Revisão do Plano Diretor de SP é criticada: “solo da cidade está à venda”
A proposta de revisão do Plano Diretor Estratégico (PDE) da cidade de São Paulo tem movimentado a sociedade contra possíveis alterações urbanísticas que podem deixar o já complicado “viver” na capital ainda mais tumultuado.
A revisão programa do PDE é classificada como um verdadeiro retrocesso por movimento sociais que apontam que as mudanças têm influência direta de construtoras e empresas do setor imobiliário.
Na última terça-feira (20), uma passeata contra o projeto de lei (PL) que revisa o Plano Diretor Estratégico foi realizada da Praça da República, no centro, e foi até a Câmara dos Vereadores. Entre os principais motivos de críticas está a rapidez da tramitação do Projeto, sem debate com a sociedade, e o fato de o relator da matéria, o vereador Rodrigo Goulart (PSD), ter desconsiderado diversos pontos tratados em audiências públicas sobre o tema. O projeto para revisão foi enviado para a Câmara Municipal de São Paulo pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB).
Apesar da celeridade no processo alguns adiamentos na votação já ocorreram, assim como o relator já voltou atrás em alguns pontos.
O texto que já foi aprovado em primeira votação teria na sexta-feira (23) a segunda avaliação, após ter sido adiado. Agora foi novamente postergado e está marcado para segunda-feira (26).
Entre idas e vindas, Goulart já afirmou que irá alterar a regra que pode aumentar o adensamento nos miolos de bairro (áreas mais distantes dos eixos de transporte público), assim como devolver ao texto regra que desestimula vagas de garagens para apartamentos com menos de 30 metros quadrados. Outro ponto em que já recuou foi o da ampliação das áreas de construção próximas às estações de metrô de 600 metros para 800 metros. Antes constava no projeto que a área aumentaria para até 1000 metros.
Para entender melhor o que está ocorrendo, ouvimos Ivan Maglio, engenheiro civil, doutor em Saúde Ambiental e pesquisador do Centro Cidades Globais do IEA e do Laboratório de Áreas Verdes da FAU/USP em Mudanças Climáticas e Planejamento Urbano. Ele também é membro do Conselho Deliberativo da EngD (Engenharia pela Democracia). Confira!
O Plano Diretor Estratégico (PDE) da cidade de São Paulo tem validade de 15 anos, de 2014 a 2029. O que está ameaçado por uma revisão classificada pela sociedade como arbitrária?
O Projeto de Lei (PL) sobre a revisão intermediária do Plano Diretor Estratégico (PDE) foi encaminhada pelo executivo à Câmara Municipal em 20/03/2023, e foi iniciada a tramitação do projeto nas comissões e com a proposta de discutir o projeto em Audiências Públicas a toque de caixa para sua aprovação até maio de junho de 2023.
O PL da revisão do PDE desconsiderou todas as solicitações relativas à redução dos impactos causados pelos Eixos Estruturadores da Transformação Urbana (EETU) para criar novos Eixos no entorno de novas linhas de metrô e corredores de ônibus entre outros aspectos não considerados como atendimento à demanda de habitação de interesse social, criação de parques e estratégia de adaptação e resiliência para o enfrentamento da cidade às mudanças climáticas.
Para aumentar o ‘tratoraço’, em meio a tramitação da revisão do PDE o executivo municipal reapresenta o PL de Revisão do Zoneamento que estava com tramite suspenso desde 2019 por decisão judicial. Suspensa por liminar desde 2019, o executivo promove discussões a toque de caixa na Câmara Técnica de Legislação Urbanística (CTLU) e Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU), com os protestos dos conselheiros da sociedade civil que se rebelaram face ao absurdo, uma vez que colocar o zoneamento sem conexão atropela todo o processo de revisão do PDE e amplia o ‘tratoraço’.
Como se dá este atropelo e o que mais pode ocorrer?
Esse atropelo se deve ao fato de que muitas das medidas solicitadas pela sociedade civil dizem respeito aos aspectos territoriais, que deveriam ser corrigidos, em especial os impactos causados pelos EETU nos vários bairros da Cidade, com a regulamentação do artigo 77º do PDE que trata da possibilidade de retirar áreas ambientalmente frágeis e de interesse cultural e urbanísticos dos EETU e das Zona Eixo de Estruturação e Transformação Urbana (ZEU), colocadas com outras tipologias de zonas com menor grau de transformação, como as zonas predominantemente residenciais, zonas de proteção ambiental, ou ainda zona mista ou zona exclusivamente residencial
Nas questões de mérito desse PL as vilas são colocadas em risco entre outros impactos, como a possibilidade de aumento do gabarito no miolo dos bairros, aumento do número de vagas de garagens na ZEU e remete questões urbanísticas de fundo a serem regulamentadas por decretos.
Entretanto, a maior ‘boiada do tratoraço’ urbanístico ocorre na câmara com a apresentação do Substitutivo ao PL da Revisão pelo Relator o vereador Goulart em 23/05/2023 com prazo de dois dias para sua discussão.
Pode se dizer que o Plano Diretor serve para orientar o desenvolvimento urbano. Com a revisão do PDE de São Paulo proposta, esta orientação passaria a ser qual?
