Navio de migrantes, quando avistado horas antes do naufrágio | Foto: Reprodução

Manifestantes foram às ruas da Grécia na sexta-feira (16) repudiar a falta de socorro ao navio apinhado de migrantes e refugiados que naufragou na noite de terça-feira para quarta-feira, a 87 quilômetros do litoral grego, com centenas morrendo afogados sob as vistas da Guarda Costeira grega e da agência de vigilância das fronteiras europeias (Frontex).

Também no parlamento grego a oposição questionou o menosprezo na negação de socorro que deveria ter sido prestado pela Guarda Costeira.

Agindo tardiamente, apenas 104 sobreviventes foram resgatados pela Guarda Costeira Grega, que chegara às proximidades do barco horas antes. A Guarda também localizou 78 corpos. Acredita-se que até 750 pessoas estavam no navio, entre convés e porão. Neste, ficavam as mulheres e as crianças. Nenhum dos resgatados tinha colete salva-vidas.

“Fizeram do Mediterrâneo um cemitério líquido; nunca nos acostumaremos com o matadouro”, diziam as faixas dos manifestantes que condenavam a política para refugiados e migração da Grécia e da Europa.

Convocados por entidades antirracismo e por sindicatos, os protestos ocorreram na capital, Atenas, Tessalonica, Patras, Karditsa e Kalamata – esta última, a cidade para a qual os sobreviventes foram levados.

Desde então, apesar da operação de resgate continuar, nenhum outro sobrevivente foi encontrado. 68 dos migrantes resgatados foram transferidos para as instalações de recepção de Malakasa, no centro da Grécia. Parentes, vindos de vários países europeus, estão chegando para encontrar seus entes queridos.

Os migrantes resgatados vinham do Afeganistão, Palestina, Paquistão e Síria. Conforme o depoimento deles, os sobreviventes são homens – jovens e de meia idade -, pois as mulheres e crianças viajavam no porão. Estima-se que sejam cerca de 100 as crianças mortas.

O naufrágio ocorreu na parte mais profunda do Mediterrâneo – cerca de cinco mil metros de profundidade. A embarcação partira de Tobruk, no leste da Líbia, em direção à Itália. Funcionários de um necrotério estatal nos arredores de Atenas fotografaram os rostos das vítimas e recolheram amostras de DNA para iniciar o processo de identificação.

A agência de notícias ANSA noticiou hoje que as autoridades italianas declararam que sinalizaram o barco em perigo para a guarda costeira grega a tempo de um resgate.

O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, se pronunciou sobre o infortúnio, pedindo à Europa uma nova política de migração. “Estamos em contato com as autoridades gregas, mas sejamos honestos. Este não é um problema grego. É europeu. Acho que é hora de a Europa poder, de forma solidária, definir uma política migratória efetiva para que um acidente como esse não volte a acontecer”.

TRAGÉDIA ANUNCIADA

Foi uma tragédia anunciada, como revelou o ativista ítalo-marroquino, Nawal Sufi, da entidade Med Alarm Phone. Foi ele que foi contatado desde a embarcação em perigo na manhã de terça-feira e avisou as autoridades italianas, que por sua vez acionaram a agência de vigilância das fronteiras europeias (Frontex) e as autoridades gregas.

Uma situação difícil: “Após cinco dias de viagem, a água havia acabado, o condutor do barco os havia abandonado em alto mar e também havia seis mortos a bordo. Os migrantes não sabiam exatamente onde estavam, mas graças à localização instantânea do telefone, consegui encontrar sua localização exata e notifiquei as autoridades competentes”, disse Sufi.

De acordo com seu relato, quando um navio se aproximou do barco em perigo, “amarrou-o com cordas e começou a atirar garrafas de águas”. O que provocou temor “de que as cordas pudessem virar o barco e que a luta dentro dele para conseguir água pudesse levar a um naufrágio”. Por causa disso, “se afastaram um pouco para evitar um possível naufrágio”, explicou.

Durante a noite, relatou Sufi, “a situação no barco tornou-se ainda mais dramática: os migrantes ficaram confusos e não entenderam se se tratava de uma operação de resgate ou de uma tentativa de colocar suas vidas em perigo ainda maior. Mantive-me em contato com eles até às 23 horas, horário grego, tentando tranquilizá-los e ajudá-los a encontrar uma solução. Ficaram me perguntando o que deveriam fazer e eu disse que a ajuda grega estava a caminho. Naquele último telefonema, o homem com quem falei me disse: ‘Sinto que esta será minha última noite com vida’”.

