Berlusconi morreu após ser hospitalizado em Milão com infecção pulmonar | Foto: Reprodução Facebook

Mais conhecido no mundo inteiro por suas festinhas “bunga bunga”, o bilionário e ex-primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, faleceu na segunda-feira (12) aos 86 anos após sua internação em um hospital de Milão na semana passada por infecção pulmonar. O governo da Itália decretou luto nacional.

Dono da Fininvest, de uma rede de televisão privada, uma construtora e, por muito tempo, do clube de futebol Milan, Berlusconi foi primeiro-ministro três vezes, de 1994 a 1995, de 2001 a 2006 e de 2008 a 2011. E teve papel central em apagar na política na Itália a linha de separação entre a direita tradicional e os fascistas italianos, em vigor desde o final da II Guerra.

Foi o que Belusconi fez em 1993, ao declarar voto em Gianfranco Fini, candidato a prefeito de Roma pelos fascistas do Movimento Social Italiano. Início do percurso que levaria os Fratelli d’Itália a vencerem as eleições de 2022, que tornou a fascista Giorgia Meloni primeira-ministra.

Em 1994, mais um passo: Belusconi conseguiu unir a direita fascista e a direita da Liga do Norte com duas coalizões diferentes no norte e no sul, unificando a direita italiana, dos fascistas aos secessionistas, dos conservadores aos liberais, tudo em nome do anticomunismo.

Durante 17 anos, de 1994 a 2011, a política italiana girou em torno de Berlusconi, em idas e vindas na disputa com a centro-esquerda (que, aliás, não conseguia se firmar por causa da rendição ao neoliberalismo). Nos doze anos seguintes, o bilionário fez de tudo para se manter à tona, sob cerco constante da justiça.

Foi, por assim dizer, o protótipo do que Trump viria a ser, anos depois, nos EUA. Era o terceiro mais rico da Itália, com fortuna calculada em US$ 6,7 bilhões, e fez do Milan e de seu canal de TV – tudo regado a muito dinheiro, anticomunismo, demagogia e completa falta de escrúpulos – o trampolim para sua ascensão a “Il Cavaliere”, como gostava de ser bajulado.

Como pano de fundo para sua ascensão, a prevalência da ordem global sob os EUA e a devastação do Partido Democrata Cristão pela Operação Mãos Limpas, encerrando velhos compromissos e abrindo caminho para aqueles políticos mais propícios a não verem maiores problemas em abraçar os fascistas, enquanto o PCI definhava à deriva pós-colapso da URSS e o país se via sob o ‘abraço’ da União Europeia.

FINANCIADOR DA COSA NOSTRA

Il Fatto Quotidiano também registrou outro aspecto menos conhecido, ao menos fora da Itália: “durante anos, pelo menos de meados da década de 1970 até 1992, Berlusconi financiou a Cosa Nostra”.

Era conhecido, ainda, pelas tiradas anticomunistas. Como: “Se a esquerda chegasse ao poder, o resultado seria miséria, terror, morte” (2005). E “Na China de Mao, os comunistas cozinhavam crianças para fertilizar os campos” (2006).

Em outra ocasião, sugeriu que um membro alemão do Parlamento Europeu daria um bom guarda de campo de concentração. De outra feita, disse que Mussolini foi um bom líder. Depois explicou que eram só piadas.

Também é de Berlusconi o comentário, ao receber o então presidente dos EUA e sua esposa Michelle, que “Obama era belo e bronzeado”, o que foi considerado mundo afora como uma manifestação cínica de racismo.

Com suas “festinhas de bunga bunga”, ele também era arauto de um machismo decrépito, baseado no preconceito, aponta Il Fatto, “de que o corpo da mulher está à disposição de quem tem dinheiro para comprá-lo”.

ENTRE COMERCIAIS E DANÇARINAS

Como registrou Il Fatto, a rede de TV de Berlusconi, “entre comerciais e dançarinas, contribuiu para moldar o traje nacional e, segundo detratores, para forjar aquele tipo de opinião pública pouco informada e muito belicosa que mais tarde se tornaria o núcleo duro de seu eleitorado. Mas também deve ser dito que o político Berlusconi foi capaz de cobrir o abismo deixado pelo pentapartito [Democracia Cristã] cancelado após as investigações judiciais sobre corrupção e prevaricação e pescar entre esses eleitores e esse pessoal político de licença”.

Ou seja – acrescenta o jornal -, “os famosos ‘moderados’, que gradualmente se tornaram cada vez menos moderados ao longo dos anos, como demonstra a ascensão de Mateo Salvini [vice-primeiro-ministro] e Giorgia Meloni [primeira-ministra atual].

