre o subjugar pela força e o dominar pelas ideias, surgem arranjos inteiramente inéditos, que se materializam em formas igualmente novas de imposição de ordens sociais e políticas.
II. Mutações do poder na modernidade1
“A guerra nada mais é do que a continuação da política por outros meios.” Com sua mais célebre frase, o estrategista militar prussiano Clausewitz (1984, p. 87) sublinhava as relações de continuidade entre a política e a guerra. Nessa perspectiva, a guerra só difere de outras formas de conflito humano por implicar o derramamento de sangue. “O que permanece peculiar à guerra é simplesmente a natureza peculiar de seus meios”, afiança Clausewitz (1984, p. 87).
Esse entendimento fica claro desde a própria definição do fenômeno bélico de que lança mão o estratega: “A guerra é, então, um ato de força para compelir nosso inimigo a fazer nossa vontade” (CLAUSEWITZ, 1984, p. 75). Ora, não é difícil perceber que, se unicamente suprimirmos dessa definição o termo “de força”, que qualifica a palavra “ato”, estaremos já diante de uma possível definição da atividade política. Podemos concluir, como corolário, que a atividade militar repousa sobre o solo comum daquela que é, em última instância, a matriz de todas as conflituosidades: a política. É no interior desta última que a guerra se desenvolve como forma embrionária, elementar. “A política […] é o útero no qual a guerra se desenvolve — onde seus contornos já existem em sua forma rudimentar oculta, como as características das criaturas vivas em seus embriões”, explica Clausewitz (1984, p. 149).
Vemos como, na visão de um de seus mais prestigiados estudiosos, a guerra define-se como estágio primitivo e “rudimentar” da atividade política. Ela é uma primeira forma do político, que já contém em germe todos os seus imperativos. Larga parte do progresso civilizatório pode ser descrito, então, como a passagem da violência física a formas mediadas de conflito. Nesse processo de maturação, limita-se o espaço da marcialidade como forma prioritária da resolução de controvérsias, no tempo mesmo em que, como contrapartida, amplia-se o espaço da ação institucional. Transitamos de formas inferiores da política — sendo a guerra a primeira delas — para formas superiores, mais persuasivas e institucionalizadas.
Esse processo tem grande impulso na modernidade. Quando vem à cena da história, o capitalismo traz em seu bojo tendências civilizatórias sem paralelo na história humana anterior. “A burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, por conseguinte as relações de produção, por conseguinte todas as relações sociais”, dizem Marx e Engels (1982b, p. 109) no Manifesto do Partido Comunista. Nessa mesma obra, os fundadores do socialismo científico não poupam encômios ao destacar o papel revolucionário que as classes burguesas desempenham na cena da história. “A burguesia arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para a civilização”, asseveram Marx e Engels (1982b, p. 110).
Com efeito, a emergência do capital como principal fator de produção e do mercado como elemento organizador das relações sociais conduz à complexidade das modernas sociedades industrialistas. Esse movimento civilizatório altera não apenas as estruturas econômicas, mas o conjunto dos modos de vida, incluindo seus aspectos políticos, jurídicos e culturais. Sob o ordenamento capitalista, ganha impulso a tendência estrutural de reconfiguração das superestruturas. Marx e Engels descrevem como esse processo ocorre no plano do Estado, ao narrar a evolução das formas políticas no período de ascensão da burguesia:
Cada uma destas etapas de desenvolvimento da burguesia foi acompanhada de um correspondente progresso político. […] Aqui uma cidade-república independente, além um terceiro-estado da monarquia sujeito a impostos, depois ao tempo da manufatura contrapeso contra a nobreza na monarquia […] absoluta, a base principal das grandes monarquias em geral, acabou por conquistar, desde o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, o domínio político exclusivo no moderno Estado parlamentar. (MARX E ENGELS, 1982b, p. 108-109)
O desenvolvimento das formas políticas liberal-republicanas conhece grande florescimento na segunda metade do século XIX. Ao rastrear, em seus Cadernos do Cárcere, as origens das formas modernas da política burguesa, Gramsci observa que, na década de 1870, marcada pela expansão colonial europeia, “as relações organizativas internas e internacionais do Estado tornam-se mais complexas e maciças” (1977, p. 1566). Segundo o autor sardo, o após-1870 ficou marcado pelo acontecimento que passou à história como a Comuna de Paris.
Nesse período, após sua ascensão definitiva ao poder, a burguesia revela enfim sua face conservadora. Se antes havia liderado amplas camadas sociais da cidade e do campo na luta progressista pela superação do Ancien Régime, agora se mostrava resoluta na missão de reprimir o levante dos operários de Paris. É nessa situação, em que transita de revolucionária a conservadora, que a classe burguesa testa novos modelos políticos, diferentes daqueles de que lançara mão no período mais radical da luta contra as aristocracias agrárias. Nas palavras de Gramsci,
O conceito político da assim chamada “revolução permanente” surgiu antes de 1848, como expressão cientificamente elaborada da experiência jacobina de 1789 ao Termidor. A fórmula é própria de um período histórico em que não existiam ainda os grandes partidos políticos de massa e os grandes sindicatos econômicos e a sociedade estava ainda, por assim dizer, em estado de fluidez sob muitos aspectos […]. No período após 1870 […] todos esses elementos mudam, as relações organizativas internas e internacionais do Estado tornam-se mais complexas e massivas e a fórmula da década de 1840 da “revolução permanente” vem elaborada e superada na ciência política na fórmula de “hegemonia civil”. (1977, p. 1566)
Na visão gramsciana, o período percorrido entre a Primavera dos Povos de 1848 e a Comuna de Paris de 1871 teria sido decisivo. Ali a burguesia, após consolidar sua posição como classe dominante, busca formas mais estáveis de exercício do poder. O jacobinismo já não serve, mesmo porque a agitação que com ele caminha não é compatível com a estabilidade requerida pelos novos ambientes de negócios. E é assim que se inaugura a “fórmula da hegemonia civil”. Com ela, moderniza-se aquilo que Gramsci chamou de “técnica política” (1977, p. 1620). Fazem parte desse fenômeno não apenas o crescimento das organizações civis, mas também a expansão de regimes parlamentaristas, o reforço das estruturas estatais e a formação de vasta burocracia (tanto estatal quanto privada), voltada ao controle político e econômico da sociedade conforme as diretrizes dos setores dominantes.
Ocorre assim, no terreno da política, aquilo que já sucedera no terreno militar: a guerra de movimento ou de manobra dá lugar à guerra de posição. Esta última não se restringe à batalha campal ou ao aparato bélico stricto sensu; envolve também a situação econômica e demográfica de um país, as estruturas logísticas e industriais que apoiam um exército, o sistema de alianças políticas e apoios diplomáticos que materializam o prestígio de um país à escala internacional. Não se trata de afirmar que a guerra de manobra pura e simples se tenha tornado inválida. O que acontece é que, nos conflitos entre nações avançadas do ponto de vista civil-industrial, esse tipo de batalha tornou-se mais apto a finalidades táticas de curto prazo, e não mais a objetivos estratégicos.
Aquilo que se verifica no terreno militar impõe-se também na esfera política propriamente dita: a “guerra” de posição sobrepõe-se à “guerra” de movimento. Assistimos, em particular nos Estados avançados, à emergência de superestruturas de maior complexidade, que tornam a sociedade civil menos volátil, isto é, mais resistente a catástrofes econômicas e mudanças políticas bruscas. Isso não significa que, após o desastre de uma depressão econômica, as coisas sigam estáticas e inalteradas. Mas forças opositoras deixam de contar com o elemento da rapidez, do ritmo acelerado, da marcha fulminante até o objetivo final. Isso porque, como explica Gramsci,
A estrutura maciça das democracias modernas, seja como organizações estatais, seja como complexo de associações na vida civil, constitui para a arte política o que são as “trincheiras” e as fortificações permanentes do front na guerra de posição: estas fazem apenas “parcial” o elemento do movimento que antes era “toda” a guerra etc. (1977, p. 1567).
A nova situação — que tem validade restrita nas situações de atraso, de tipo colonial ou não, em que ainda mantêm validade formas superestruturais já tornadas anacrônicas mundialmente — coloca com força, como questão chave dos tratados de ciência política, a temática dos valores e da ideologia. Ganham relevo, igualmente, os novos problemas colocados pelo inédito florescer de entidades e instituições que, seja no domínio do Estado, seja no âmbito do associativismo civil, fazem as vezes daquilo que representa, na guerra de posição, todo o sistema de trincheiras e acautelamentos.
Na perspectiva gramsciana, a burguesia teria conjugado o poder de Estado às instituições dirigentes da ação política e da produção e reprodução dos significados e valores sociais. Conformam-se, dessa maneira, formas ampliadas de exercício do poder, capazes de incorporar aspectos não apenas políticos e jurídicos, mas também intelectuais e morais. Nesse contexto, as superestruturas apresentam-se distribuídas entre dois grandes planos ou momentos principais: a sociedade civil (que reúne os organismos ditos “privados”) e o Estado (ou sociedade política). As duas esferas
[…] Correspondem à função de “hegemonia” que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de “domínio direto” ou de comando, que se expressa no Estado e no governo “jurídico”. Essas funções são precisamente organizativas e conectivas. Os intelectuais são os “comissários” do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso “espontâneo” dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce historicamente do prestígio (e, portanto, da confiança) que o grupo dominante obtém, por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção; 2) do aparato de coerção estatal que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos que não “consentem”, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo. (GRAMSCI, 1977, p. 1518-1519)
Uma classe não é realmente hegemônica, portanto, se apenas possui a direção sobre seus aliados estratégicos, ou mesmo se é já detentora do poder de Estado. Tudo isso é importante, mas a hegemonia implica também a mobilização de eixos de consensualidade — não necessariamente unânimes, mas amplamente majoritários — capazes de galvanizar o conjunto da sociedade, por meio da imposição de significados e estilos de vida por parte do grupo social dominante. Essa visão seria mais tarde desenvolvida por autores tributários do pensamento de Gramsci.
