A cláusula de barreira, exigida pelos que pensam impor o status quo de uns poucos partidos, nega a realidade pluripartidária brasileira surgida depois do fim do regime militar. Tal cláusula foi imposta pela legislação aprovada em 1995 (Lei 9096/95), à margem de um debate nacional sobre assunto tão fundamental e traz a marca da polêmica na interpretação acerca da sua aplicabilidade e da sua constitucionalidade. O próprio Fernando Henrique Cardoso se comprometeu, na época, em vetar os artigos mais polêmicos da lei – porém, espertamente, deixou-a para ser assinada pelo então vice-presidente, o atual senador pefelista Marco Maciel, um expoente da defesa da restrição partidária em nosso país.

Esta lei é produto ainda do entulho autoritário, resquício dos períodos antidemocráticos vividos pelo Brasil, controversa e mal redigida, como demonstra o debate dos últimos dias sobre sua interpretação e aplicação na fase atual. No TSE pairam três interpretações quanto à sua aplicação pós-eleições de 2006. Ela é uma cópia mal feita da legislação eleitoral alemã que, já por si, tem o caráter restritivo e antidemocrático de funcionar como um filtro contra a participação de correntes políticas ligadas ao povo. Na Alemanha, a cláusula de barreira de 5% foi criada sob exigência dos ocupantes norte-americanos, depois do final da Segunda Grande Guerra, para impedir a representação do Partido Comunista no parlamento da Alemanha do oeste.

O argumento principal exaustivamente invocado pela mídia hegemônica e as elites dominantes de que esse dispositivo é “essencial para reduzir a pulverização do quadro partidário, uma das causas do atravancamento do trabalho parlamentar”, é uma falácia. Contudo, todos sabem que em decorrência da simples correlação de forças existente, e em função das normas regimentais da Câmara dos Deputados, os pequenos partidos não têm poder para obstruir cursos parlamentares ou impor decisões significativas. Quem, na prática destes últimos anos, teve força para impedir ou obstruir pautas no parlamento, ou impossibilitado acordos positivos? Em verdade o que se pretende com essa lei alienígena é estabelecer o “caráter restritivo, e não permissivo – espírito da lei 9096/95” (O Globo, editorial de 7/10/2006), ou seja, “limpar”, por decreto, o pluralismo político da realidade brasileira.

Nem mesmo o critério de representatividade expresso nessa lei se coaduna com a realidade do sistema de representação política do Brasil. Na Alemanha, mesmo sendo uma lei restritiva, ela foi aplicada em uma nação onde o sistema é parlamentarista, não há eleição para o Senado e só existe eleição, mediante sistema distrital, para uma Câmara dos Deputados que elege o governo nacional – chefiado pelo Primeiro Ministro. É compreensível, assim, em uma cláusula de barreira baseada apenas na eleição dos deputados federais.

No Brasil, o sistema é presidencialista, o Senado é eleito, e os pleitos envolvem a eleição de presidente da República, senadores e deputados federais, segundo o princípio da representação proporcional. Assim, há partidos que podem fazer mais de 5% dos votos no cômputo nacional nas eleições para o Senado Federal, ou nas eleições presidenciais, e não alcançarem os 5% somente para a Câmara dos Deputados. Por isso, esse critério de representatividade imposto pela Lei 9096/95 é parcial, levando a uma deformação na avaliação de representatividade partidária nas condições do Brasil. Acreditamos que se poderia considerar como mais importante, para medir a representatividade dos partidos, a exigência de 2% dos votos em no mínimo 1/3 dos Estados da Federação, porquanto se expressaria daí o caráter nacional do partidos.

A mídia hegemônica passa a falsa idéia de que somente agora é que a cláusula de barreira vai ser aplicada. Não é assim. A Lei 9096/95 já vem sendo aplicada, através da imposição de cláusulas crescentes. Em 2003 já vigorava o critério que o artigo 57 da lei impunha, exigindo que, para ter funcionamento parlamentar regular, o partido deveria alcançar um por cento dos votos nacionais para a Câmara dos Deputados e eleger cinco deputados federais, em pelo menos cinco estados. Mas a interpretação dada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados em 2003 à representação apresentada pelo PV e o Prona – que fizeram mais de 1% dos votos porém elegeram deputados em menos de cinco Estados, matéria relatada pelo deputado Sergio Miranda – foi no sentido do direito daqueles partidos ao funcionamento parlamentar normal e regular.

