Jens Stoltenberg, secretário-geral da Otan | Foto: AFP

Em entrevista ao Washington Post, o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, acabou por desmoralizar a narrativa cínica da Casa Branca da “guerra não provocada” na Ucrânia, “por culpa da Rússia”, ao afirmar que a guerra “não começou em 2022. A guerra começou em 2014”.

O mestre de cerimônias continuou: “E desde então, a Otan implementou o maior reforço de nossa defesa coletiva desde o fim da Guerra Fria… Até 2014, os aliados da Otan estavam reduzindo os orçamentos de defesa. Desde 2014, todos os aliados na Europa e no Canadá aumentaram significativamente seus gastos com defesa… esta é uma enorme transformação da Otan que começou em 2014.”

Em resumo, admitiu Stoltenberg, a guerra não começou em fevereiro de 2022 com a operação militar especial russa da Ucrânia, mas em 2014, oito anos antes.

Declaração que converge para as confissões de François Hollande e de ngela Merkel, de que os ‘Acordos de Minsk’ com a Rússia que serviriam à pacificação do Donbass foram instrumentos para armar a Ucrânia.

Desde o início do conflito em 2022 – como ele é conhecido -, a Casa Branca e a mídia afiliada vinham asseverando se tratar de uma “guerra não provocada” lançada por Putin em 24 de fevereiro de 2022.

O bordão “não provocada” tornou-se onipresente na narrativa usada para esconder a retomada da Guerra Fria por parte da mídia ocidental predominante. Segundo o estenógrafo da CIA, Thomas Friedman, no New York Times, a guerra surgiu “inteiramente… da cabeça de Putin.”

O mantra da “guerra não provocada” tornou-se para a Ucrânia o que “armas de destruição em massa” foram para a Guerra do Iraque, ou “Lembre-se do Maine” foi para a Guerra Hispano-Americana, observou o portal wsws.

“A ideia por trás da repetição sem fim é a teoria de que ‘quanto maior a mentira, mais facilmente ela será acreditada’. Espera-se que o público aceite que esta é a primeira guerra de todos os tempos sem quaisquer antecedentes históricos ou motivos econômicos, a primeira guerra baseada inteiramente na psicologia de um homem”, enfatiza o wsws.

Apesar de reconhecer que a guerra começou em 2014, Stoltemberg não explicita o que realmente aconteceu. Aquele ano começou com a operação de mudança de regime patrocinada pelos EUA na Ucrânia, derrubando o governo do presidente Victor Yanukovych, que se opôs a medidas para integrar a Ucrânia a uma associação política e pacto comercial com a UE, que estava se preparando para a integração na OTAN. Yanukovych insistia no interesse ucraniano pela manutenção do bom e histórico relacionamento com a Federação da Rússia.

Nas palavras da secretária de Estado adjunta dos EUA, Victoria Nuland, que foi pessoalmente a Kiev para apoiar o golpe, a operação de desestabilização e anexação da Ucrânia custou a Washington “mais de $ 5 bilhões”. Como se sabe, na derrubada de Yanukovych, neonazistas funcionaram como tropa de choque.

Nos anos seguintes, o governo Poroshenko, instalado após o golpe, lançou uma “operação antiterrorista” contra a população de língua russa do leste da Ucrânia, um ataque que matou mais de 14 mil pessoas entre 2014 e 2022.

A cereja do bolo do golpe de 2014 seria a entrega da Crimeia, lar da frota russa do Mar Negro, à Otan, dando aos EUA domínio militar sobre o Mar Negro. A população da Crimeia se levantou e realizou um referendo em que optou em esmagadora maioria pela reunificação com a Rússia.

A tentativa da Rússia de obter uma solução pacífica para o conflito, através dos “Acordos de Minsk”, co-patrocinados por Berlim e Paris, foi sistematicamente sabotada pelas potências da Otan, a mando dos EUA, juntamente com o regime de Kiev, que não cumpriu as determinações do Acordo de Minsk, de reconhecer autonomia ao Donbass e direito ao uso da língua russa, dentro da Ucrânia. Como admitiram Hollande e Merkel, os Acordos foram usados como uma fachada para a Otan preparar o regime de Kiev para uma guerra para submeter o Donbass, por meio de uma limpeza étnica. Para isso, foram bombeados bilhões de dólares em armamento.

Em 2021, o governo ucraniano aprovou uma estratégia para a reconquista militar da península da Crimeia e do Donbass, que foi então de fato codificada com a Parceria Estratégica EUA-Ucrânia de novembro de 2021.

Em suma, uma operação de limpeza étnica de descendentes de russos, repetindo o modelo da conhecida operação da Otan que expulsou na então Iugoslávia 200 mil sérvios que viviam há séculos na Krajina, região autônoma da Croácia.

Antes de reconhecer as repúblicas populares do Donbass e marchar para barrar a limpeza étnica, o governo Putin propôs aos EUA e à Otan a restauração na Europa do princípio de Helsinki da segurança coletiva e indivisível, assim como das linhas de separação de forças que vigiam no ano de assinatura do Ato Fundador Rússia-Otan.

Ou seja, o cumprimento da promessa, feita à URSS para aprovação da reunificação alemã, de que a Otan não se moveria “um centímetro” para leste. O que implicava no respeito à neutralidade da Ucrânia.

Também, ainda no governo Trump, os EUA haviam se retirado unilateralmente do Tratado de Armas Intermediárias (INF) de 1987, voltando a transformar a Europa em um teatro de guerra nuclear. O que não foi consertado por Biden.

Se houvesse a anexação da Ucrânia à Otan, seus sistemas ofensivos de armas – inclusive nucleares – estariam chegando às portas da Rússia. Se, a pretexto do artigo 5º, a Otan se juntasse ao regime de Kiev para assaltar a Crimeia, que historicamente não é ucraniana, isso, como advertiu Putin, levaria a uma guerra nuclear.

A questão não é nova nos meios políticos russos que, há anos, debatiam a iminência de uma “crise dos mísseis nucleares no Mar Negro”.

A decisão de anexar a Ucrânia à Otan foi tomada em 2008 pelo então presidente dos EUA, W. Bush, quando sua invasão do Iraque já se tornara um desastre, apesar do famoso discurso de Putin, na Conferência de Segurança de Munique, no ano anterior, dizendo que era inaceitável o mundo unipolar sob Washington.

Na entrevista, Stoltenberg repete que “todos os aliados da OTAN concordam que a Ucrânia se tornará membro da aliança”, apesar de todas essas implicações e sinaliza a disposição dos EUA de lutar até o último ucraniano para atingir seus objetivos de reconquistar a península da Crimeia e impor uma derrota estratégica à Rússia.

“Quanto mais a guerra continua e se expande, mais claramente seu caráter imperialista emerge. Está ficando claro que o imperialismo americano, não contente com a dissolução da União Soviética, está buscando a derrota militar, dissolução e conquista da Rússia como o prelúdio de um esforço para subjugar militarmente a China”, diz o portal wsws.

Fonte: Papiro