Há 40 anos, depois de longa conspiração contra o governo legítimo e constitucional de João Goulart, foi deflagrado o golpe militar que deu início ao regime mais arbitrário, reacionário, ditatorial e repressivo da história do país. Já desde o início faltando à verdade com o povo e a nação, inaugurando assim o método do embuste com que ao longo dos anos tentaram disfarçar os seus desmandos, os golpistas invocaram falsos pretextos, fizeram vãs promessas e indicaram ilusórias perspectivas quanto aos motivos do ato de força, seu escopo e o tempo de duração do regime então inaugurado. Levantaram surradas bandeiras — conter o surto inflacionário, combater a corrupção, restaurar a “ordem” e conjurar a “ameaça comunista”. Prometeram devolver o poder aos civis em curto prazo. Em contundente pronunciamento à Nação, o Partido Comunista do Brasil, porém, já advertia em nota escrita no dia seguinte ao do golpe: “A ditadura veio para ficar”.

Com efeito, em 1º de abril de 1964, inaugurava-se no Brasil uma longa e insone noite para os brasileiros, que menos de um lustro mais tarde, com a promulgação do Ato Institucional nº 5 no malsinado 13 de dezembro de 1968, convertera-se na tenebrosa noite do fascismo, que por um momento empregou o terror de Estado contra o povo. Só viria a terminar 21 anos depois, quando, por força da vitória das forças democráticas que nunca cessaram de lutar, o último dos generais a ocupar o poder, o truculento J.B. Figueiredo, deixou o Palácio do Planalto pela porta dos fundos.

O golpe militar de 1964 foi deflagrado em nome de interesses contrários aos do povo e da nação. Em primeiro lugar, os interesses do imperialismo norte-americano, no quadro da guerra fria, da doutrina da segurança hemisférica, dos planos de guerra, da luta pela hegemonia mundial e aspirações neocolonialistas dessa potência imperialista. Foi o primeiro, dentre muitos atos de força antidemocráticos que marcaram a vida política na América Latina nas décadas de 1960 e 1970. Igualmente, a ditadura foi instaurada em nome dos interesses conservadores e oligárquicos das classes dominantes retrógradas, que nutriam medo pânico pelas reformas sociais anunciadas pelo governo deposto e ódio feroz ao povo, na defesa dos seus seculares privilégios.

Foi um regime arbitrário que na medida em que caía no isolamento e afundava num cipoal de contradições, degenerou e resvalou para a prática de violências e atrocidades contra adversários, perseguindo, banindo, encarcerando, torturando e assassinando a sangue-frio os que se batiam pela democracia.

A ditadura militar criou no país um regime sui generis. Aboliu o instituto das eleições diretas para presidente da República, governadores dos Estados e prefeitos das capitais e de cidades consideradas áreas de segurança nacional. Os generais sucediam-se no poder como se da troca de mando na caserna se tratasse. O regime ditatorial manteve na maior parte do tempo o Congresso Nacional manietado através das cassações de mandatos parlamentares, do seu fechamento temporário e até do cerco policial-militar das suas instalações. A Carta Magna , escrita e promulgada pela Assembléia Constituinte de 1946, foi rasgada, sendo substituída por uma contrafação de Constituição e pelos Atos Institucionais, configurando um regime de exceção, à margem da lei, dos princípios democráticos e das tradições republicanas. O general-presidente tocava o governo no dia a dia através dos decretos-leis. O Judiciário se converteu num poder subalterno, perdendo-se assim todo vestígio de Estado de Direito.

Foi um regime repressivo e liberticida. Proscreveu os partidos políticos, interveio nos sindicatos, interditou as entidades estudantis, enfrentou os protestos populares com o exército nas ruas, não raro abrindo fogo contra multidões desarmadas. Foi um regime obscurantista. Censurou a imprensa, tentou calar os artistas, seus esbirros invadiram teatros, escolas e centros de ensino superior, castrando a autonomia universitária.

Do ponto de vista econômico e social, a ditadura militar foi uma calamidade para as massas. Os surtos de crescimento que se seguiram a um período inicial de estagnação e antecederam as crises dos anos 1980, resultaram em brutal concentração de rendas, em endividamento galopante, em abissais desequilíbrios regionais e em deterioração do padrão de vida do povo, porquanto tinham como um dos seus pilares o arrocho salarial. Embora proeminente na intervenção econômica, o Estado não provia a sociedade com os serviços essenciais. Converteu-se em instrumento de enriquecimento ilícito de uma casta corrompida e em usina de divisas para alimentar a banca internacional. Sob os generais de 1964, o Brasil se converteu no paraíso do capital estrangeiro. Setores decisivos da economia nacional caíram em mãos das empresas transnacionais e enormes porções de terra foram alienadas a estrangeiros. Começou naquele período o ciclo perverso do endividamento externo.

Apesar de toda violência e repressão, nem um só dia dos 21 anos que durou o odioso regime o povo deixou de lutar. Nas ruas, nas praças, nos campos, nas redações, nos palcos, nas escolas e universidades, nos templos e até na sala vilipendiada do Congresso, onde quer que houvesse brasileiros honrados e trabalhadores, democratas e patriotas, amantes da liberdade, havia também luta pela redemocratização do país. Lutas de todos os tipos, legais e ilegais, abertas e clandestinas, individuais, de pequenos grupos e de grandes multidões, pacíficas e armadas, dentre as quais destaca-se a memorável jornada do Araguaia, mas sempre luta pela liberdade, pelo direito de o povo se organizar para alcançar a soberania do país e a justiça social.

Nessa luta, muitas vezes heróica porque encetada em condições desiguais, tombaram muitos mártires da liberdade, entre eles dezenas de militantes e dirigentes do Partido Comunista do Brasil, em nome de cuja memória inclinamos as nossas bandeiras de lutas neste dia aziago da história do país.

Já vai longe o 1º de abril de 1964, como também já se distancia no tempo o marco inaugural da redemocratização do país — a eleição de Tancredo Neves e a Nova República sob a presidência de José Sarney. Tudo indica estar a democracia no país em processo de consolidação. O governo da República, sob a liderança do presidente Lula, representa as forças progressistas da sociedade, busca os meios e modos adequados para empreender as mudanças que a nação reclama para ingressar numa era de desenvolvimento e progresso social, as Forças Armadas encontram-se voltadas para o cumprimento da sua missão constitucional — a salvaguarda da soberania do país e de sua integridade territorial —, os partidos políticos batem-se pelos seus programas nos marcos do Estado de Direito e as organizações de massas credenciam-se junto ao povo como veículos legítimos da luta por suas sentidas reivindicações. É nesse ambiente que registramos a passagem do 40° ano da deflagração do golpe e da instauração da ditadura militar, convictos de que da amarga e dolorosa experiência o povo brasileiro extrairá lições e se tornará vigilante para que jamais seja golpeada a democracia no país."

São Paulo, 30 de março de 2004.

Secretariado Nacional do Comitê Central do PCdoB