Durante toda a tarde e até às 23 horas de terça-feira, Sufi informou não ter feito nada além de tentar tranquilizar as pessoas que ligavam do barco, “explicando-lhes que as autoridades tinham a posição do barco e que a ajuda certamente chegaria. Tudo o que eles tinham que fazer era lidar com a situação de pânico a bordo”.

Ainda na manhã de terça um avião da Frontex comunicou ter avistado a embarcação sobrecarregada em áreas internacionais, mas que até aquele momento “recusavam qualquer ajuda”. A foto do convés apinhado de gente, amplamente divulgada, foi tirada por um drone da Frontex. Nesse meio tempo, a bola da responsabilidade pelo socorro ficou quicando entre a Frontex, a Grécia e a Itália.

Quando a tragédia já havia se consumado, outros navios da Guarda Costeira grega, uma fragata da Marinha, um avião de transporte militar, um helicóptero da Força Aérea, várias embarcações privadas e um drone da Frontex passaram a participar da busca de sobreviventes. Mas aí os cadáveres já estavam boiando.

À VISTA DA GUARDA COSTEIRA

“A tragédia do naufrágio em águas internacionais ao sul da Grécia poderia ter sido evitada? Esta é a pergunta que muitos se fazem depois que detalhes e fotos da Frontex e da Guarda Costeira grega foram divulgados, mostrando que as autoridades estavam perto do barco de pesca sobrecarregado antes que ele repentinamente virasse e levasse para o fundo do mar dezenas, senão centenas de passageiros desesperados”, registrou o portal Keep Talking Greece.

A foto da Guarda Costeira grega foi tirada por volta da meia-noite de terça-feira ou mais tarde, nas primeiras horas da manhã de quarta-feira, ‘duas horas antes do barco afundar’, revelou à Mega TV o porta-voz da Guarda Costeira grega, Nikolaos Alexiou.

A diversos meios de comunicação Alexiou disse que qualquer tentativa da Guarda Costeira de intervir com força no navio que transportava centenas de migrantes antes de afundar, “poderia ter causado o naufrágio do navio de pesca”.

Ele esclareceu que foi “um navio comercial grego que participou da tentativa de resgate que jogou cordas no barco, para abastecer os passageiros com água”.

“O nosso próprio navio chegou, mas o barco de 25-30 metros declarou que não queria ser resgatado, eles não queriam vir para a Grécia, mas chegar à Itália. Vendo a situação, não partimos… de madrugada perdeu o motor, as pessoas [a bordo] mexeram-se, perdeu o centro de gravidade e capotou.”Dez minutos antes de afundar – reiterou -, “perdeu o motor. Se isso não tivesse acontecido, provavelmente não teria havido a movimentação [de pessoas a bordo].”

“EFEITO COLATERAL”

Eleni Spathana, uma advogada que trabalha com a ONG grega Refugee Support Aegean, disse à Al Jazeera que “não há palavras” para descrever a tragédia. “Nossa reação é de choque, é claro”, disse Spathana, enfatizando que os repetidos desastres marítimos são subproduto das políticas migratórias da União Europeia.

“[Eles são] um efeito colateral das políticas de dissuasão da UE e de todos esses esforços – não importa o quê – para manter as pessoas que precisam de proteção e apoio fora do território da UE.”

Na realidade, ainda pior: foram as guerras promovidas pela Otan contra a Líbia e contra a Síria, agravando a devastação neoliberal sob os ditames do FMI no norte africano e Oriente Médio, que desestabilizaram a bacia do Mar Mediterrâneo e levaram a essa massa de gente desesperada procurando um canto para sobreviver nos países ricos europeus. Bem que o líder líbio Muamar Kadhafi, antes de ser derrubado e assassinado em 2011 por mercenários a serviço da OTAN, advertiu aos países que encabeçaram a agressão a Líbia o que estava por vir.

No mês passado o governo grego foi pressionado internacionalmente por causa de imagens de vídeo que mostravam a expulsão forçada de migrantes e refugiados que ficaram à deriva no mar. Anteriormente, a Grécia foi condenada pela corte europeia de direitos humanos a indenizar 16 sobreviventes de um naufrágio de 2014.

Agora, o primeiro-ministro interino Ioannis Sarmas declarou três dias de luto nacional, “com nossos pensamentos sobre todas as vítimas dos contrabandistas impiedosos que exploram a infelicidade humana”. Nove sobreviventes do naufrágio dessa semana, que eram tripulantes, tiveram a prisão decretada.

No ano passado, quase 3.800 pessoas morreram em rotas migratórias dentro e fora do Oriente Médio e Norte da África, o maior número registrado desde 2017, segundo dados publicados na terça-feira pela Organização Internacional para as Migrações (OIM).

Fonte: Papiro