No sétimo mês do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o curso dos acontecimentos no país adquiriu uma nova dinâmica cujos componentes centrais poderiam ser assim alinhados: certo crescimento da luta popular, maior atividade dos setores conservadores que procuram se reorganizar e retração da economia nacional.

Reflexo da crise social que vive o Brasil, com a existência do novo governo de liberdade política é natural que cresçam a organização e o movimento popular por sentidas e antigas reivindicações por terra e moradia. Diante do crescimento da luta popular, setores da classe dominante, seus representantes e grande parte da mídia procuram transmitir uma versão alarmista dos fatos, a fim de forjar um clima de guerra social e instabilidade política, exigindo que o governo trate a questão social a à manu militari. Numa nítida tentativa de consolidar o continuísmo, ganha corpo uma linha editorial sincrônica e petulante, voltada para a cobrança permanente no sentido de que o governo prove e comprove que “os contratos e a lei serão respeitados”, e de que a insurgência do movimento social e o “recuo” na reforma da Previdência afasta os investidores do país. A oposição conservadora, em formação, procura explorar a situação em desenvolvimento, tentando cunhar a idéia provocadora de que o governo é inseguro e inconfiável, intentando desacreditá-lo.

Tudo isto se desenrola tendo como pano de fundo a queda acentuada do nível de atividade econômica, do consumo e da renda em nosso país, caminhando para um quadro de recessão. O desemprego atingiu patamares inéditos. Aumentam as falências e a inadimplência. A utilização da capacidade instalada da indústria retrocedeu aos patamares de 1999, as expectativas de crescimento econômico neste ano estão sendo reduzidas e é prevista uma desaceleração da marcha das exportações. Cresce um clamor entre os empresários para que se adotem medidas de emergência que ativem a economia; os sindicatos e a massa operária da indústria se mobilizam em grandes atos para garantir seus empregos ameaçados.

No âmbito mundial, acentua-se a tendência a uma recessão sincrônica nos três grandes centros do capitalismo – Estados Unidos, Europa e Japão –, restringindo o efeito expansivo das exportações e dos investimentos diretos nos países periféricos. Persistem as ameaças guerreiras da potência hegemônica, mantendo uma situação de incertezas e instabilidade. Essa realidade, no seu conjunto, demonstra um quadro de certa gravidade, que pode transbordar mais intensamente para o plano político.

O governo Lula, quando assumiu no primeiro dia deste ano, teve de enfrentar grave crise conjuntural, acentuada desde 2001 – produto de profunda crise estrutural e de incertezas externas –, que exigiu soluções emergenciais para conter a iminência de insolvência do país e a escalada inflacionária em marcha. Conseguiu êxito nesse propósito permitindo a formação das condições de governabilidade.

A saída encontrada pelo novo governo, diante das contingências e dos condicionamentos impostos pelo terceiro acordo vigente com o FMI foi manter a política monetarista ortodoxa predominante. O governo herdou uma situação resultante de um efeito cumulativo das décadas, “perdida” e “desperdiçada”, respectivamente, de 1980 e 1990. Sobretudo nos dois períodos de governo de Fernando Henrique, a dívida pública e o passivo externo galgaram enorme progressão, levando o país a forte vulnerabilidade externa, acompanhada do predomínio da estagnação econômica e conseqüente crescimento do desemprego aberto, do trabalho informal, da diminuição da renda média da maioria dos assalariados e da expansão da marginalização social.

Mas, como foi acentuado na Resolução Política da 9ª Conferência Nacional do Partido Comunista do Brasil essa orientação econômica não deve ter uma função permanente. Exige, mesmo que num processo gradativo, um redirecionamento para a mudança. A persistência de uma política macroeconômica objetivando metas de inflação muito rigorosas para o padrão da economia nacional, sustentada na manutenção de juros muito elevados, pesados superávits fiscais primários e ao capricho de um câmbio livre que sobrevaloriza o Real, visto que aplicada a uma realidade resultante de efeitos cumulativos de um desenvolvimento contido, vem provocando acentuada desaceleração econômica, agravando ainda mais a crise social vivida pelo país. Neste momento, são muitos os que se juntam em afirmar que, para combater a inflação, não se pode matar o paciente; ou seja, o efeito colateral é devastador para a economia real. Empresários chegam a afirmar que a política monetária adotada é muito rígida e que estamos caindo na mesma armadilha passada de juros altos e câmbio valorizado.

