“Chegou a hora do Sul Global” cobrar mudanças na ordem internacional
O jornalista Alec Russell do Financial Times, um dos principais jornais econômicos do mundo, escreveu um artigo acenando para a percepção de que “chegou a hora do Sul Global”. Como ele mesmo diz, “novas ordens mundiais são mais fáceis de declarar que de perceber”, como já ocorreu anteriormente. Mas o modo como o hemisfério menos desenvolvido tem imposto sua vontade geopolítica é algo que “tem sido visível em várias arenas, desde que a velha ordem globalizada começou a se fragmentar após a crise financeira de 2008”, mas a guerra na Ucrânia intensificou esse processo.
Russell cita o caso da África do Sul e seus esforços para mediar o conflito na Ucrânia, assim como outros personagens. Embora haja um certo desprezo, hoje, por essa atitude das nações do Sul Global, o futuro “pós-unipolar” pode tornar a menção a esses posicionamentos mais significativa do que se imagina hoje.
“A ideia de seis chefes de Estado africanos cruzando as linhas de frente de uma guerra europeia não é apenas um contraponto revelador a todas as intervenções ocidentais na África ao longo dos anos, mas também sublinha a assertividade acelerada dos países do “Sul Global” — e sua sensação de que sua hora realmente pode ter finalmente chegado”, diz Russell no artigo do último dia 21.
Jogo de interesses
A reportagem consultou a especialista em Relações Internacionais, Flávia Loss Araújo (FESPSP), sobre esta percepção do jornal britânico. Ela afirmou concordar a respeito da renovação da força do Sul Global a partir do desencadeamento da Guerra da Ucrânia.
“A leitura da imprensa ocidental (leia-se Europa e Estados Unidos) no começo da guerra, era de que os países que não se colocavam totalmente a favor da Ucrânia desrespeitavam as regras básicas do sistema internacional por terem, eles próprios, vieses autoritários ou pouca adesão à Carta da ONU. O que se começa a perceber agora, com menos julgamentos morais e mais pragmatismo, é que os países do chamado Sul Global estão guiando o seu alinhamento de acordo com os seus interesses e aproveitando o momento para colocar em pauta as suas reivindicações de mudanças na ordem internacional que estavam paradas há décadas”, analisa ela.
Russell diz isso ao apontar que as nações que não estão alinhadas contra a Rússia, “viram poderes hipócritas mais uma vez priorizando seus próprios interesses e preocupações sobre as grandes questões globais, como saúde e mudança climática”.
No entanto, ele enxerga uma trama conspiratória, em que o Sul percebe a oportunidade de colocar EUA e China em oposição. Foi o que se disse, por exemplo, quando Lula foi à China, fechou acordos muito melhores e acabou provocando uma reação vantajosa dos EUA, que resolveram aumentar a contribuição ao Fundo Amazônia. Mas a maior oportunidade, mais evidente e declarada, seria “uma reescrita há muito esperada da ordem mundial pós-1945”. Mais uma vez, o Brasil é o maior reivindicador de uma reforma de organismos multilaterais como o Conselho de Segurança da ONU, ainda com a cara do pós-guerra.
BRICS como alvo
Russell também aposta numa intriga entre os membros dos BRICS, neste novo contexto. Para ele, os interesses são conflitantes, entre China e Índia, por exemplo, e podem vir à tona na cúpula do bloco em Durban (África do Sul), que ele acha que será “uma vitrine de contradições”. Ele ainda acha que esta aliança pode não ser promissora, talvez por estar desalinhada com a ordem ocidental e também envolver países muito distintos. Além de acreditar que a China pode transformar o bloco em seu “clubinho”.
A professora Flávia, por sua vez, prefere olhar para o que é mais imediato e evidente, em vez de especular tão longe. Para a analista internacional, trata-se de uma estratégia por parte desses países em desenvolvimento, que não enxergam vantagens em acompanhar a posição dos europeus e norte-americanos no conflito sem que haja contrapartidas.
“Aderir às sanções ou indispor-se com a Rússia não traria vantagens para países como a África do Sul. Podemos questionar se devem se engajar em apoiar diretamente a Rússia, como os sul-africanos estão fazendo a contragosto dos desejos dos EUA. Não acho que seja a atitude mais adequada e o Brasil, por exemplo, se recusa a enviar armas para os beligerantes, o que me parece uma atitude mais sensata”, defendeu ela.
O articulista do FT também admite que haja interesses e objetivos comuns no bloco, como a reforma dos organismos multilaterais, repensar a hegemonia do dólar e o sistema de sanções econômicas, que sempre são impostas conforme a vontade dos americanos. Ele considera estes, como objetivos que evoluíram para serem bem tangíveis. A ideia de negociar entre si com moedas soberanas parece ser a que mais arrepia os cabelos dos defensores de Bretton Woods.
Flávia concorda que é preciso uma ordem internacional baseada em regras que realmente sejam internacionais e não mais ditada pelos países ocidentais. “De qualquer forma, temos que ter em mente que esses países serão parte importante de qualquer ordem que surgir e que podem fazer parte da solução”, diz ela, defendendo que reforçar os interesses do Sul Global não precisa ser uma provocação ao G7, “que continua sendo o conjunto de países mais poderosos e com os quais temos relações políticas e econômicas importantes”.
Além disso, a cientista política lembra que, após a pandemia, ficou evidente que será necessária a contribuição de todos os países para que a humanidade supere os desafios que estão surgindo.
Agenda ousada
Por outro lado, Flávia considera modesta a agenda que Russell propõe para os países ricos. Segundo ele, o G7 deveria “liderar pelo exemplo, comprometer-se com reformas da ordem global” e não ofender e tratar os mais pobres com paternalismo, dizendo que são “indecisos” sobre a Ucrânia, como tem dito Washington.
Enquanto isso, os EUA fecham alianças regionais sob medida para seus interesses (I2U2 e Quad), numa demonstração de que nem ouve as necessidades e reclamações dos envolvidos, como já fazem com a Europa. O problema é que a China também tem feito essas alianças de interesse, na opinião dele.
Para a analista, está evidente que esse novo movimento de “não-alinhados”, quer e precisa de mais do que isso. “A desigualdade gritante e o sentimento de injustiça frente aos países desenvolvidos, que muito ganharam a partir das regras que impuseram ao resto do mundo, deve ser confrontado e um novo entendimento de cooperação internacional precisa surgir. Não falo de ajuda, falo de esforços concretos que mudem a realidade do planeta”, explica Flávia, citando a baixa vacinação na África como um exemplo de como os países ricos tratam a periferia do mundo.
Russell conclui avaliando como temerária a atitude dos sul-africanos ao abandonar uma neutralidade na guerra, mas elogia as posturas da Índia ou Indonésia, que podem vir a ter mais oportunidades numa nova ordem menos polarizada.
“A pandemia provou que os problemas desconhecem fronteiras e que as soluções precisam ser conjuntas. É necessário que os 10% mais ricos da população global que se concentram na Europa e América do Norte compreendam isso, também”, concluiu a professora Flávia, sobre o que realmente importa para o Sul Global.
(por Cezar Xavier)