É o caso do galês Raymond Williams, um dos fundadores da área disciplinar conhecida como estudos culturais. No entendimento desse autor a noção de hegemonia, conforme visualizada por Gramsci, contribui para a compreensão das formas de dominação e subordinação como algo mais real e mais próximo do processo normal de organização em sociedades de capitalismo avançado. Não estamos diante de algo que possamos conceber como mera “manipulação”. Trata-se, ao contrário, de um sistema de significações experimentado na vida cotidiana, o qual acaba por constituir um “senso de realidade” para o conjunto das pessoas. A hegemonia constitui um horizonte de experiência além do qual é muito difícil entender a sociedade e movimentar-se nela. “Uma hegemonia vivida é sempre um processo. Não é, exceto analiticamente, um sistema ou uma estrutura. É um complexo percebido de experiências, relações e atividades, com pressões e limites específicos e mutáveis.” (WILLIAMS, 1977, p. 112)
Ao esboçar essa compreensão, o que pretende o fundador dos estudos culturais é combater concepções ossificadas de “dominação”. Na visão de Williams, os processos hegemônicos de incorporação e cooptação não podem ser concebidos in abstracto. Devem ser concretizados historicamente, porquanto esses processos mudam, desenvolvem-se com o avanço da sociedade. Nenhuma hegemonia existe de forma estática. Nesse sentido, qualquer explicação profícua de processos hegemônicos deve conceder “a seus elementos uma mudança real e constante”, pois as fontes de hegemonia “devem ser renovadas, recriadas e defendidas de forma contínua” (WILLIAMS, 2011, p. 52).
III. Mutações do poder na contemporaneidade
Em nosso próprio tempo, a renovação das formas de poder e hegemonia segue avançando a partir de linhas que atualizam, em sentidos às vezes inusitados, as tendências apontadas por autores do século XX. Uma vez consolidadas as modernas civilizações urbano-industriais, mais sofisticadas se tornam suas estruturas estatais e a arquitetura de suas sociedades civis. A contemporaneidade do capitalismo é assinalada por intensas transformações sociais, econômicas e tecnológicas, que incluem, como capítulo destacado, um florescimento inédito dos ecossistemas comunicacionais. O processo como um todo acarreta profundas consequências ao desenvolvimento da técnica política.
As transformações políticas do capitalismo acompanham a evolução de sua dinâmica econômica. Esse sistema vive agora a plenitude de sua fase “superior”, chamada por Lênin (1981) e outros autores de imperialismo. Essa etapa compreende a concentração da produção, a formação de grandes monopólios, a ascensão da burguesia financista como classe dominante e a partilha do mundo com base nos interesses dos oligopólios econômicos e dos grandes potentados políticos — em geral nações ocidentais de capitalismo avançado, dotadas de grande poderio material e cultural.
Nesse contexto, as transformações sociais e políticas são conduzidas sob os auspícios da classe que é, hoje, a verdadeira titular do poder político: a oligarquia financeira. A reformulação das estruturas de poder serve à reorganização da política e da cultura segundo os interesses dessa classe. Ela precisa movimentar-se, renovar a todo tempo o arcabouço de sua hegemonia. Ao fazê-lo promove, ao mesmo tempo e contraditoriamente, tendências civilizatórias e anticivilizatórias. É o que veremos nas linhas que seguem.
III.1. Transformações no terreno da coerção
“O esclarecimento sempre simpatizou, mesmo durante o período do liberalismo, com a coerção social”, afirmam argutamente Adorno e Horkheimer (1985, p. 9). De fato, a utopia do liberté, égalité, fraternité jamais chegou a significar, na prática, o fim dos processos de exploração e subordinação. Isso não significa, contudo, que a burguesia não tenha elevado a novo patamar de sofisticação as engrenagens da violência legitimada. Esse processo alcança, nos albores do século XXI, extraordinário grau de desenvolvimento. O poder político amplia-se, mediatiza-se e se estabelece em escala global. Multiplicam-se pontos de conexão entre sociedade civil e sociedade política, e entre as dinâmicas nacionais e o quebra-cabeça das relações internacionais. Passamos em revista a seguir, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, estas e outras tendências. Elas condensam inovações e traços distintivos da dimensão coercitiva do poder na contemporaneidade.
Projeção de poder em escala global
Propriedade de grande importância na caracterização das hodiernas mutações do poder refere-se à internacionalização das estruturas políticas, processo que acompanha a mundialização dos sistemas econômico-produtivos. Assistimos, por um lado, ao estabelecimento de mecanismos protoestatais de atuação transnacional — sistema das Nações Unidas, demais instituições do multilateralismo, entidades de coordenação de interesses (OTAN, Brics etc.). Verifica-se, por outro lado, a emergência de uma sociedade civil global, cujos movimentos, entidades e associações já não têm atuação restrita às respectivas esferas nacionais. A complexidade das novas formas de atuação em escala planetária já era antevista por Gramsci, autor que antecipa o crescimento do impacto das relações internacionais sobre o jogo político interno de cada país:
É necessário […] levar em conta que a estas relações internas de um Estado-Nação se entrelaçam as relações internacionais, criando novas combinações originais e historicamente concretas. Uma ideologia nascida em um país mais desenvolvido se difunde em países menos desenvolvidos, incidindo no jogo local das combinações. (A religião, por exemplo, sempre foi uma fonte de tais combinações ideológico-políticas nacionais e internacionais, e com as religiões as outras formações internacionais, a maçonaria, o Rotary Club, os judeus, a diplomacia de carreira que sugerem expedientes políticos de origem histórica e as fazem triunfar em determinados países, funcionando como partido político internacional que opera em cada nação com todas as suas forças internacionais concentradas […]). (1977, p 1585)
Visto de conjunto, o fenômeno da internacionalização conduz a novos mecanismos de funcionamento das superestruturas sociais. Alteram-se as formas de poder e ação política, pois o espectro dominante, nucleado pelo imperialismo norte-americano, atua em escala global e revela, a todo tempo, grande capacidade de aprendizado, reciclagem e adaptação. Prova disso é o conjunto de modelos táticos que vêm sendo coligidos sob o conceito de guerras híbridas. Segundo Andrew Korybko (2015), a guerra híbrida é uma abordagem padrão que visa ao controle e à eventual ‘mudança de regime’ em nações determinadas, com a consequente imposição dos interesses de um país sobre outro(s).
A nova abordagem compõe-se de duas vertentes principais. Há, de um lado, o modelo de ‘revoluções coloridas’, inicialmente empregado em países da órbita pós-soviética. Esse padrão encontra-se sintetizado na “dominação social” construída com “técnicas ideológicas, psicológicas e de informação” (KORYBKO, 2015, p. 29). De outro lado, a chamada guerra não convencional completa o modelo. Ela pode ser definida “como qualquer tipo de força não convencional (isto é, grupos armados não oficiais) envolvida em um combate largamente assimétrico contra um adversário tradicional” (KORYBKO, 2015, p. 6).
Essas duas vertentes táticas apresentam-se, no mais das vezes, como partes complementares de uma mesma estratégia que visa à projeção de poder em escala internacional, com objetivos geopolíticos. Assim, uma guerra híbrida muitas vezes começa com tentativas de golpe branco, com base nos métodos de ‘revoluções coloridas’, e é seguida por um golpe clássico, conseguido por intermédio de guerra não convencional, caso os métodos de ‘revoluções coloridas’ não se mostrem suficientes. “A Guerra Híbrida apresenta-se como um pacote híbrido excepcional de dominação intangível e tangível das variáveis do campo de batalha que se manifesta de maneira largamente indireta.” (KORYBKO, 2015, p. 31) Foi a isso que assistimos recentemente em países como Síria, Líbia e Ucrânia, cujas elites nacionais cultivavam perspectivas e interesses contrários à dominação imperialista e, à exceção da Síria, foram levadas à capitulação.
O modelo de ‘revoluções coloridas’
Por suas características extremamente inovadoras quanto aos métodos de poder e dominação política, a vertente de ‘revoluções coloridas’ importa especialmente para os propósitos deste artigo. Os exemplos paradigmáticos de utilização da nova tática podem ser identificados entre os anos de 2003 e 2005, quando três ex-repúblicas soviéticas foram palco de mobilizações de massa aparentemente espontâneas que serviram de cobertura para golpes políticos orquestrados por forças oposicionistas de matiz liberal e pró-ocidental. Os três episódios — que na imprensa ocidental foram tratados como a ‘Revolução das Rosas’ na Geórgia (2003), a ‘Revolução Laranja’ na Ucrânia (2004) e a ‘Revolução das Tulipas’ no Quirguistão (2005) — resultaram na derrubada de governos enfraquecidos por meio de campanhas não violentas e aparentemente ‘populares’, motivadas por denúncias de ‘fraudes’ em processos eleitorais.
Embora a chamada ‘Revolução das Rosas’ tenha sido a primeira, e talvez mais paradigmática, entre as ‘revoluções coloridas’, é possível afirmar que o modelo de ação política subjacente às rupturas desse tipo já vinha sendo testado anteriormente. A estratégia remete mais diretamente à chamada ‘Revolução Bulldozer’, que resultou na derrubada de Slobodan Milosevic na Sérvia, no ano 2000. Antes disso, fórmulas semelhantes já podiam ser detectadas nos acontecimentos que resultaram no fim de regimes do Leste Europeu não mais apoiados por Gorbachev, como os da Alemanha Oriental e da Tchecoslováquia, este último posto a pique com a ‘Revolução de Veludo’.
Se não tiveram início na Geórgia com sua ‘Revolução das Rosas’, as estratégias utilizadas nas ‘revoluções coloridas’ tampouco se encerram com os eventos nos dois países que lhe sucederam imediatamente — a Ucrânia e o Quirquistão. O método seguiu em aplicação e foi logo exportado para outros países e situações ao redor do mundo. Em uma lista certamente não exaustiva, podemos mencionar a ‘Revolução dos Cedros’, no Líbano, a ‘Revolução Rosa’ no Iêmen, a ‘Revolução Verde’ no Irã, a ‘Revolução do Açafrão’ em Mianmar e os movimentos de caráter intermitente no Tibete, embora muitos destes não tenham atingido plenamente seus objetivos. Poderíamos incluir ainda nesse grupo episódios ocorridos na Bielorússia e no Zimbábue, entre outros.
Da Ásia o modelo foi exportado para o Oriente Médio, desencadeando (ou tirando proveito de) o conjunto de sublevações que ficou conhecido como a ‘primavera árabe’. No Egito e na Tunísia, levantes com sólidas raízes, e de extração realmente popular — ligados, em primeiro plano, a reivindicações por democracia, e em última instância a pressões sociais, econômicas e demográficas —, derrubaram um conjunto de regimes políticos desgastados, muitos deles até então apoiados pelo próprio imperialismo. Este é então obrigado a reposicionar-se e manobrar intensamente.
Em outros países da região (Síria, Líbia, Irã), a tática de ‘revoluções coloridas’ foi usada para apresentar movimentos antipopulares como parte da mesma onda de protesto popular, com o objetivo de eliminar governos hostis aos objetivos imperialistas na região. Para os efeitos deste artigo, importa sublinhar que “um aspecto da máxima relevância […] levantado pela Primavera Árabe é a utilização explícita da estratégia de Mudança de Regime (Regime Change) das chamadas ‘revoluções coloridas’, um novo elemento das relações internacionais” (VISENTINI et alli, 2012, p. 72).
