O “Mistério de Maya” nada mais era que a privatização do bem-estar infantil
Filme da Netflix mostra o efeito trágico e devastador da busca pelo lucro em um hospital infantil na Flórida, que retirava os filhos da guarda familiar.
Foto de Beata, a mãe que levou as últimas consequências a preocupação com a filha Maya.
O documentário O Mistério de Maya foi lançado no último dia 19 na Netflix e, atualmente, ocupa o Top 5 na categoria filmes da plataforma, um sucesso pela história comovente que relata. Nele, nós acompanhamos a história da norte-americana Maya Kowalski, que foi internada em 2016, quando tinha somente 10 anos, e ficou sob a custódia do Estado quando seus pais foram impedidos de levá-la para casa.
O que chama muito a atenção no documentário é como a privatização dos cuidados infantis na Flórida gerou um sistema perverso e altamente lucrativo para hospitais, que só funciona porque médicos conseguem alienar os pais de seus filhos, desnecessariamente. O filme expõe a gravidade da situação, assim como uma extensa reportagem de Dyan Neary, que lhe deu origem, e pode ter repercussões políticas.
Em 2016, a família Kowalski, formada por Jack e Beata, levou a filha ao Johns Hopkins All Children’s Hospital, na Flórida, com uma forte crise de dores abdominais. Os médicos do lugar não tinham nenhuma familiaridade com a rara condição de Maya, que se tratava da Síndrome de Dor Regional Complexa (CRPS), diagnosticada anos antes pelo Dr. Anthony Kirkpatrick e tratada no México. Eles disseram que ela era extremamente sensível a estímulos de todos os tipos e que a dor incapacitante irradiava pelas pernas e pés, exigindo o uso de uma cadeira de rodas. Na CRPS, o cérebro manda sinais falsos de dor nas extremidades do corpo.
Como a mãe de Maya, Beata, era enfermeira e já sabia como proceder em uma crise, orientou os médicos do local sobre quais medicamentos usar (cetamina, um anestésico, em doses altas), mas isso não terminou como o esperado. Os pais de Maya foram acusados de abuso médico infantil e a criança ficou sob custódia do Estado, sem autorização para vê-los.
Doença rara e Munchausen por procuração
A Dra. Sally Smith, diretora médica do Condado de Pinellas, era a responsável pela comunicação com o Conselho Tutelar nas mínimas suspeitas, e decidiu acusar a família Kowalski de abuso de incapaz. Smith começou a desenvolver uma teoria: que ela foi vítima da síndrome de Munchausen por procuração, uma condição exótica que ficou famosa por filmes e séries de TV como The Act , O Sexto Sentido e Objetos Cortantes, em que um pai deliberadamente deixa uma criança doente para colher simpatia e gratidão. O especialista em CRPS, Dr. Ashraf Hanna, do Florida Spine Institute, informou a Smith que Munchausen por procuração era um erro de diagnóstico comum nestes casos. Nada que ele falou foi incluído no relatório.
Na época, a cetamina era mais conhecida do público em geral como uma droga de clubes noturnos, que altera drasticamente a percepção sensorial. Mas ela também é amplamente utilizada em salas de emergência como um anestésico aprovado pela FDA. O anestesiologista Anthony Kirkpatrick, indicado aos Kowalskis, disse que os pacientes com CRPS normalmente têm níveis elevados do aminoácido glutamato e que a cetamina inibe seus efeitos no sistema nervoso. O anestésico faz com Maya algo parecido com a “reinicialização de um computador”, deixando-a em coma por algum tempo. Depois disso, ela passou um ano com uma vida normal, voltando a ter as dores que a levaram ao hospital.
Smith tinha o poder de recomendar que o estado separasse os pais abusivos de seus filhos – uma decisão da mais grave consequência. Smith se justifica dizendo: “Faça a ligação errada e uma família pode ser desfeita desnecessariamente. Ignore um sinal de alerta e uma criança pode acabar morta.”
