2020 ficará na história como o ano em que a incúria, o negativismo e a insensibilidade com o povo e o país resultaram em quase 200 mil brasileiros mortos.

Por José Carlos Ruy*

Como um historiador do futuro avaliará o ano de 2020?

Ao terminar 2019, um retrospecto do governo Bolsonaro – que, em 1/1/2020 completou seu segundo aniversário – essa tarefa parecia facilitada pelo comportamento pregresso do ocupante da presidência da República, permitindo supor a multiplicação dos ataques à democracia, as ameaças ao Estado Democrático de Direito, os criminosos elogios à tortura, torturadores e aos assassinos políticos da ditadura, ao lado da abjeta manifestação de servilismo aos EUA e a seu presidente. No Brasil, sua marca tem sido o autoritarismo ante as diferenças raciais, contra negros, índios e mestiço, ofensas a mulheres, LGBTs e todos os que fogem do padrão dominante, homem branco e heterossexual. A suposição de que esse comportamento se repetiria era autorizada pelo passado do presidente cujo discurso autoritário, de direita, tem audiência certa -o setor autoritário das classes média e dominantes no Brasil, saudoso dos privilégios que o escravismo e sua herança perpetuada no racismo lhes dava.

Mas o acaso – sem o qual a história seria mística, ensina Marx – interveio e bagunçou tudo.

Logo no início de 2020, de mãos dadas com o coronavírus, colocou a humanidade ante uma das piores ameaças da história – de dimensão tão grande como a peste negra do século 14 ou da gripe espanhola de cem anos atrás. O véu ameaçador da pandemia do covid-19 passou a rondar povos e nações, infectando milhões em todos os países.

No Brasil, por descaso do governo federal mais do que por incompetência, ao longo do ano superou a aterradora marca de 196 mil mortos – número que já no início de 2021 passará dos 200 mil. Uma derrota maior do que os dois principais conflitos externos em que o Brasil se envolveu – a Guerra do Paraguai, com 100 mil mortos, e a Segunda Grande Guerra, com dois mil. Uma derrota imposta aos militares que devem comandar a luta contra o vírus – o oficial intermediário Jair Bolsonaro, na presidência da República, e dois oficiais generais, o vice presidente, Hamilton Mourão e Eduardo Pazuello, ministro da Saúde.

Derrota imposta por um ser microscópico que muitos biólogos nem consideram um ser vivo mas apenas uma proteína envolta em uma capa de gordura que tem a capacidade de se reproduzir quando encontra condições biológicas favoráveis.

O embate que marcou 2020 se deu entre a obrigação, imperiosa, do governo de defender a saúde, a vida e o bem estar dos brasileiros, e a recusa – a negação – do presidente Bolsonaro de cumprir este papel dirigente na epidemia, que chegou a chamar de “gripezinha”. A mesma irresponsabilidade se manifestou na recusa em reconhecer e acatar as orientação de médicos e cientistas para combater o vírus, e na politização e ideologização rasteiras desse debate. O vírus foi chamado de “chinês”, a covid-19 de “gripe chinesa” e mesmo a vacina Coronavac, produzida em associação entre o Instituto Butantan e a farmacêutica chinesa Sinovac, foi estigmatizada como “vacina chinesa”!

O desprezo de Bolsonaro pela vida e saúde dos brasileiros é o resultado prático da verdadeira opção pelos ricos e poderosos do presidente e seu governo, e se revela na falta de sensibilidade que revela ante os quase 200 mil mortos que a pandemia já provocou.

Desprezo e incúria que desarmou o governo federal mesmo em algo que é fundamental para enfrentar o mal – o Brasil chega a 2021 sem logística – que, aparentemente, é uma especialidade de chefes militares – para vacinar os milhões de brasileiros contra a covid-19. Atrasado em relação aos demais países que já iniciaram a vacinação que, com sorte só terá início em 20 de janeiro, mais uma vez se revela, neste aspecto, o desprezo de Bolsonaro pela vida dos brasileiros. O lema de seu governo pode repetir o grito de “viva la muerte” dos fascistas espanhóis de Francisco Franco. Nos elogios que fez a assassinos políticos da ditadura, a torturadores e agentes da repressão política, Bolsonaro já demonstrou aceitar que a direita mate. Agora, no descaso coma pandemia, ele inova e deixa claro que além disso a direita deixa morrer.

Pode ser que a lembrança dos historiadores do futuro seja esta – 2020, o ano em que a direita deixou morrer.

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José Carlos Ruy* é jornalista, escritor, estudioso de história e do pensamento marxista. 

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do PCdoB