Na América Latina, podemos mencionar a intensa agitação antichavista na Venezuela e as grandes manifestações de massas que conduziram ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff no Brasil, entre outros casos. Todos eles trazem em si diversos traços comuns ao modelo de guerras híbridas, em especial em sua vertente de guerra ideológica e psicológica. No entanto, cabe notar que tais movimentos, embora exalassem de si nítidas conotações de ‘mudança de regime’, já não contemplavam todas as variáveis do paradigma de ‘revoluções coloridas’, pois a realidade latino-americana exalava singularidades que a tornavam irredutível a outras experiências. Em particular no caso brasileiro, uma importante diferenciação sistêmica deve ser observada: a complexidade da tessitura da sociedade civil, boa parte dela sob hegemonia de forças democráticas e de esquerda, fator que torna muito mais instável e imprevisível a aplicação pura e simples dos métodos de não violência consagrados no script das ‘revoluções coloridas’.
Esse fato levou a inovações e adaptações, que conduziram a novas fórmulas de exercício da hegemonia civil em escala global. Os novos métodos traziam novidades no discurso político, que agora incluía acusações de ‘corrupção’, ‘autoritarismo’ e ‘intervencionismo estatal’. Houve, ainda, a mobilização de segmentos com papel menos destacado nas experiências de ‘revoluções coloridas’: juízes, procuradores, policiais, auditores e outros atores corporativos da burocracia estatal. Last, but not least, sublinhe-se a propagação de práticas institucionais inéditas, como a instrumentalização de casas parlamentares conservadoras e a banalização do instituto do impeachment, naquilo que viria a configurar o modelo de golpes parlamentares.
Mecanismos ampliados de poder
Como fica claro na tática de guerras híbridas, em particular na vertente de ‘revoluções coloridas’, a descrição gramsciana da emergência de formas ampliadas de exercício do poder, que transbordam das estruturas estatais, revela-se de imensa atualidade. O contexto político contemporâneo é marcado pela atuação enérgica de movimentos, entidades, articulações, campanhas e demais atores da sociedade civil, por vezes bastante influentes. Eles ajudam a conferir a aura de legitimidade indispensável a qualquer estratégia política. Antes demarcadas por contextos nacionais, essas estruturas agora se caracterizam por profundo entrelaçamento com forças emanadas do contexto global, com a qual se coordenam intensa e incessantemente.
Nesse processo, movimentos e articulações nativas frequentemente contam com a colaboração de atores estrangeiros. Isso inclui, evidentemente, instituições governamentais, a exemplo da célebre USAID, agência americana de apoio ao ‘desenvolvimento internacional’ que despendeu 1,5 milhão de dólares apenas para computadorizar o sistema de apuração de votos da Geórgia (FAIRBANKS apud ORTEGA, 2009, p. 23), no processo eleitoral que serviu de estopim à ‘Revolução das Rosas’.
Contudo, para além das instituições propriamente estatais, a imposição de interesses e poder faz-se hoje por intermédio de uma miríade de entidades e ONGs ligadas ao imperialismo ocidental, que provêm muito do apoio técnico e midiático, da solidariedade política e das fontes de financiamento indispensáveis ao exercício de atividades de mobilização e formação da opinião. As formas de atuação de ONGs e demais organizações civis incluem o acompanhamento de campanhas e eleições, a defesa do meio ambiente e de minorias étnicas ameaçadas, a realização de cursos sobre ‘governança’, ‘democracia’, ‘direitos humanos’ e temas correlatos, além de outras atividades voltadas à capacitação técnica e política de quadros. Trata-se de iniciativas à primeira vista inatacáveis, construídas em torno a causas justas, mas que podem ser facilmente instrumentalizadas para a promoção de interesses inconfessáveis.
As nações europeias são muito ativas nessa área, e atuam tanto através de tradicionais fundações de estudos e formação da opinião quanto por meio de ONGs de agitação política (VISENTINI, 2012, p. 74). Também as organizações civis ligadas aos interesses dos EUA exibem desenvolta atuação internacional. Destacam-se nesse campo instituições como Freedom House, National Endowment for Democracy (NDE), International Republican Institute (IRI) e a Fundação George Soros, todas bastante atuantes tanto nas ‘revoluções coloridas’ propriamente ditas quanto na ‘primavera árabe’. Não menos dignas de menção são National Democratic Institute for International Affairs (NDI), Open Society Institute e Fair Elections. Estas e outras instituições já despenderam centenas de milhões em financiamentos para os países que serviram de palco às famigeradas guerras híbridas. Como ressalta Visentini et alli (2012, p. 74), não é necessário ser nenhum “espião” para ter acesso a informações sobre esses financiamentos: elas podem ser obtidas nos próprios sites das organizações. O mesmo autor revela que
Na Jordânia, o ciberdissidente Oraib Al-Rantawi foi financiado pela NDI; no Iêmen, a jornalista Tawakel Karman recebeu apoio da NED e da ONG Women Journalists without Chains; na Argélia, a Coordenação Nacional pela Mudança Democrática recebeu recursos da NED e do sindicalismo norte-americano; e, na Síria, Tal Al-Mallouin, uma blogueira de 20 anos, que teve papel ativo no início do movimento [contra o presidente Bashar-Al-Assad], fez uma viagem de preparação no exterior. […] Desde 2005, 10 mil egípcios participaram de programas e estágios sobre Democracia e Governança, financiados pela USAID e organizados pela NDI, pela IRI e por mais 28 organizações. (VISENTINI et alli, 2012, p. 75)
É grande a capacidade que possuem essas organizações de disseminar padrões de organização e atuação política, os quais se difundem com facilidade vazando por fronteiras nacionais cada vez mais porosas. As formas de “contágio” e disseminação desses modelos incluem cursos, seminários e demais alternativas de articulação — muitas delas hoje possibilitadas pelas novas tecnologias digitais. Uma análise atenta das experiências modelares de ‘revoluções coloridas’ — em particular a ‘Revolução Bulldozer’, a ‘Revolução das Rosas’ e a ‘Revolução Laranja’ — revela como, a partir de intercâmbios transnacionais, organizações de ‘transparência eleitoral’ retroalimentaram-se umas às outras. Nas palavras de Beissinger,
Ativistas da sociedade civil na Geórgia estabeleceram ligações com a Otpor [organização sérvia atuante na ‘Revolução Bulldozer’] na primavera de 2003. Alguns dias após retornarem, haviam criado a Kmara [movimento juvenil protagonista da ‘Revolução das Rosas’]. […] Na Ucrânia, o movimento jovem Pora, que teve papel central na Revolução Laranja, teve como modelos as organizações da Sérvia e da Geórgia. […] Um grande número de jovens quirguizes foram à Ucrânia durante a Revolução Laranja como observadores eleitorais; eles voltaram para casa para criar um novo movimento, Kelkel, baseado na Otpor e na Pora. (2007, p. 262).
Todas essas organizações — em geral movimentos de juventude — adotaram como forma principal de luta o monitoramento de pleitos. Entre suas ações tornou-se notória a realização de apurações paralelas, cujos resultados serviam à denúncia de ‘desvios’ eleitorais. Conforme fica claro, estratégias políticas e simbólicas, assim como modelos de cooptação e formação de quadros — em geral jovens de bom nível educacional e cultural — foram compartilhados e aperfeiçoados ao longo do tempo. Não admira que os movimentos Otpor (Resistência), Kmara (Basta!), Pora (Está na hora!) e KelKel (Renascença) possuam todos a mesma marca: um punho cerrado, ícone de rebeldia e combatividade provavelmente decalcado da antiga organização militante norte-americana Panteras Negras.
Também na América Latina entidades e campanhas ligadas ao associativismo civil foram decisivas para a imposição da agenda conservadora, sendo o caso brasileiro emblemático nesse aspecto. Ali, organizações como “Movimento Brasil Livre”, “Vem pra Rua”, “Estudantes pela Liberdade” e “Revoltados On-Line” jogaram importante papel para a consecução do impeachment fraudulento que depôs a presidenta Dilma Rousseff. Esses movimentos inspiram-se em modelos organizativos gestados em episódios anteriores, como a ‘primavera árabe’ — em particular nas vertentes egípcia e tunisiana —, a mobilização dos indignados na Espanha, os movimentos da grife Occupy e as jornadas brasileiras de junho de 2013. O “mérito” de seu trabalho consistiu, no mais das vezes, em decalcar formas de atuação já antes disponíveis, conferindo-lhes conteúdo marcadamente conservador.
Cabe ressaltar que, ao contrário da autenticidade dos movimentos em que se inspiram, as entidades protagonistas das manifestações pelo “Fora Dilma!” são postiças. Desprovidas de tradição ou sólidos alicerces nas lutas populares, dependem fortemente da mídia corporativa. São financiadas por partidos de direita e corporações empresariais de dentro e de fora do país. O caso mais escandaloso é o da ONG “Estudantes pela liberdade”, filial brasileira do “Students for Liberty”, que recebe financiamento dos Irmãos Koch, donos do segundo maior conglomerado empresarial norte-americano (CARLOS, 2015, para. 6). A corporação, atuante no setor de energia, tem interesse no petróleo do off-shore brasileiro, o chamado pré-sal. Já o “Movimento Brasil Livre” tem vários de seus dirigentes ligados ao Institute for Humane Studies (CARLOS, 2015, para. 7), organização educacional sem fins lucrativos mantida pelos Irmãos Koch para “encorajar o estudo e o avanço da liberdade”2.
É interessante notar como, dessa forma, muitos dos interesses das elites conservadoras e das potências globais são viabilizados pela atuação de entidades não governamentais subterraneamente conectadas à política oficial, e por esse meio dotadas de financiamento e apoio técnico. Essa tática contribui para tornar mais robustas as posições dominantes. Afinal, apresentar certas ideias e propostas como a “vontade da sociedade” — e não como mera imposição do leviatã estatal — é uma oportuna estratégia de legitimação. O modelo é prodigioso em denotar ‘pureza’ de ação e ‘transparência’ de propósitos (embora estes sejam, na verdade, opacos). A impressão global do observador médio é a de estar diante de movimentos ‘populares’ politicamente ‘castos’ e ‘espontâneos’. Com efeito, o senso comum que se formou acerca de muitos fenômenos políticos contemporâneos costuma concebê-los como erupções espontâneas de uma sociedade civil ‘ativa’ e ‘irrequieta’, agora tornada global.