Essa revisão desorienta o desenvolvimento na medida que entre outras descaracterizações do PDE 2014 o substitutivo ao PL da Revisão mais do que dobra a área passível de verticalização sem limites no entorno dos EETU, praticamente elimina os miolos de bairros no centro expandido e cria uma Zona de Concessão para os equipamentos municipais concedidos para o setor privado (parques, cemitérios, mercados etc.) onde poderão ser possíveis usos hoje não permitidos: Ginásio do Ibirapuera, Anhembi, Interlagos, Pacaembu entre outras Zonas de Ocupação Especial – ZOEs. Uma barbaridade que atende exclusivamente aos interesses privados e coloca em risco o patrimônio público da cidade.
E isso tudo ocorre sem que nenhum estudo de impacto urbano ou ambiental, ou de capacidade suporte seja apresentado para justificar essa proposta. Isso é novidade? Infelizmente não, uma vez essa tem sido a tônica nos Projetos de Intervenção Urbana – PIUS e na imposição dos limites dos EETU sem considerar os grandes impactos ambientais em curso na maioria dos bairros e subprefeituras, como Pinheiros, Vila Mariana, Perdizes, Butantã e outras.
Entre os retrocessos dessa revisão consta a mudança nos Eixos de Estruturação da Transformação Urbana, que pode ampliar as áreas de construção próximas às estações de metrô de 600 metros para 1 km [o relator disse que pode ser reduzido para 800 metros] e nos corredores de ônibus de 300 para 450 metros. Além disso, o número de vagas de garagem e o tamanho dos prédios cresceria, o que afeta todo o sistema de mobilidade e infraestrutura urbana. O que pode se esperar na prática se estas mudanças acontecerem?
Isto aumentará em cerca de 150% o território da cidade a ser adensado e verticalizado, com o aumento do número de garagens e com altura ilimitada das edificações, e como um dos resultados, colocará em risco a capacidade de suporte dos sistemas de transportes.
Com a ampliação proposta para as áreas dos EETU o substitutivo praticamente eliminará os miolos de bairros no centro expandido, e ainda, ao aumentar os coeficientes de aproveitamento construtivo de 2 para 3 em toda a zona mista da cidade, com os limites de gabarito alterados no miolo dos bairros. Se o leitor quiser avaliar o estrago que o substitutivo poderá provocar no seu bairro é possível consultar o mapa interativo elaborado pelo LabCidades da FAU/USP (confira aqui).
Outro ataque frontal aos objetivos do PDE está no Projeto de Lei 115/2023, enviado a Câmara para alterar regras de aplicação do Fundo de Desenvolvimento Urbano do Distrito Federal (Fundurb) para que a prefeitura possa aplicar indevidamente os recursos do fundo em pavimentação e recapeamento de ruas, e não em habitação social, melhorias no transporte público e ambientais.
Já a redução dos Eixos de 1km para 800 metros é um recuo tático que não altera os gravíssimos problemas do substitutivo como o ataque ao Fundo de Urbanização para receber direto em obras realizadas pelas empreiteiras, as zonas de concessões que atacam o patrimônio Público e verticalização da várzea do Tietê como um novo Eixo sem sequer existir sistema de transportes e por estar uma várzea constantemente inundável!
Para mim, só tirar as mudanças na região do Mirante de Santana do texto não resolve o problema. O mirante é simbólico, importantíssimo para meteorologia e mexer com ele representaria uma falta de sensibilidade absoluta. Mas ainda há muito pontos discutíveis, como o estímulo à verticalização, que pode ter impactos urbanísticos e ambientais imprevisíveis!
Ao que o senhor atribui esta ânsia do mercado em avançar sobre o PDE de 2014 que não tem impedido muitos bairros serem verdadeiros canteiros de obras?
São Paulo vai virar a galinha dos ovos de ouro do mercado financeiro internacional. O solo da cidade está à venda mesmo. Tudo isso pode causar um desequilíbrio absurdo na economia da cidade, sem entrarmos nos riscos e impactos sociais, ambientais e climáticos que esse substitutivo criminoso poderá causar para a cidade de São Paulo. As inundações e as ilhas de calor poderão ficar cada vez mais graves porque não houve nenhum estudo para propor esse absurdo.
Por que não manter e revisar os atuais eixos e aprová-los caso a caso precedidos de estudos técnicos ambientais e urbanísticos? Por que a sanha destrutiva do capital imobiliário e financeiro seduz os vereadores e o executivo municipal? Simples assim. Eleições à vista e dinheiro fácil para irrigar as campanhas municipais.
Por fim, uma vez que o PDE serve para “pensar” uma cidade melhor, como classificaria o que a revisão liderada pelo prefeito Ricardo Nunes? Qual cenário podemos prever para o futuro de São Paulo em caso de aprovação?
O vereador Goulart apresentou um substitutivo elaborado pela Associação Brasileira da Indústria da Construção ABRAINC que atende apenas aos interesses do setor. Essa verdadeira entrega da cidade ao mercado imobiliário ficou ainda mais escancarada pelo vazamento de uma cobrança do vereador Adilson Amadeu ao SECOVI-SP (Sindicato das Empresas de Compra, Venda e Administração de Imóveis) em que cobra uma “contrapartida” para ajudar na reeleição do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB). [Na ocasião Amadeu endereçou mensagem cobrando: “Digo isso pois politicamente se estabeleceu nesta oportunidade um ônus político pesado ao amigo prefeito Ricardo Nunes, e desta forma questiono o que o Secovi fará para ajudar o nosso prefeito em sua reeleição?”]
Um crime de lesa pátria contra São Paulo poderá ocorrer se não conseguirmos barrar esse tsunami de liberalismo construtivo. São Paulo Blade Runner à vista!