No repertório de Berlusconi há, também, o famoso episódio da “compra e venda de senadores” em 2008, que deu o golpe de misericórdia na vacilante maioria de centro-esquerda liderada por Romano Prodi.

SEM CONFLITO DE INTERESSES

A origem obscura de sua fortuna e o uso do poder político para beneficiar suas empresas nunca perturbaram Berlusconi. Ele sempre refutou as alegações de que seu costume de misturar negócios e política era mais benéfico para o próprio bilionário do que para a Itália. Crítica que respondia no maior cinismo: “Se ao cuidar do interesse de todos eu também cuido dos meus, você não pode falar de conflito de interesse”.

Foram muitos os processos judiciais contra Berlusconi, mas ele só foi condenado uma única vez em 2013, por fraude fiscal que favorecia sua Rede de TV, a quatro anos – desses, foi indultado em 3 anos e, por ser isento de prisão por ter mais de setenta anos, teve direito a prestação de serviços comunitários.

A herança de Berlusconi inclui, além das já citadas financeira, construtora e rede de TV, a maior editora italiana e o diário Il Giornale.

“BUNGA BUNGA”

Graças à perspicácia de seus advogados e do imprescindível apoio de parlamentares e do mercado, Berlusconi acabou livre, leve e solto no caso mais escandaloso, o das “festinhas bunga bunga” – como na Itália ficaram conhecidas as orgias que promovia – em sua mansão, de que “Ruby”, uma menor marroquina, se tornou símbolo. Berlusconi dizia que tudo não passava de “jantares elegantes”. Ele chegou a ser condenado a sete anos de prisão.

Em 2010, a promotoria de Milão em 2010 abriu investigação sobre Berlusconi por extorsão por indução, por abusar de seu cargo de primeiro-ministro para exercer pressão indevida sobre funcionários da sede da Polícia em Milão para obter a libertação de Ruby, a fim de encobrir o crime de exploração da prostituição infantil.

Em dezembro de 2012, uma lei criada por encomenda desonerou Berlusconi dessa acusação. Em primeiro grau, porém, o ex-primeiro-ministro foi condenado a sete anos, reclassificando o crime em extorsão por constrangimento (e não mais por indução).

No entanto, na apelação, o ex-primeiro-ministro obteve a absolvição de ambas as acusações: os juízes argumentaram que as ligações para a delegacia de polícia poderiam ser consideradas um abuso, mas não (mais) um crime. No que diz respeito à prostituição infantil, no entanto, foi alegado que “ele não sabia a idade da jovem”. O presidente do conselho de apelação, Enrico Tranfa, renunciou ao cargo de magistrado em protesto.

Promotores vinham acusando Berlusconi de ter pago, entre novembro de 2011 a 2015, cerca de dez milhões de euros aos convidados das noites “altamente eróticas de Arcore” – o termo é de Il Fatto – para mentir no tribunal durante os julgamentos de Ruby. “Se tudo se baseia em uma leitura dos fatos em que testemunhas públicas oficiais receberam pagamentos para dar falso testemunho, mas esse papel não é reconhecido, não é confirmado, é uma questão puramente jurídica”.

REINVENTOR DA XENOFOBIA

Segundo Paolo Ferrero, da Refundação Comunista, “Berlusconi não só inventou a televisão comercial na Itália, mas construiu nela a televisão populista de direita, baseada em levar ao extremo certas notícias assustadoras, repetindo-as sem parar e dilatando-as a ponto de produzir um novo imaginário e novas identificações”.

“A direita xenofóbica não foi inventada no plano político, mas foi inventada pelas televisões de Berlusconi, que produziram uma narrativa tóxica que construiu medos e agregações sobre essa realidade virtual que surge da realidade”, acrescentou.

A brutalidade da imposição do neoliberalismo na África e no Oriente Médio e as guerras de Washington em busca de petróleo, contra os países muçulmanos, estavam criando um tsunami de imigrantes acorrendo à Europa, com a Itália como porta de entrada.

A ideia de que “eles estão nos invadindo”, de que “não há o suficiente para todos e, portanto, o nosso primeiro”, e assim por diante, não foi inventada por Salvini ou Meloni, mas apenas produto de programas de televisão, reiterou Ferrero. “Não surpreendentemente, depois dos primeiros anos em que foi a Forza Italia que mais se beneficiou dessa narrativa tóxica, foi principalmente a Liga de Salvini e, portanto, a direita fascista de Meloni que reuniu o maior apoio”.

Ainda segundo Ferrero, não deve ser subestimado o papel de Berlusconi para parir essa nova direita fascista em voga no mundo, “na qual a manipulação baseada no medo, no desrespeito às normas e no ego dilatado” não é um fato pessoal ou episódico, mas expressão do que eles vêem como a “normalidade” e o “consenso”.

Fonte: Papiro