Conflitos de caráter simbólico
No tempo em que nos coube viver, os conflitos ético-políticos assumem caráter crescentemente simbólico, tornando-se mais evidenciadas as conexões entre significação e poder. Fica patente a importância do poder discursivo, definido por Zhang Guozuo, diretor do Centro de Pesquisas sobre Soft Power Cultural Nacional da China, como a “liderança exercida pelo pensamento” (In: AZEVEDO, 2015a, p. 71). Nessa perspectiva, a aposta no poder do discurso promove a ascensão de um projeto político; em sentido oposto, o abandono da dimensão discursiva conduz à falência qualquer expectativa de poder.
Evidentemente, as forças do status quo não subestimam essa lição. O que buscam as novas dominâncias é mobilizar elementos no plano dos significados para direcionar vivências e subjetividades, induzindo à coordenação de esforços em prol de intentos conservadores no mais das vezes inefáveis. É o que vemos com nitidez na tática de ‘revoluções coloridas’, que não se podem viabilizar sem o emprego de estratégias simbólicas consubstanciadas em técnicas psicológicas e métodos de agitação e propaganda.
O capitalismo de nosso tempo percebe ser possível mudar países e realidades transformando mentalidades; intui ser viável administrar processos de ‘mudança de regime’ a um custo econômico e político mais baixo do que aquele implicado em fórmulas de caráter coercitivo-militar. Como destaca Korybko, “as tradicionais ocupações militares podem dar lugar a golpes e operações indiretas para troca de regime, que são muito mais econômicos e menos sensíveis do ponto de vista político” (2015, p. 6).
O fato é que, no plano da dominação política, o capitalismo de nosso tempo lança mão, em larga medida, das próprias condições sociais e culturais prevalecentes, pois o senso comum já é, ele próprio, um amálgama de valores, ideias e práticas majoritariamente em situação de consonância com a ordem estabelecida. Essa realidade já não era estranha a Lênin, para quem “é compreensível que homens educados nesta sociedade assimilem, por assim dizer com o leite materno, a psicologia, o costume, a ideia de que ou se é escravista ou escravo” (1982a, p. 393-394). Hoje podemos dizer que, mais do que assimilados pelo “leite materno”, os sentidos da ordem dominante são o próprio ar que respiramos. Não será por outro motivo que formas de poder contra-hegemônico quase sempre se vejam compelidas a um uso mais ostensivo e aberto da coerção. Afinal, os valores e as ideias dominantes, já diziam Marx e Engels (1982a; 1982b), são sempre os valores e ideias da classe dominante.
No afã de construir ambiências culturais favoráveis à hegemonia conservadora, muitas vezes se usam valores e ensinamentos das forças progressistas e de esquerda contra elas próprias. É curioso perceber como, em nossos dias, prestigiados pensadores do marxismo, a exemplo de Gramsci, são citados amiúde pela chamada alt-right, a nova direita radical. Essas menções ocorrem em chave crítica, é verdade. Mas não é improvável que muitos dos ensinamentos gramscianos sejam absorvidos e terminem por influenciar os métodos de ação de correntes inimigas do marxismo. O curioso é que o próprio Gramsci já previra isso, quando atentou, em seus “Argomenti di cultura”, para o fato de que o materialismo histórico não existe de forma isolada, mas como um “momento da cultura moderna” (1977, p. 1854). Nessa condição, o marxismo terminou por fecundar, em alguma medida, outras tendências ideológicas da modernidade — algumas delas adversárias —, determinando de maneiras variadas seu desenvolvimento teórico.
Coerção mais mediada
Como vimos, a política — da mesma forma que a guerra — exibe tendências à pacificação e à domesticação. Esse processo civilizatório acelera-se à medida que avançamos modernidade adentro, acarretando mudanças às formas coercitivas de domínio e ação política, que assumem novos contornos e se tornam menos diretas e mais mediadas. As novas abordagens não anulam, contudo, as formas tradicionais de uso da força, que com elas convivem em novos arranjos e intensa simbiose.
Na nova situação, testam-se estratégias de dominação menos belicosas, que mobilizam combinações cada vez mais eficientes entre material power e soft power. Essas estratégias acabaram por configurar padrões comuns de mobilização, materializados no emprego de técnicas de ação política que incluem, com destaque, os chamados métodos de não violência. Eles foram estudados e analisados atentamente por importantes ideólogos. Merece destaque, nesse campo, o trabalho do cientista político Gene Sharp (2010), ex-professor emérito da Universidade de Massachusetts Dartmouth e pesquisador em Harvard.
Sharp foi um dos criadores da Albert Einstein Institution, organização devotada ao estudo e à sistematização de fórmulas de ‘resistência’ não violenta. Ele é autor do livreto From Dictatorship to Democracy, disponível em 25 idiomas. Um dos principais manuais de ação política não violenta, a obra tornou-se um clássico e é frequentemente apontada como principal referência conceitual a inspirar fenômenos de ebulição política como as ‘revoluções coloridas’ e a ‘primavera árabe’. Nela, Sharp deixa claro que “a luta não violenta é um meio muito mais complexo e variado que a violência. Em vez disso, a luta é travada por armas psicológicas, sociais, econômicas e políticas aplicadas pela população e as instituições da sociedade.” (2010, p. 23).
Como esclarece Sharp, os métodos de não violência aplicam-se principalmente à luta travada a partir da sociedade civil. Porém, mesmo quando consideramos exclusivamente o plano do Estado stricto sensu, é visível que também ali a coação física vai dando lugar a métodos de “não violência” — ou de violência mediada. Veja-se, a título de exemplo, a situação latino-americana, especialmente a brasileira, em que forças militares e paramilitares perdem protagonismo político para instituições e agentes do complexo policial-judiciário. A farda vem sendo sobrepujada pela toga na tarefa de garantir a ordem. Poder Judiciário, Ministério Público e instituições policiais, de auditoria e controle agigantam-se e passam a desempenhar papéis políticos proeminentes, que extrapolam muitas vezes a dimensão meramente burocrática. Essas instituições guardam, é verdade, estreita relação com a missão coercitiva do Estado, mas sempre a exerceram de modo mais discreto.
Em paralelo à hipertrofia de funções dos aparelhos policiais e judiciários, mudam-se métodos de combate. Se em tempos outros a contenção de forças contra-hegemônicas já teve como expediente principal a aniquilação física, hoje se pratica uma violência simbólica, porém não menos agressiva, que lança mão de um liquidacionismo de tipo “moral” e envolve a destruição de reputações, com evidente participação dos oligopólios midiáticos. Materializa-se, assim, um autoritarismo pós-moderno, que lança mão de formas menos ostensivas — porém não menos gravosas — de violência legitimada.
E é assim que a humanidade distancia-se, progressivamente, da bestialidade medieval e dos métodos grosseiros do jacobinismo, sem que isso implique o ocaso da dominação política ela mesma. Das ‘revoluções coloridas’ nas repúblicas pós-soviéticas aos golpes parlamentares na América Latina, assistimos à evolução de estratégias que apontam para formas inéditas de imposição de poder. Com sua inovadora tática de guerras híbridas, o imperialismo inaugura desenhos de ação política menos buliçosos e mais consensuais, que combinam uso massivo de poder econômico e financeiro com formas de coação política, ideológica e métodos pacíficos de mobilização civil.
Cabe recordar, contudo, que os eixos contemporâneos de transformação da política não se desenvolvem em linha reta. Seguem, ao contrário, um percurso irregular, que compreende avanços e recuos. Como descreveu magistralmente Marx ainda no século XIX, o capitalismo foi capaz de promover — e em grande medida ainda o faz — extraordinários progressos civilizatórios. Mas estes ocorrem pari passu com notáveis regressões, mesmo porque, em sua fase de senilidade, quando revela maiores dificuldades em promover avanços, a ordem dominante dá ensejo a flagrantes retrocessos. Avanços e regressões civilizatórias convivem no mesmo tempo e nos mesmos lugares, frequentemente de forma entrelaçada.
Nos momentos de viragem e retrocesso, a atividade política retorna a seus fundamentos últimos, assumindo novamente a face da guerra. É o que acontece hoje, quando o mundo assiste apreensivo ao recrudescimento de tendências fascistizantes que apostam no uso aberto da violência como método principal de combate político. No mesmo sentido, retornam à voga antigas formas de Estado gendarme, baseado mais na coerção do que no consenso. É quando se atualizam as palavras de Rosental e Iudin, autores soviéticos que, em seu dicionário filosófico de 1959, alertavam:
O estabelecimento do fascismo prova que as classes dominantes burguesas já não estão em condições de governar, de conservar o poder pelos meios ordinários, ‘democráticos’; prova que as aspirações crescentes de liberdade das massas populares não podem ser reprimidas senão por meio da violência e do terror sangrento. (1959, p. 199)
Fica claro como, embora se valham de novas experiências, modelos e ferramentas para gestar requintadas formas de dominância e renovar os recursos de sua hegemonia, as classes dominantes mantêm na reserva os velhos métodos de comando, sempre à mão para os casos de falha ou crise na direção, naqueles momentos em que fracassa o consenso espontâneo ou os métodos mais sofisticados de coerção não violenta. Resta, nesse caso, apenas o “terror sangrento”. É quando a burguesia reconvoca ao primeiro plano da cena histórica suas forças militares e milicianas, e revisita as antigas práticas jacobinas.
III.2. Transformações na fabricação de consensos
Da mesma forma que são detectáveis mudanças na dimensão coercitiva do poder, registram-se igualmente transformações nos processos de fabricação de consensos e liderança pelo discurso. Não é mais possível pensar esses processos da forma como se estabeleciam no período da chamada Ilustração, bem como em outros momentos da história intelectual do Ocidente. Vivenciamos, na contemporaneidade, um novo cenário ético e epistêmico, marcado por inéditas combinações entre racionalidade e afetividade. Passamos a enumerar algumas das mutações identificáveis nos processos persuasivos relacionados à elaboração dos consensos que lubrificam as engrenagens do poder e da vida social.
Desideologização e despolitização
Em seu discurso de posse ao assumir a Presidência da República, Jair Bolsonaro declarou que pretendia livrar o Brasil das “amarras ideológicas” que estariam a destruir os “valores e tradições” nacionais (ALMEIDA, 2019, para. 1-2). Essa tentativa de desideologização não começa agora, nem se restringe à realidade brasileira. Faz parte de uma ambiência cultural mais ampla, na qual grassa, como vertente das mais basilares, o discurso tecnocrático. Nessa concepção, os problemas sociais e as grandes definições nacionais, longe de envolverem escolhas políticas, requerem apenas soluções técnicas. Pretende-se reduzir o debate público a uma questão de ‘cálculo’; a política, a uma questão de ‘gestão’; o gestor, a uma máquina fria e insensível, a comportar-se ‘matematicamente’ na lida com problemas humanos.