Um método de apoiar um diagnóstico de Munchausen por procuração é um teste de separação: remova a criança do pai agressor e veja se sua saúde melhora drasticamente. Mas com o passar das semanas com Maya isolada, ela continuou a relatar dores extremas. Foi quando resolveram acusar a criança, de dez anos, de fingir a doença e buscaram evidências disso. Nem assim, ela voltou para a família, porque o importante era manter a custódia pelo estado.
Isso era lucrativo para o hospital. Nos meses em que Maya foi forçada a permanecer lá, o All Children’s cobrou de sua seguradora mais de US$ 650.000 por seus tratamentos, incluindo 174 entradas para CRPS, a doença que Maya supostamente não tinha.
Muitas tragédias familiares
Através de sua denúncia, a Dra. Smith fez com que os pais de Maya fossem expulsos do hospital e perdessem a guarda da filha, o que deu início a uma longa batalha judicial para que eles pudessem recuperá-la. No entanto, a história teve um final trágico.
“Um dia eu estava na UTI, e minha mãe me beijou na testa e disse: ‘Eu te amo. Vejo você amanhã’. Mas nunca mais a vi. Fui sequestrada clinicamente. Tentei ser esperançosa, mas a situação chegou a um ponto em que pensei: ‘Nunca vou sair deste lugar’.” Declaração de Maya, agora com 17 anos.
As crianças em Pinellas são removidas de suas casas em uma das taxas mais altas dos 67 condados da Flórida, e Smith disse que isso ocorre porque a equipe de proteção à criança que ela dirige faz “um trabalho mais completo e de maior qualidade”.
A ordem de tutela do estado foi revisada para permitir a Jack alguns direitos de visita e permitir que Beata contatasse Maya por telefone e vídeo. Mas, em dezembro, a equipe do hospital estava impondo restrições adicionais a seu próprio critério. A assistente social de Maya, Cathi Bedy, recusou várias ligações do FaceTime de Beata, que passaram de diárias para uma vez por semana. Vários tios e tias se ofereceram para supervisionar as aparições de Jack, mas todos foram rejeitados pelo All Children’s por parecerem estar “emocionalmente investidos na família”, como os administradores disseram mais tarde. Dois professores que viajavam de carro de Veneza a São Petersburgo para dar aulas particulares a Maya foram barrados e ela parou de receber instrução educacional. Até o padre da família teve acesso negado ao andar dela.
Beata se ofereceu para sair da casa da família se isso significasse que Maya poderia voltar. No entanto, em casos de abuso infantil na Flórida, os juízes quase sempre ficam do lado dos profissionais médicos em vez das famílias. Armados com relatórios de Smith, os advogados do hospital argumentaram que enviar Maya para casa poderia expô-la a danos, e o juiz Lee Haworth emitiu uma série de notificações que a mantiveram confinada ao All Children’s. Ela não teve permissão para visitar a mãe no Natal, condições que configura a situação dela mais rigorosa que a de um preso em penitenciária. Ela passou o Halloween, o Natal, o Ano Novo e seu aniversário de 11 anos no hospital sem contato com a família.
Houve inúmeros pedidos em juízo para que Haworth permitisse que Maya falasse com a mãe, depois pediu ao menos um abraço e finalmente que pudesse ver o rosto da mãe. “Não”, disse Haworth. “Receio que não. Pelo que ouvi dos médicos, a situação é incerta no momento, então teremos que passar sem isso hoje.” Esta imagem chocante e fria está no filme.
Diante dessa total impotência diante da situação, após tanto tempo de privação e sofrimentos, Beata chegou ao limite. “Sinto muito”, dizia sua nota de suicídio, “mas não aguento mais a dor de ficar longe de Maya e ser tratada como uma criminosa. Não posso ver minha filha sofrer de dor e continuar piorando, enquanto minhas mãos estão atadas pelo estado da Flórida e pelo juiz!”