Embora o Prona e o PV não tenham conseguido cumprir aquelas exigências, a mesa diretora da Câmara dos Deputados acatou a decisão da Comissão de Constituição e Justiça. O entendimento foi de que os dois partidos não teriam seus direitos prejudicados.

Entre os argumentos acatados, na época, pela mesa da Câmara dos Deputados, há alguns que precisam ser considerados e que contestam a constitucionalidade da lei 9096/95. O primeiro diz que a regra deve ser interpretada pelo próprio Congresso, em razão de sua autonomia constitucional. Outro argumento lembra que a lei não pode atrelar a representação na Câmara dos Deputados à votação obtida nos Estados, pois é o Senado que representa os Estados, enquanto a Câmara dos Deputados representa a população. Finalmente, lembra o voto acatado pela mesa da Câmara, há entendimento consolidado, pelo Supremo Tribunal Federal, de que a Administração Pública não está obrigada a aplicar normas inconstitucionais, podendo deixar de cumpri-las até que haja um pronunciamento dos tribunais sobre aquele ponto. A cláusula de barreira, instituída em 1995, ainda não foi confirmada pelo STF, que ainda não julgou a ADIN nº 1351/DF.

Pode-se ainda acrescentar: do ponto de vista constitucional pode existir um deputado de “primeira categoria”, com todos os seus direitos garantidos e um de “segunda categoria”, com a maior parte dos direitos cerceados? Não, seguindo a concepção e os preceitos da Constituição de 88.

Portanto, com base nessa jurisprudência da CCJ da Câmara, o PCdoB e demais partidos que elegeram deputados devem ter sua representação parlamentar garantida conforme as normas da Câmara dos Deputados e, como decorrência, nas demais casas legislativas.

O PCdoB não vai perder a sua representação na Câmara dos Deputados nem no Senado, nem nas Assembléias Legislativas ou Câmaras Municipais. Não vai aceitar a existência de dois tipos de parlamentares, porque contraria a Constituição brasileira de 1988, que estabelece a igualdade dos deputados no exercício de seu mandato.

O PCdoB considera urgente a realização de uma reforma política para ampliar a democracia, e não restringi-la, com critério mais justo de representação partidária. Este é um tema que a próxima legislatura precisa tratar logo em seu início, já em fevereiro. Ela envolve uma pauta extensa, que inclui o financiamento público das campanhas, a adoção da lista pré-ordenada, a federação de partidos, a fidelidade partidária e outros temas já discutidos e aprovados em várias Comissões da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Isso tudo não excluirá a discussão sobre a cláusula de barreira, porque ela faz parte da legislação antiga, mas irá inserir o tema em um contexto mais amplo, de modo a que se produza um resultado harmônico, sistemático e de acordo com a democracia. Assim, a reforma política deve ter como essência a aprovação de uma nova legislação de sentido democrático, a ser elaborada pelo próximo Congresso Nacional.

O PCdoB não aceita, por princípio, nenhuma proposta de extinção ou fusão partidária. O PCdoB tem sua ideologia, sua fisionomia própria, seu programa partidário. Essa é a essência da sua independência como partido. Em nenhum momento da nossa história política, nesses 84 anos de existência, mesmo nos períodos mais ditatoriais e obscurantistas, o Partido abdicou da sua ideologia e do seu programa máximo. Defende sim, sendo conseqüente lutador, a formação de frentes políticas, até mesmo de coalizões amplas, lastreadas por programas comuns, dentro das quais cada partido possa manter sua independência programática e orgânica. Por conseguinte, pode ser cabível a formação de blocos partidários ou federações de partidos, conformados em torno de uma plataforma comum com tempo de permanência mais duradoura, atuando no âmbito do parlamento. Essa proposta preserva a idéia de uma suposta maior praticidade nas Casas Parlamentares, compatibilizando-a com a autonomia dos partidos minoritários. Afinal, todos os verdadeiros liberais e democratas estão de acordo de que uma das marcas de um bom regime político é a proteção às minorias de hoje e a manutenção da possibilidade real de estas transformarem-se nas maiorias de amanhã.

A Comissão Política Nacional
11 de outubro de 2006