Essa vertente discursiva representa sobrevivências — e desenvolvimentos — do velho positivismo burguês. Atualizam-se, com ela, os desvarios cientificistas de um Augusto Comte (1972), pensador que chegou a propor a substituição dos políticos pelos cientistas no comando da sociedade. Por trás dessa visão, como facilmente se entrevê, jaz a ideia de haveria formas de discurso ‘isentas’ de viés ou ideologia; de que haveria, portanto, um espaço a salvo de toda inclinação e favoritismo — o espaço da não ideologia.
Da mesma forma que uma ideologia pode ser afirmada de maneira difusa, ela pode também ser veiculada como “não ideologia”. O “não ter ideologia” pode assumir muitos significados, inclusive significados opostos. Podemos entender por esse termo que um indivíduo, classe ou segmento social realmente não tem ideologia, no sentido de que não consegue discernir com clareza seus verdadeiros interesses. Mas “não ter ideologia” pode significar também o extremo oposto: um indivíduo, classe ou grupo social que tem absoluta clareza ideológica e compreende que, para fazer valer seus interesses, é melhor apresentar-se de forma desinteressada.
Conforme exposto anteriormente, o capitalismo contemporâneo passa por mudanças genuínas, as quais se projetam para o terreno do poder e das ideias. O capitalismo financeirizado de nossos dias passa a relativizar a importância do apelo a valores públicos como forma de manutenção da ordem. Isso se teria tornado secundário com a ascensão de formas tecnocráticas de governança. O sistema assenta-se, hoje, não mais apenas em complexas estruturas de significado, mas também — e talvez principalmente — na própria falência do significado. É o que comenta Eagleton:
[…] A sociedade capitalista já não se importa se acreditamos ou não nela; não é a ‘consciência’ ou a ‘ideologia’ que a consolidam, mas suas próprias e complexas operações sistêmicas. Essa tese, portanto, deriva algo da insistência posterior de Marx de que a mercadoria automaticamente provê sua própria ideologia: é a lógica material rotineira da vida cotidiana, e não algum corpo de doutrina, um conjunto de discursos moralizantes ou uma ‘superestrutura ideológica’, que mantém o sistema em seu funcionamento básico. (1997, p. 44).
É claro que sociedade nenhuma sobrevive como um autômato, sem quaisquer referências simbólicas mais amplas. Uma sociedade que resolvesse alimentar semelhante niilismo estaria sujeita a graves consequências. Afinal, parodiando um conhecido poeta, todos querem uma ideologia para viver. Por mais que se tentem liquidar sistemas de significado em benefício de uma “automatização” da vida cotidiana, a verdade é que “o capitalismo avançado oscila […] entre o significado e o não significado, impelido do moralismo para o cinismo e afligido pela embaraçosa discrepância entre ambos” (EAGLETON, 1997, p. 46).
Em outras palavras, embora jamais possa ser absoluto, o colapso das significações é real, e viabiliza a automatização da vida comunitária. Esse fenômeno estaria a cobrar pesado tributo da atividade política, que, longe do debate racional em torno de alternativas, ter-se-ia tornado mera questão de método ou ‘gestão’. No limite, esse discurso resulta na desmoralização das instituições propriamente políticas. Ao mesmo tempo, viabiliza a atuação política de segmentos das burocracias estatais e privadas, que hoje se agigantam em face de sistemas políticos carentes de legitimidade. Não por acaso, assistimos à condenação in totum da atividade política, que, fustigada e desmoralizada, é gradativa e sorrateiramente substituída ora pela administração econômica, ora pela técnica jurídica, ora pela engenharia social — quando não por dimensões menos racionais e mais afetivas da experiência humana, como o espetáculo midiático.
No entanto, assim como a tentativa de liquidar o significado é já, ela própria, coisa do mundo do significado, também a negação da política é, na maioria das vezes, uma estratégia para viabilizar intuitos políticos. A manobra discursiva tem uma clara vantagem: ajuda a emplacar interesses determinados sem ter de submetê-los aos mecanismos ordinários da disputa política — partidos, alianças, apoios, sufrágio etc. Na história brasileira recente, a ideologia da antipolítica — que se apresenta como “anti-ideologia” — contribuiu para a desmoralização das instituições, abrindo caminho para a judicialização do processo político e para a chamada operação lava-jato, decisiva para o golpe parlamentar que, no ano de 2016, apeou do poder as forças progressistas.
A prestidigitação discursiva baseada em argumentos de desideologização promove a antipolítica e subverte algo que sempre fora caro ao próprio liberalismo, mas que não surge com ele, estando bem estabelecido pelo menos desde a Antiguidade, com Aristóteles (1985): a ideia de que a política é a forma mais elevada de solucionar conflitos e definir os rumos da comunidade de destino, a polis. Essa percepção acaba sendo atualmente deixada de lado, e até mesmo desmoralizada, em benefício de uma suposta superioridade das decisões tomadas com base no puro ‘mérito’. Nessa perspectiva, a política é ‘suja’; o ‘mérito’ é ‘asséptico’.
Não espanta que, com a disseminação desse discurso na sociedade brasileira, batalhões de corporações profissionais — policiais, juízes, procuradores, auditores, gestores, jornalistas — tenham passado a ditar os rumos do jogo político. Profissões técnicas substituíram políticos eleitos na tarefa de interpretar os anseios da sociedade. Incensadas por uma pretensa neutralidade axiológica, as corporações assumiram, aos olhos da população, uma aparência de ‘racionalidade superior’, livre da contaminação tóxica exalada da ‘ganga’ do mundo político. Se existe sentido real no termo nova política — hoje tão badalado —, este reside no fato de que, a partir de certo momento, com base no conto de fadas do fim das “amarras ideológicas”, passou-se a secundarizar a política na definição dos destinos da sociedade.
Pós-verdade
Em dezembro de 2016, a Oxford English Dictionaries elegeu pós-verdade (post-truth) como sua palavra do ano, definindo-a como significante para “circunstâncias em que os fatos objetivos são menos influentes em formar a opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal” (POST-TRUTH…, [201-]). Embora o termo já fosse empregado com certa constância na última década, o ano de 2016 registrou uma explosão: o uso da palavra em língua inglesa cresceu ao menos 2.000% (FÁBIO, 2016). Aquele ano, vale lembrar, ficaria marcado por duas importantes ocorrências políticas: o referendo concluído com a vitória do Brexit, o rompimento britânico com o bloco europeu, e a eleição de Donald Trump como 45º presidente dos Estados Unidos. Ambos os episódios registraram a disseminação em massa de fake news, um dos traços marcantes da nova paisagem cultural que se convencionou denominar pós-verdade.
A era da pós-verdade traz à tona um novo equilíbrio epistemológico, caracterizado pela indiferença à verdade em sua dimensão factual, tanto quanto pela tolerância à distorção. Mudanças na ecologia comunicacional — com o aparecimento da comunicação mediada por computador e, em especial, da chamada web 2.0 — foram, sem dúvida, fatores em alguma medida determinantes do fenômeno. Porém, ainda mais decisivas foram as transformações no panorama cultural mais amplo, em que passam a predominar tendências ao relativismo cognitivo e à negação dos valores universalizantes da modernidade. A nova ambiência, que se convencionou chamar de pós-modernidade, é frequentemente associada “a um abandono do projeto iluminista de crítica racional” (EDGAR; SEDGWICK, 2008).
Vivenciamos, em tempos pós-modernos, uma nova era discursiva, marcada pela recusa das utopias e dos grandes projetos saneadores — classificados como nada além de “metanarrativas” socialmente interessadas (LYOTARD, 2009). Utilizando-se do ceticismo, da ironia e da fragmentação, os pensadores pós-modernos contribuíram para o estilhaçamento de noções como verdade e realidade objetiva. A nova tendência, diz D’ancona, conferiu “prestígio intelectual ao cinismo elegante e uma face diferente ao relativismo. […] Tornou-se uma ferrugem sobre o metal da verdade” (2018, p. 89). Ao solapar as bases do moderno racionalismo, a pós-modernidade abriu caminho à dissolução dos valores do Iluminismo e, dessa forma, à irrupção da era da pós-verdade. Parafraseando Lênin, podemos afirmar que a pós-verdade é o estágio supremo da pós-modernidade — o momento em que o pensamento pós-moderno dissemina-se em metástase, atingindo a plenitude do senso comum.
A exata etimologia do termo pós-verdade é contestada, mas parece ser consenso que sua primeira utilização deu-se em 1992, no ensaio “Um governo de mentiras”, do dramaturgo sérvio-norte-americano Steve Tesich, publicado na revista The Nation. Naquela ocasião, Tesich atentava para o fato de que, traumatizados após sucessivos escândalos políticos envolvendo mentiras e ocultações — o autor cita expressamente os casos Watergate e Irã-Contras, além da primeira guerra do Golfo —, os americanos passaram a desdenhar da verdade e até a conspirar contra ela. “Começamos a enxergar a verdade como sinônimo de más notícias e não mais queríamos notícias ruins, não importando o quão verdadeiras ou vitais para a nossa saúde como nação essas notícias fossem. Queríamos que nosso governo nos protegesse da verdade”, escreveu Tesich (1992, p. 12).
Mais de uma década após esse ensaio pioneiro, vem à tona The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life, do escritor norte-americano Ralph Keyes. O livro relata o que identifica como um fenômeno abrangente da vida contemporânea: a transformação da desonestidade em rotina (KEYES, 2004). O autor diagnosticava, então, a metástase do cinismo. O compromisso com a honestidade passava a andar de mãos dadas com a mentira como prática de rotina. Enganar outrem se teria tornado para nós, inadvertidamente, quase que uma atividade de lazer. “A lacuna entre a verdade e a mentira encolheu para um trisco”, dizia Keyes (2004, p. 14).
Para o autor, pós-verdade não é necessariamente sinônimo de mentira ou falsificação, mesmo porque a desonestidade e a falta de escrúpulos jamais deixaram de existir. Qual a novidade, então? A novidade é que estamos diante de uma nova atmosfera ética e epistemológica, em que o hiato entre realidade e imaginação parece esvanecer-se. É preenchido, no mais das vezes, pela argamassa das afetividades. A pós-verdade reduz o papel das evidências arremessando, contra a pedra dura dos fatos, a água mole dos sentimentos. O que há de novo é um inédito balanço entre elementos lógicos e afetivos, no qual a razão não é mais absoluta ou superior, como um dia o quis o Iluminismo. Nessa nova e movediça realidade, o elemento factual perde espaço para os apelos emocionais e as informações falsas ou distorcidas, configurando-se em sua plenitude a pós-verdade.