A escolha política

O desafio primordial é a transição para um novo modelo de desenvolvimento soberano, crescente e duradouro, com geração de empregos e distribuição de renda – compromisso essencial do governo Lula e das forças que o sustentam. Entretanto, nas condições contemporâneas da ordem mundial, do sistema econômico dominante e dos impasses históricos brasileiros, esta é uma missão árdua, prolongada e que requer nitidez dos objetivos pretendidos e persistência para cumprir esse compromisso, que é a razão de ser do novo governo. Encontramo-nos no começo da caminhada de quatro anos, um tempo relativamente curto.

Buscam-se, no momento, os meios e as formas de realizar grandes investimentos em infra-estrutura e nas chamadas áreas sociais; coloca-se em discussão o Plano Plurianual (PPA) para definição do planejamento estratégico; procuram-se novos mercados para ampliar as exportações; define-se um novo modelo energético, reforçando o papel do Estado; recompõe-se o papel desenvolvimentista do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); reconstrói-se a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene); lança-se um Programa de Desenvolvimento sustentável para a Amazônia; estabelecem-se vários programas sociais e um plano de assentamento na terra de 60 mil famílias em um ano; obtém-se certo êxito na inserção internacional do Brasil e se reconstroem os marcos iniciais de uma política externa soberana; investe-se na democratização da relação do governo com a sociedade, com a formação de conselhos de discussão estratégica e temática.

Porém, essa realidade de múltipla ação governamental, exige um fio condutor político claro em relação a uma estratégia de desenvolvimento atual, que comporia um Projeto Nacional. A difícil recuperação do desenvolvimento econômico não se dá de forma espontânea, conforme mostra nossa histórica recente, considerando-se os exemplos desenvolvimentistas percorridos pelos governos de Getulio Vargas e Juscelino Kubitschek. A retomada do desenvolvimento, com seu norte na transformação social, requer, hoje como antes, escolha política, com suas conseqüências expressas em interesses concretos beneficiados ou contrariados. Como afirma, de forma fundamentada, Celso Furtado, a decisão econômica é antes de tudo política – é esta que dirige a economia, não o contrário. Isso não significa que se vá desconsiderar as leis objetivas da economia e deixar de buscar as soluções técnicas compatíveis. Mas a solução é antes de tudo política e não técnica.

Destravar o investimento produtivo

A situação vai exigindo a opção do caminho para o desenvolvimento, tendo por base os interesses nacionais e do povo brasileiro. As potencialidades produtivas, os graves problemas sociais e o fortalecimento democrático exigem um novo modelo, com expressivo desenvolvimento econômico, geração de emprego e distribuição de renda. A implantação desse modelo requer uma política econômica, por um lado, com autonomia nacional – em vez dos constrangimentos impostos pelos mercados financeiros internacionais e pelas condicionalidades do FMI – e, por outro, com foco no desenvolvimento econômico e social, em vez do exclusivismo no combate inflacionário. Em vários países asiáticos,assim como em outras partes do mundo, os exemplos indicam que a clareza da orientação econômica decorre de uma concepção política acerca de um projeto nacional de desenvolvimento.

A questão chave da deflagração e sustentação do novo ciclo de desenvolvimento é o investimento. Esta é a variável principal na dinâmica macroeconômica e sua dimensão depende principalmente do mercado interno. Por isso, o nó da questão está na necessidade de destravar o investimento produtivo relativamente bloqueado nestes últimos 20 anos. A partir da retomada da atividade produtiva, é preciso desenvolver um movimento da economia para que a taxa de investimento avance, indo dos atuais 18% do Produto Interno Bruto para cerca de 25% do PIB. Na dinâmica econômica a própria poupança, ora tão discutida, é conseqüência do investimento e expansão do nível de atividade.

Nestes termos, para que não se limite à mera recomposição provisória do consumo e de crescimento da capacidade produtiva instalada, e para não se cair na marcha do stop and go dos últimos anos, é preciso que o ritmo elevado do investimento conduza a economia para a trajetória do alto crescimento de médio e longo prazos. Para destravar o investimento neste momento, o Estado tem um papel insubstituível, com obras (estradas, portos, energia etc.) e projetos sociais (educação, saúde), gerando novas condições de dinamismo e expectativas, possibilitando novas oportunidades econômicas, estimulando o investimento privado. Em vez dos limitados R$ 7 bilhões de investimentos públicos no orçamento deste ano, há que se levar avante, por exemplo, o plano de investimentos pesados, elaborado pelo BNDES a pedido do presidente Lula. Os gastos em habitação popular e saneamento favorecem a retomada do crescimento econômico e se voltam para os interesses sociais, em resposta à grave situação de marginalização.

