Na última terça-feira (3), o filósofo italiano Domenico Losurdo esteve no Sindicato dos Engenheiros, no centro da capital paulista, para apresentar seu ponto de vista sobre os legados e lições que a Revolução Russa deixa em seu centenário. Para ele, o maior legado que a Revolução Russa deixou, é um alerta contra a colonização e a opressão dos povos por meios econômicos, uma luta que é mais atual do que nunca.

Losurdo destaca o fato da Revolução ter ocorrido em meio à carnificina da 1ª Guerra Mundial, iniciada em 1914, e contra ela. Até então, pontua ele, as guerras eram inquestionáveis em sua necessidade de defesa nacional e na sua demanda por sangue. “A partir de 1917, a guerra não é mais considerada um fato natural, mas um fato político e econômico, segundo Marx, é um fato que advém primeiramente do capitalismo”, diz Losurdo.

O filósofo observa que, Marx já percebera que, apesar da Revolução Francesa ter levantado a questão da emancipação política, ela não era completa, na medida em que as mulheres, trabalhadores assalariados, populações negras e colonizadas estavam sob um jogo de opressão e fora das decisões políticas. Losurdo é um ferrenho questionador da retórica liberal, frequentemente desconstruindo os valores nobres como liberdade, igualdade, democracia, restritos apenas àqueles que dispõem do capital para pagar por eles, em especial para as populações dos países colonizadores.

No entanto, Marx se iludia em acreditar que a sociedade burguesa seria capaz de gerar espontaneamente essa emancipação política e social, conforme incluísse aquelas populações oprimidas. Mas foi a Rússia revolucionária que tornou concretude histórica a emancipação política das mulheres, fato prontamente observado por Gramsci ao definir aquela como uma “revolução proletária”. No Ocidente, as mulheres só vão conquistar seus direitos políticos muito tarde, como na França e Itália, em que isso ocorre apenas após a Segunda Guerra Mundial, já que participaram ativamente da resistência antifascista. “Os direitos adquiridos, então, não são um presente da burguesia e do estado liberal, mas resultam da Revolução de Outubro”, afirma ele.

Do mesmo modo, as populações colonizadas negras ou não brancas eram discriminadas de diversas formas, não sendo consideradas dignas de constituir um estado nacional independente. Losurdo denuncia a, frequentemente ignorada, situação dos negros nos EUA antes de outubro de 1917, alijados que estavam de direitos políticos e civis, e vulneráveis à injustiças e brutalidades abominadas até pelos conservadores europeus. Os linchamentos violentos de negros eram tratados como espetáculos de divertimento das populações brancas, inclusive das crianças.

O eclodir da Revolução de Outubro mudou muito o quadro, particularmente, no que refere aos povos colonizados. Losurdo anota que, àquela época, o mundo inteiro era propriedade de um pequeno grupo de países europeus. Quando o Ocidente se gaba de ter instaurado a democracia no mundo, ao mesmo tempo, ignora toda e qualquer orientação da ONU, e promove a guerra onde lhe interessa. Losurdo diz que, toda e qualquer compreensão de avanço democrático só é possível a partir do parâmetro da Revolução de Outubro.

Outra transformação cultural importante, desde então, foi que, durante muito tempo, o racismo, visto hoje como um horror, era visto de forma positiva, como um valor científico que instaurava a superioridade das populações brancas sobre os povos coloniais não brancos. “Foi a Revolução de Outubro e o movimento comunista que colocou em discussão essa visão racista”, afirmou.

Assim, uma primeira conclusão importante que Losurdo aponta como legado da Revolução de Outubro é o fim do sistema colonialista escravista. O pensador, então, propõe uma reflexão sobre a importância desse movimento como protagonista da história da liberdade, enquanto o pensamento hegemônico procura desqualificá-lo como parte de um movimento totalitário.

Para Losurdo, não é possível entender o avanço nazista sem a tradição liberal e colonial. Não apenas Hitler, mas toda burguesia ocidental considerava que, após a Revolução, a Rússia vivia sob domínio bárbaro. “A guerra declarada por Hitler contra a Rússia tinha como objetivo retomar e radicalizar o sistema colonial escravista, seguido pelo Japão que quer construir seu império colonial escravista na Ásia, sobretudo contra a China”, resume ele. Os resultados da revolução anticolonial da China contra o Japão, liderada pelo Partido Comunista Chinês, fundado após a Revolução de Outubro, são amplamente conhecidos.

Por Cezar Xavier, Fundação Maurício Grabois