Nela, como esclarece Keyes, “não temos apenas verdades e mentiras, mas uma terceira categoria de afirmações ambíguas que não são exatamente a verdade, mas não chegam a ser mentira” (2004, p. 27). Um dos primeiros exemplos célebres desse tipo de ambiguidade foi-nos dado pelo ex-presidente Ronald Reagan quando do chamado escândalo Irã-contras. Na ocasião, conforme revelado, figuras chave de seu governo comercializavam armas para o Irã, que estava sujeito a um embargo internacional. O tráfico de armamentos foi usado como moeda de troca para viabilizar a libertação de reféns americanos e financiar rebeldes anticomunistas na Nicarágua. Flagrado na mentira após ter garantido categoricamente que nada disso acontecia, Reagan fez um pronunciamento em cadeia nacional que bem pode ser considerado um marco da política pós-verdadeira:
Há alguns meses, eu disse ao povo americano que não trocava armas por reféns. Meu coração e minhas melhores intenções ainda me dizem que é verdade, mas os fatos e as evidências me dizem que não é. Como o Tower board informou, o que começou como uma abertura estratégica para o Irã deteriorou-se, em sua implementação, em troca de armas por reféns. Isso vai contra as minhas próprias crenças, a política do governo e a estratégia original que tínhamos em mente. (IRAN—CONTRA…, 2019, para. 50; CANNON, 1987)
Desde o advento das modernas repúblicas liberais, acostumamo-nos a pensar que democracia e mentiras não combinam; que a nação pode ter seus destinos perturbados quando seus líderes mentem. Com aquele discurso paradigmático, uma nova era discursiva descortinava-se perante nossos olhos. Ela se caracteriza por um trânsito intenso entre logos e patos, entre razão e devaneio, entre “meu coração e minhas melhores intenções” e aquilo que indicam, inapelavelmente, “os fatos e as evidências”. Instalava-se no mundo Ocidental a pós-verdade; a honestidade não deveria mais ser uma qualidade cobrada dos líderes políticos.
Embora surgido em 1992, no ensaio de Tesich para The Nation, e dissecado em 2004 no livro de Keyes, o conceito de pós-verdade só se tornaria conhecido do grande público em setembro de 2016, com a veiculação, pela revista The Economist, do editorial “Art of the lie”. Nele, a prestigiosa publicação britânica afirmava: “[…] A verdade já não é falseada ou contestada; tornou-se secundária […]. São os sentimentos, não os fatos, que importam nesse tipo de discurso” (ART…, 2016: para. 5-6). A Economist não trouxe o tema para suas páginas editoriais por acaso. Ocorrida no primeiro semestre daquele ano, a vitória do voto plebiscitário pelo rompimento da Grã-Bretanha com a União Europeia, o chamado Brexit, havia explorado não apenas uma série de mentiras e falsificações, mas também uma tendência que se salientava na vida cultural e no mundo político: a suspeita generalizada em relação a especialistas e fontes credenciadas de informação.
Tais fontes e especialistas — cujo símbolo maior tornou-se, naquela ocasião, a elite de Bruxelas — passavam a ser caracterizados como venais e inescrupulosos, quando não como fraudulentos. “O crédito conferido pelo povo à opinião de experts e instituições estabelecidas caiu nas democracias ocidentais”, diagnosticava The Economist (ART…, 2016: para. 8). Difundia-se a ideia, profundamente desagregadora, da existência de um gap intransponível entre as pessoas comuns — em especial habitantes das periferias das metrópoles e moradores de pequenas cidades do interior — e as elites intelectuais metropolitanas.
Essa tendência ressurgiria potencializada na campanha vitoriosa de Donald Trump, um tipo de político que não se ressente do descompromisso em relação à verdade factual. Segundo o site de checagem de informações PolitiFact, ganhador do prêmio Pulitzer, 69% de suas declarações são “predominantemente falsas”, “falsas” ou “abertamente mentirosas”, e outros 14% são apenas “parcialmente verdadeiras” (DONALD…, 2019; VALVERDE, 2019). Nada disso representou óbice à eleição do magnata. Ao contrário: seu discurso ladrilhado de afirmações pós-verdadeiras encontrou forte acolhida em um eleitorado infenso às estatísticas e “evidências” ostentadas pela elite nova-iorquina.
Em seu célebre editorial sobre a pós-verdade, The Economist diagnosticava que, por trás do fenômeno, espreitam forças profundamente corrosivas, como o ódio e a intolerância. “Muitos eleitores sentem-se decepcionados e deixados para trás, enquanto as elites no comando prosperam. Eles estão desdenhosos com os tecnocratas egoístas que diziam que o euro melhoraria suas vidas e que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa.” (ART…, 2016: para. 8) Parece não restar dúvida de que essa indignação encontrou seu desaguadouro no discurso preconceituoso e xenófobo de Donald Trump.
Segundo o filósofo A.C. Grayling, a grande crise de 2007-08 marca o ponto de mutação que levou à irrupção da pós-verdade. “O mundo mudou depois de 2008”, diz o filósofo, para quem a política, a partir da crise financeira, passou a ser moldada por um crescimento “tóxico” da desigualdade de renda (In: COUGHLAN, 2017: para. 8). Após a última grande crise financeira, que deixou a economia global em frangalhos, os argumentos em defesa da globalização, sempre reforçados com grossas estatísticas, passaram a contrastar com o empobrecimento da maioria dos cidadãos. Isso fez aumentar a indignação das pessoas, incapazes de enxergar nos números a realidade prática que se apresentava ao seu redor. O resultado não poderia ser outro: a hostilidade contra as elites e seus “especialistas” ganhou expressão e força na esfera pública.
A crise econômica gerou em todo o mundo um caldo de cultura que mistura desconfiança, raiva e frustração. O sentimento generalizado de desamparo e privação de direitos conduziu a respostas defensivas como a intolerância, a xenofobia e o racismo. Muitos acabaram por refugiar-se no gueto, mesmo que esse gueto não passasse de um algoritmo informacional. A inquietação e o desencanto brotaram dessa ambiência como relva bem adubada, e impulsionaram a indiferença. No extremo, os cidadãos se exaurem e sucumbem à mais completa resignação. Um niilismo extremado instala-se, conduzindo, no limite, à falência do sentido. É nesse ponto que se rompe a teia do verossímil e, com ela, qualquer traço de compromisso com a realidade. A falsificação passa a ser vista como regra, não mais como exceção. Nesse quadro de prostração cognitiva, considerações ponderadas e racionais deixam de fazer sentido e perdem espaço para convicções arraigadas, muitas delas puramente sentimentais.
Já em 1992 Tesich asseverava que a era da pós-verdade era também a da desesperança: um tempo em que se anuncia não mais haver solução para a desigualdade social. Devemos nos acostumar com o mundo tal qual se apresenta. “Os níveis atuais de miséria e decomposição de nossas cidades e os gulags econômicos de nossos guetos tornam-se aceitáveis. […] Há um congelamento da esperança. Os ‘sem-nada’ agora são reclassificados como os ‘jamais-terão’.” (TESICH, 1992, p. 13) Diante desse quadro, muitos preferiram encampar “uma postura terapêutica em que não se cobra a responsabilidade de ninguém em relação à desonestidade ou a muito de qualquer coisa” (KEYES, 2004: 117). Tudo passa a ser aceito. Em face da apatia, juízos e deliberações centrais, que deveriam estar corretamente instruídos, são entregues ao imponderável da afetividade.
A era da pós-verdade, importa ressaltar, desenvolve-se em plena correspondência com as estruturas econômicas da sociedade pós-industrial. Sabemos que, na etapa de predomínio da finança, o capital reproduz-se de forma largamente especulativa, desvinculado da produção real. É a chamada autovalorização do valor. Esse capital em grande medida fictício, de valor meramente contábil, gira sobre si próprio, descolado de esteios concretos no mundo do trabalho. Assim são, também, as novas discursividades da era pós-moderna: os significados giram no ar, amparados em si próprios, descorados da esfera da racionalidade — seja ela de tipo lógico-abstrato, seja de tipo empírico-factual.
Tecnologias interativas e poder discursivo
Certa tradição intelectual — que tem como antecedentes o movimento romântico e inclui vastos contingentes de pensadores marxistas — costuma conceber a cultura como esfera “espiritual” da sociedade, comumente contraposta à produção material de bens como alimentos, ferramentas e outros utensílios. Entretanto, mesmo nos marcos dessa separação entre o “material” e o “espiritual”, não é preciso pensar muito para nos dar conta de que, como teoriza Williams, “sejam quais forem os objetivos a que vise a prática cultural, seus meios de produção são indiscutivelmente materiais” (2000, p. 87). Com esse entendimento, o sociólogo britânico busca assestar os meios de comunicação como meios materiais de produção da cultura.
Desde suas formas mais simples, compostas pelas diversas linguagens orais e visuais, até as formas tecnologicamente mais avançadas, da escrita aos modernos dispositivos técnicos, os meios de comunicação sempre foram social e materialmente produzidos. Estão presentes em praticamente todas as formas de trabalho e organização social, devendo ser vistos, portanto, como parte importante das forças produtivas e das relações de produção. Sua trajetória vincula-se às diversas fases da capacidade técnico-produtiva humana. Mas os meios de comunicação são também determinados, especialmente em seus usos, por relações históricas variáveis com os modos de produção, isto é, com o complexo geral de relações sociais no interior do qual se desenvolvem as forças produtivas. As relações entre os dispositivos comunicacionais e os diversos modos de produção variam historicamente, podendo ser de colaboração ou de oposição. Dito de outro modo, os meios de comunicação podem ser funcionais ou disfuncionais à ordem estabelecida.
É importante sublinhar que a resolução dessa disjuntiva não se dá no plano da técnica. Sabemos que todo recurso tecnológico é desenvolvido para certos propósitos. O objetivo é sempre o de facilitar práticas humanas, sejam elas conhecidas ou desejadas. Há, em todo caso, uma intenção original. Mas ela não é exclusiva. O desenvolvimento da tecnologia será afetado por usos e efeitos imprevistos, oriundos do contexto social mais amplo. É nesse contexto — marcado, diga-se, por relações de exploração e vassalagem — que muitos segmentos sociais se movimentam, com suas próprias intenções e prioridades, e é nesse mesmo contexto que o caráter dos meios será definido. Como lembra Williams (1990), um explosivo pode ser desenvolvido por um grupo industrial para facilitar seu trabalho, mas pode ser usado por um grupo revolucionário para explodir as instalações dessa mesma indústria. De modo idêntico, as intenções que moviam os jovens e talentosos cientistas e empreendedores que criaram o Facebook não necessariamente correspondem ao papel social e político que essa ferramenta passaria a jogar, de vez que apoderada pelos grandes grupos econômicos.