Dentro desta perspectiva de destravar o investimento produtivo, torna-se questão política relevante o relacionamento do governo brasileiro com o Fundo Monetário Internacional (FMI), com base nos interesses soberanos do país, inclusive preservando a autonomia em se estabelecer uma política econômica nacional, já que o atual acordo expira no final deste ano. O presidente do BNDES afirma que o plano de investimento pesado em infra-estrutura, da ordem de R$ 400 bilhões, estará ameaçado senão se reverter a exigência do Fundo de classificar investimentos do Estado e das empresas estatais na rubrica de despesas.

União pelo desenvolvimento e emprego

Acumulam-se as condições gerais e a ampla convergência social para o redirecionamento da política econômica, voltada para o desenvolvimento, que tenha como objetivo central o crescimento da economia.

Primeiro, o movimento social vai adquirindo envergadura, colocando em ação importante força motriz das organizações dos trabalhadores e populares, exigindo, na sua peleja, emprego, terra e moradia. A luta pela reforma agrária alcança maior dimensão visando ao direito democrático do acesso à terra para uma grande massa sem perspectiva e que nela quer trabalhar.

Segundo, neste momento, tal situação se liga com a reivindicação dos empresários, em todos os níveis que, diante da contenção da expansão produtiva, exigem a retomada, desde já, do desenvolvimento econômico, propondo, para isso, a formação de parceria entre governo, empresários e trabalhadores.

Terceiro, esse somatório de interesses pode dar origem a um movimento pela soberania, desenvolvimento e empregos em torno da adoção de medidas macroeconômicas expansionistas, que pode confluir para o seguinte:

Para reduzir a vulnerabilidade externa: a) restrição às atividades especulativas e controle das contas CC-5, evitando instabilidades cambiais, as repercussões inflacionárias e preservando a autonomia da política de juros; b) câmbio que previna inflações doméstica e internacional e ajude o superávit da balança comercial; c) diminuição da dívida externa, política de elevação e defesa das reservas internacionais; d) integração com a América do Sul e ampliação e diversificação do comércio (Mercosul e Pacto Andino), busca de acordos com a China, Índia, Rússia, África do Sul etc.; e) atração do investimento direto, vinculado a metas de exportação e de nacionalização do conteúdo dos produtos.

Para retomar e sustentar o crescimento econômico e gerar emprego: a) redução acelerada da taxa Selic (alcançar taxa de juros reais em torno de 6 % a 8%); b) redução do depósito compulsório sobre os depósitos bancários e do spread bancário; c) acesso e direcionamento do crédito para o financiamento da produção de longo prazo; d) participação ativa dos bancos públicos na nova política de crédito; e) aproveitamento da atual reforma tributária para introdução de forte desoneração dos investimentos produtivos e das exportações; f) recuperação do poder aquisitivo dos salários, redução da jornada de trabalho, implementação da reforma agrária; g) adoção de política ativa que propicie um novo patamar de desenvolvimento industrial; h) ênfase ao desenvolvimento científico e tecnológico.

Para assegurar a estabilidade: a) redução da dívida pública em relação ao PIB, com base na redução da taxa de juros e no crescimento econômico; b) em relação à dívida interna, buscar desindexá-la ao dólar, prefixando-a e alongando seus prazos; c) combate à inflação, elevando a oferta de produtos, evitando os choque de desvalorização cambial, revisando contratos de preços administrados, proibindo a indexação de preços.

Estas são as propostas que o Partido Comunista do Brasil oferece ao governo, que tem a participação dos comunistas, e aos diversos setores sociais e políticos da base de sua sustentação. Esta hora requer um enorme esforço comum, contribuindo para uma ampla unidade nacional em torno da liderança do presidente Lula, pela consecução de um Projeto Nacional de Desenvolvimento, com geração de empregos, distribuição de renda e ampliação da democracia.

São Paulo, 9 de agosto de 2003