Durante o documentário, a versão dos Kowalski é apresentada ao público. Além de seus relatos pessoais sobre o que aconteceu, fotos e vídeos da intimidade da família, o longa também conta com entrevistas com o Dr. Kirkpatrick e os advogados que defenderam Jack e Beata Kowalski. A própria Maya também fala sobre sua traumática experiência.
Somente os depoimentos dados à polícia pela médica que acusou os Kowalski de abuso médico infantil são vistos, pois nem a Dr.ª Sally Smith ou nenhum outro representante do Johns Hopkins All Children’s Hospital aceitou participar do documentário.
Acordos judiciais perversos
Na época, um artigo do The Cut intitulado ‘The True Story Behind Take Care of Maya‘ [A verdadeira história por trás do cuidado com Maya] expôs toda a história… O mérito da reportagem é mostrar que o caso de Maya está longe de ser o único pesadelo na vida de uma família. O que o diferencia foi a resistência de Beata a aceitar a imposição do hospital. Todos os outros se submeteram à pressão de um promotor judicial que ofereceu um acordo para que aceitassem ficar presos, por exemplo, para que a criança voltasse para casa, enquanto o hospital se eximia de qualquer questionamento judicial. Tem pai preso até hoje, e um grupo de Facebook com mais de mil famílias que se organizaram para se defender de situações semelhantes que estão vivendo.
A Flórida privatizou seu sistema de bem-estar infantil em 2004, e o trabalho no condado de Pinellas é terceirizado para uma empresa chamada Suncoast Center Inc. Smith era um de seus 117 funcionários e não tinha qualquer vínculo empregatício com o hospital, embora se comportasse como uma médica diante dos pacientes. A Suncoast e entidades semelhantes em todo o estado são financiadas por mais de US$ 3 bilhões de dinheiro público, mas há pouca supervisão sobre a eficácia delas em impedir o abuso infantil – ou com que frequência alegam irregularidades onde não existem.
No condado de Pinellas, Smith operou dentro de um sistema que foi projetado em vários níveis para identificar agressivamente o abuso infantil. A lei da Flórida exige que todos os cidadãos sejam “repórteres obrigatórios”: qualquer pessoa que suspeite que uma criança está sendo prejudicada deve notificar as autoridades, e não fazer isso pode levar a uma condenação criminal de terceiro grau. O estado também exige que quase todos os casos suspeitos sejam avaliados por um pediatra de abuso infantil – uma subespecialidade que foi codificada em 2009. Smith foi apenas um dos 275 médicos em todo o país a serem certificados na área naquele ano pelo Conselho Americano de Pediatria. Treinados para procurar abuso e negligência, eles o encontraram. De 2009 a 2018, houve 55% mais relatórios de abuso infantil notificados por profissionais médicos, de acordo com uma análise do The Marshall Project .
Levar um filho ao All’s Children se tornou um enorme risco para as famílias da Flórida e o filme de sucesso na Netflix deixa isso bem claro. No início de 2021, o hospital se jogou numa armadilha por conta própria ao repetir os procedimentos em uma celebridade da TV. A cantora Syesha Mercado conseguiu mobilizar o país e os melhores advogados para receber seus dois filhos de volta.
Existem pelo menos 12 casos documentados em que Smith identificou abuso, apenas para que as crianças fossem devolvidas depois aos pais, acusações retiradas para reverter sua ordem de separação. Não há como saber quantas outras famílias podem ter sido acusadas incorretamente, mas não tiveram recursos para combatê-la. Smith foi nomeada em pelo menos quatro decisões do Tribunal de Apelações do Segundo Distrito da Flórida; em um deles, o tribunal concluiu que “não havia evidências médicas de abuso infantil, apenas … especulações de Smith e opiniões de caráter pessoal”.
Smith recebe todo natal uma foto de uma família que insiste em mostrar para ela que sobreviveu, apesar de tudo que ela fez.
(por Cezar Xavier)