O século XXI trouxe consigo a alvissareira novidade das tecnologias interativas, entre as quais se destacam as redes sociais digitais. Por suas características topológicas, as redes sociotécnicas garantem extensa conectividade, favorecendo a cultura associativa e o posicionamento cívico. Os novos ambientes em rede também propiciaram a redução de custos logísticos, facilitando uma radical descentralização e difusão de conteúdos e aumentando a produtividade dos agentes políticos em seus esforços mobilizadores.
Sejam quais forem os interesses que se servem da chamada web 2.0, é fato irrecusável que ela ampliou o poder de fogo de campanhas, movimentos e demais articulações da sociedade civil. Não à toa, na última década — especialmente a partir da ‘primavera árabe’ — a fórmula da hegemonia civil alcançou novo impulso com a incorporação das tecnologias de informação e comunicação (TICs), fazendo surgir o fenômeno do ciberativismo: a utilização, em campanhas e mobilizações sociais e políticas, de plataformas tecnológicas como Facebook, Twitter e Instagram.
Estes e outros exemplos mostram como os formatos narrativos não lineares auspiciados pela web 2.0 fornecem ao associativismo civil e às organizações políticas novas e alvissareiras ferramentas. Modos colaborativos de construção da informação e do conhecimento, como o “tagueamento” e a hipertextualidade, permitem a rápida recuperação e o “ranqueamento” de temas públicos. Não são poucos os exemplos de utilização de hashtags por movimentos e articulações sociais para expressar demandas ou como forma de protesto. Emplacar trending topics no Twitter, por exemplo, tornou-se uma das mais eficazes formas de conquistar visibilidade para causas e bandeiras.
No campo da mobilização social e política, além de elevar a produtividade das ações, o uso desses recursos contribuiu para a construção de uma imagem positiva acerca dos movimentos e demais atores que as utilizam. A narrativa de jovens ‘modernos’ e ‘conectados’, munidos de modernas ferramentas interativas, foi reforçada pelo jornalismo por meio de expressões como “os guerreiros do Facebook”. Trata-se, contudo, de visões eivadas de tecnicismo, que contribuem para ocultar as intensões políticas desses movimentos, as quais não coincidem, muitas vezes, com os reais anseios populares. Como afirma Gladwell (2010), não sem uma pitada de escárnio, “se antes os ativistas eram definidos por suas causas, agora são definidos pelas ferramentas que empregam”.
O fato é que o imaginário otimista que se criou em torno da internet contribuiu para incensá-la com os vapores de um igualitarismo abstrato. Para muitos, as novas tecnologias seriam impulsionadoras de uma nova cultura participativa e democrática, em que todos teriam iguais possibilidades de promover suas ideias e opiniões. Alguns chegaram a falar em uma ‘nova era’ de pluralismo. Achou-se mesmo que a arquitetura distribuída das redes funcionaria como contraponto à estandardização imposta pelos conglomerados da indústria cultural.
Hoje, uma realidade bem menos inspiradora impõe-se diante de nossos olhos. Em face de um ciberespaço colonizado por interesses comerciais e políticos muitas vezes atentatórios contra o desenvolvimento humano, as ciências sociais cobram uma nova ênfase. É necessário trazer à tona um tipo diferente de interpretação, distinta daquilo que Williams (1990) denominou determinismo tecnológico. Nessa perspectiva, as novas tecnologias são consideradas em si mesmas, e não como resultado de um processo determinado social e historicamente. A pesquisa tecnológica é concebida como autogeradora. A tecnologia vem ao mundo “por um processo essencialmente interno de pesquisa e desenvolvimento” (WILLIAMS, 1990, p. 26) e então cria novas sociedades e um novo homem.
Muitos não se dão conta de que a tecnologia é só uma ferramenta. Concretizada em ambientes socioculturais específicos, ela catalisa as vantagens e desvantagens desses ambientes. Parece que as desvantagens não eram poucas, pois as redes sociodigitais, mesmo com o enorme potencial de promoção do conhecimento que possuem, contribuíram para que as pessoas dispensassem a complexidade e se refugiassem no simplismo, buscando apenas aquilo que confirma suas crenças. Contribuiu para esse fenômeno o modelo de negócios de megaempresas como Google e Facebook. Baseado no uso de algoritmos, ele habilitou novas formas de tribalismo, impulsionando uma atitude monológica, de franca negação do conflitante. O potencial emancipatório da rede revelou-se, em grande medida, uma miragem. Quando essa ilusão desmoronou, emergiu em seu lugar, imponente, a realidade de um mundo virtual tomado por interesses inconfessáveis.
Os promotores desses interesses não tardaram a perceber que os modelos de big data3 antes empregados no comércio de mercadorias podiam ser igualmente usados na “venda” de ideias e ideais. Métodos de data analysis empregados pela empresa Cambridge Analytica têm sido apontados como decisivos tanto para a vitória do Brexit quanto para a eleição de Donald Trump. Há evidências de que essa empresa, a partir do exame de dados disponibilizados na internet, criou perfis de personalidade usados para confeccionar anúncios políticos “customizados” — muitos deles baseados em apelos emocionais ou informações falsas — que foram direcionados a milhões de eleitores. “Alguns descreveram as ferramentas da Cambridge Analytica como ‘software de leitura de mentes’, uma ‘máquina de propaganda baseada no uso de inteligência artificial como arma’ que ‘virou o mundo de cabeça para baixo’, saturando os eleitores com mensagens cuidadosamente elaboradas.” (GONZÁLEZ, 2017, p. 9)
A grande novidade do Brexit e da eleição de Trump foi a descoberta de que a associação entre big data e redes sociais — que já havia sido decisiva para manipular mercados e até para causar terremotos financeiros — era também utilizável em processos deliberativos. O novo capítulo dessa história aconteceu no Brasil com a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República. Há fortes indícios de que os métodos acima descritos, adequados a aplicativos como o Whatsapp, foram utilizados nas eleições brasileiras, contribuindo para a vitória do candidato da extrema-direita.
O estratagema pode ter sido deflagrado a partir de contatos da campanha de Bolsonaro com Steve Bannon, estrategista chefe da campanha de Donald Trump e ex-membro do board da Cambridge Analytica (CRUZ, 2018; PHILLIPS, 2018). Em todo caso, é certo que durante as eleições presidenciais, conforme relatam cientistas brasileiros em pesquisa divulgada no New York Times, o Whatsapp “foi usado para espalhar quantidades alarmantes de desinformação, rumores e falsas notícias” (TARDÁGUILA; BENEVENUTO; ORTELLADO, 2018: para. 1). É nesse contexto que se revelam de imensa atualidade as preocupações de Adorno e Horkheimer, quando alertaram para “a disposição enigmática das massas educadas tecnologicamente a deixar dominar-se pelo fascínio de um despotismo qualquer” (1985, p. 3).
Em nosso tempo, novas tecnologias de informação e comunicação irrompem a todo momento. Como meios avançados de produção da cultura, elas são decisivas para a conformação das ambiências em que se dá a fabricação de consensos. Nesse sentido, podem servir à transformação de instituições, políticas e usos. Mas podem igualmente, na direção inversa, reforçar as formas e os significados que fundamentam a ordem existente. A depender do contexto em que se inserem, isto é, das relações sociais em cujo âmbito se organizam, os meios de comunicação podem servir à ampliação ou à restrição da democracia. Podem contribuir para a difusão da informação e do saber ou, paradoxalmente, proporcionar o mergulho de populações inteiras nas trevas da estupidez. Nada disso está diretamente inscrito na tecnologia. Enquanto vivermos sob as velhas relações de produção — o velho arcabouço social, político e ideológico —, a tecnologia não poderá libertar o homem. Ela jamais fará isso por si própria. Tecnologias libertadoras só são possíveis com relações sociais libertadoras.
IV. Conclusão
A marcha civilizatória conduz a formas superiores de atividade política, com o estabelecimento de arranjos institucionais mais estáveis. Esse processo conhece grande florescimento na modernidade, mas não se remata com ela: continua a desdobrar-se em nosso tempo. O alvorecer do século XXI trouxe consigo inovações no que tange a métodos e fórmulas de domínio e ação política. Mais complexos e voláteis se tornaram os sistemas de entidades estatais e paraestatais cujo entrelaçamento configura as atuais ambiências de poder. A situação é plena de transformações que irrompem tanto no terreno da coação legitimada quanto no domínio da construção de consensos. Vistas de conjunto, as mudanças apontam, conforme enunciado anteriormente, para um novo equilíbrio nas relações entre coerção e consenso, sendo este o traço definidor das contemporâneas disposições do poder político.
Por óbvio, não estamos diante de situação em que os expedientes de dominação tenham deixado de existir. Conforme teoriza Lênin, “a forma de luta pode mudar, e muda constantemente, de acordo com diversas causas, relativamente particulares e temporais, enquanto a essência da luta, o seu conteúdo de classe, não pode mudar enquanto subsistirem as classes” (1981, p. 631). É dizer: poder e ação política seguem efetivos na contemporaneidade, ainda que dotados de novas aparências — mais sofisticadas, porém igualmente mais escorregadias e ardilosas.
Acontece que os processos de construção de hegemonia mudam, desenvolvem-se com o avanço da sociedade, podendo diminuir ou ampliar sua eficácia. No capitalismo avançado, conforme ajuíza Williams (1977), a dominância habilita-se a cobrir áreas mais vastas da experiência. Isso ocorre devido a mudanças no ordenamento político e nas estruturas da comunicação social. Sistemas de ideias e práticas até então mais reservados passam a ser interpelados. A ordem dominante habilita-se a penetrar o processo social e cultural de forma significativamente maior.
Em paralelo a isso, formas mais diretas e ostensivas de imposição de poder, como a via militar, perdem espaço. “Nos dias de hoje, as armas de destruição em massa e um mundo multipolar emergente impõem limites ao confronto direto entre grandes potências”, explica Korybko (2015, p. 5). No mesmo sentido, segundo Li Shenming (In: AZEVEDO, 2015a, p. 70), diretor do Centro de Pesquisas do Socialismo Mundial da Academia Chinesa de Ciências Sociais, o comportamento do imperialismo mostra que a via militar enfraqueceu-se como meio principal de dominação; por isso a “evolução pacífica” surge como nova estratégia.
Essa estratégia não necessariamente dispensa o esforço bélico, mas estabelece com ele um novo relacionamento. A guerra de manobra pura e simples, conforme anteviu Gramsci, vai-se adequando a finalidades táticas, e abandona o terreno da disputa estratégica, salvo naqueles momentos em que se deterioram as condições do teatro político, fazendo recrudescer a opção pela violência aberta como recurso finalístico. É quando a política regride a suas formas elementares, como se vê atualmente em tantas partes do mundo, nas quais assistimos, como resultado da crise econômica e da deterioração do tecido social, à reemergência de tendências fascistizantes.
Ainda no plano do poder estatal stricto sensu, é possível flagrar novas disposições institucionais no interior das esferas políticas nacionais. O equilíbrio de poder nas modernas repúblicas parlamentaristas (ou semiparlamentaristas) encontra-se alterado. O fenômeno surge do esgarçamento das instituições políticas tradicionais — governos, partidos e casas parlamentares. Excessivamente distanciadas dos anseios da população, afundadas na corrupção e na burocracia, essas instituições se enfraquecem. Desloca-se, então, o eixo do poder político, com a hipertrofia de papéis e agendas de instituições da burocracia estatal — tribunais, caserna, instituições policiais, de auditoria e controle — e, por que não dizer, também da burocracia privada — mídia, corporações, consultorias, agências de rating etc.
A par desse processo, o poder transborda das estruturas especificamente estatais. Um dos traços distintivos da política contemporânea é “o crescimento dos atores desvinculados do Estado no mundo pós-Guerra Fria” (KORYBKO, 2015, p. 9). Não que esse processo seja novo — como mostra Gramsci, ele remonta à segunda metade do século XIX. Mas é indiscutível que alcança, na atualidade, novo impulso. O poder “fractaliza-se” através da atuação vigorosa de movimentos, entidades, campanhas e demais articulações da sociedade civil, todas com aspirações a participar de definições e ocupar espaços de poder. No complexo mundo urbano-industrial construído pela burguesia à sua imagem e semelhança, não haveria como ser diferente. As elites financeiras realizam assim, a seu modo e com base em seus próprios interesses, a utopia radical de transferência do poder do Estado para a sociedade. Como refletiam Adorno e Horkheimer, já na metade do século XX, os burgueses “aprendem com o poder das coisas a, afinal, dispensar o poder” (1985, p. 22).
“Dispensam” o poder porque ele agora está, afinal, em todo lugar. A dominação introjecta-se como conteúdo mesmo de vivências e subjetividades; assume, em imensa medida, caráter semiológico. A própria dimensão coercitiva apresenta-se cada vez mais entrelaçada à disputa persuasiva de ideias e à liderança pelo consenso, tendência que se insinua até mesmo nas arenas bélicas. A nova realidade é bem descrita por Korybko:
Embora, no passado, a guerra direta tenha sido marcada por bombardeiros e tanques de guerra, se o padrão que os EUA vêm aplicando atualmente na Síria e na Ucrânia for indicativo de algo, no futuro a guerra indireta será marcada por “manifestantes” e insurgentes. As quintas-colunas serão compostas menos por agentes secretos e sabotadores ocultos e mais por protagonistas desvinculados do Estado que se comportam publicamente como civis. As mídias sociais e tecnologias afins substituirão as munições guiadas como armas de “ataque cirúrgico” da parte agressora […]. Em vez de confrontar diretamente os alvos em seu próprio território, conflitos por procuração serão promovidos na vizinhança dos alvos para desestabilizar a periferia dos mesmos. (2015, p. 5-6).
Mas as mutações do poder político estão longe de restringir-se ao caráter mais mediado dos sistemas coercitivos centrados no Estado, ou mesmo ao aspecto crescentemente simbólico que assumem conflitos e formas de ação política. Mudanças de profundidade alcançam também o panorama ético e epistemológico mais amplo, afetando as condições culturais que emolduram a formação de consensos na contemporaneidade. Essas alterações são claramente conduzidas pelos donos do poder, que a realizam segundo sua visão e seus interesses. Nas palavras de Besse,
Como Marx e Engels mostraram, qualquer classe senhora do poder faz prevalecer, nas instituições e consciências, uma ideologia de acordo com os seus interesses vitais de classe exploradora e opressora. E, quando as exigências da luta de classes o impõem, reestrutura de arranjo em arranjo os moldes, os esquemas e as representações que compõem a ideologia dominante, dando-se a todos os cuidados para que o “senso comum” seja precisamente aquele que garanta, e se possível consolide, o seu poder no espírito de milhões de indivíduos. (1974, p. 176-177).
Mais de 170 anos após a famosa proposição de Marx e Engels segundo a qual “as ideias dominantes são as ideias da classe dominante”, ainda não tiramos dessa afirmação todas as suas lídimas consequências. A burguesia é a dona dos meios de produção da consciência social. Daí provém, em boa medida, sua superioridade civilizatória. Daí resulta que sejam vertentes liberal-burguesas as correntes dominantes no espectro da luta ideológica. O pensamento contra-hegemônico apresenta-se disperso e fragmentado — quando não hibridizado com as correntes dominantes. É francamente minoritário nos meios e ambientes de produção intelectual. Na maioria das vezes, mais se defende da infâmia do que propriamente investe esforços em seu desenvolvimento e atualização. Quem pontifica no terreno ideológico, praticamente sem adversários, são as tendências da dominância burguesa. As disputas teórico-metodológicas centrais costumam incluir apenas essas vertentes.
Ante tal realidade, não surpreende que os donos do poder consigam manobrar em águas turvas, tirando proveito de tendências ideológicas tão discrepantes quanto o determinismo técnico e a pós-verdade. Qualquer olhar atento logo perceberá que a desideologização proposta pelo discurso tecnocrático supõe formas de cientificismo opostas às tendências irracionalistas abrigadas no fenômeno da pós-verdade. A dominância atual opera servindo-se de polos opostos. De um lado, o determinismo técnico condensa desenvolvimentos do positivismo clássico, embora muitas vezes com outras denominações; de outro, as tendências à pós-verdade levam às últimas consequências os pressupostos relativistas firmados com o advento da pós-modernidade.
Ora, não é preciso pensar muito para concluir que estamos diante de tendências contraditórias e, mesmo, irreconciliáveis. Ao disseminar o ceticismo ético e epistemológico, os pensadores pós-modernos concorreram para a dissolução de noções antes bem assentadas, como a de verdade objetiva, cara ao Iluminismo e à corrente metodológica que representa sua institucionalização científico-acadêmica: o positivismo. Em sentido inverso, as certezas sustentadas pelo pensamento positivista, sejam elas de cunho lógico ou empírico-experimental, também não se coadunam com o relativismo cultural e a crítica do universalismo sustentados pela tradição pós-moderna e sua metástase sociológica, a pós-verdade — ambas em última instância tributárias do pensamento romântico.
Fica claro que a burguesia opera, no plano da tessitura das consciências, a partir do oxímoro. Vale-se de tendências incompatíveis, lançando mão de uma ou outra conforme a oportunidade. Ela não abraça a objetividade positivista contra a subjetivação pós-verdadeira, ou vice-versa. Ela não se define, e nem sequer se prostra, diante de oposições como racionalismo vs. irracionalismo, razão vs. afetividade, logos vs. patos. Simplesmente, diante das sobrevivências do Iluminismo e do Romantismo, prefere incluir as heranças de ambos em seu próprio testamento. Porque, ao final, é disto mesmo que se trata: estamos diante dos dois núcleos ideológicos de uma mesma dominância. A burguesia sustenta um ou outro dos polos dessa dualidade quando lhe convém. E o que é pior: jamais alcança síntese adequada entre ambos, fato revelador das profundas inconsistências de seu arcabouço ideológico.
Na verdade, a burguesia movimenta-se em meio a contradições cada vez mais profundas e insanáveis, nos marcos do turbocapitalismo financeirizado de nossos dias.
Tais contradições não existem apenas no plano do discurso; emanam, antes, do próprio ser social (MARX, 1982, p. 25). Refletem-se no caráter paradoxal da escalada civilizatória, que, longe de avançar em linha reta, progride ao mesmo tempo em que retrocede, combinando avanços e recuos. “Todo progresso da civilização tem renovado, ao mesmo tempo, a dominação e a perspectiva de seu abrandamento”, refletem Adorno e Horkheimer (1985, p. 21). Os mesmos autores afirmam, em sentido semelhante: “Quanto mais complicada e mais refinada a aparelhagem social, econômica e científica, para cujo manejo o corpo já há muito foi ajustado pelo sistema de produção, tanto mais empobrecidas as vivências de que ele é capaz” (ADORNO E HORKHEIMER, 1985, p. 19).
No mundo em que vivemos, a capacidade de eliminar a exploração cresce no mesmo passo que a própria exploração. A capacidade de pôr fim à dominação desenvolve-se pari passu com a mesma vassalagem. A humanidade, cujas habilidades e conhecimentos galgam estágios nunca antes imaginados, regride ao mesmo tempo a patamares antropologicamente mais primitivos. Nenhuma dominância deixou ainda de pagar esse preço, e essa situação não tende a mudar — pelo menos não enquanto a única transformação de que somos capazes for aquela que nos encaminha a formas mais sofisticadas de exploração, e não ao fim da própria dominação.
Notas
1- Para os propósitos deste artigo, empregaremos os termos modernidade e contemporaneidade em sentidos distintos daqueles que, na historiografia oficial, assumem os conceitos de Idade Moderna e Idade Contemporânea. Modernidade significa, aqui, toda a etapa história em que ocorre a ascensão e consolidação do poder burguês, abrangendo, portanto, do Renascimento até os estertores do século XX. Já a noção de contemporaneidade será usada para designar o período de esplendor do sistema imperialista, desde o fim do bloco socialista no Leste Europeu, na última década do século XX, até os dias atuais.
2- Cf. Institute for Humane Studies. Disponível em: https://theihs.org.
3- “O termo big data é tão amplamente utilizado que se tornou difícil defini-lo. Eu o usarei para descrever ‘quantidades massivas de dados eletrônicos indexáveis e pesquisáveis por meio de sistemas computacionais … armazenados em servidores e analisados por algoritmos’ (Lane 2016: 75). Como observou o antropólogo Justin Lane, o big data é também uma indústria na qual empresas como Facebook, Twitter e Google habilitam-se a comprar e vender dados coletados de seus usuários.” (GONZÁLEZ, 2017, p. 9) Tais dados, uma vez submetidos a exame com o uso de algoritmos de inteligência artificial, podem resultar em padrões psicométricos bastante precisos de indivíduos ou grupos, detectando seus gostos, suas afinidades e suas presunções, de modo a utilizá-los na tomada de decisões e na gestão de comportamentos, em um processo denominado data analysis.
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