Sociedade precisa se desintoxicar do ódio, analisa Christian Dunker
O período pós-Bolsonaro impõe ao Brasil desafios que se estendem desde questões objetivas — como a destruição de estruturas e políticas públicas e da morte de milhares de pessoas por Covid decorrentes de uma série de ações e omissões — até aspectos subjetivos — como o discurso de ódio, algo presente na sociedade, que se espraia e contamina as mais variadas esferas da vida pública e privada e cujas consequências, embora sejam claras, são de difícil mensuração.
Uma das facetas mais graves deste cenário são os ataques às escolas, que cresceram sensivelmente nos últimos anos, fruto de um caldo formado por esse ambiente e potencializado pelos mecanismos de funcionamento das redes sociais.
Em meio a tanta brutalidade, o Ministério dos Direitos Humanos criou um grupo de trabalho – coordenado pela ex-deputada Manuela D’Ávila – no começo do ano para se dedicar ao estudo do discurso de ódio, a fim de elaborar políticas capazes de mitigá-lo. E após os mais recentes ataques que levaram à morte de uma professora em São Paulo e de quatro crianças em Blumenau (SC), um grupo de trabalho interministerial, comandado pela pasta da Educação, também foi instituído para discutir ações de longo prazo. Além disso, medidas emergenciais e imediatas foram tomadas no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Um dos membros do grupo de trabalho sobre o discurso de ódio é o psicanalista Christian Dunker, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo). Ao portal, ele explicou que, no contexto atual, o ódio não é o afeto primário. “O afeto primário é o medo. Primeiro, você cria o medo e a vergonha de sentir-se isolado, de não se sentir pertencendo a um grupo e em seguida vem o ódio em cima”, disse.
O sentimento, que permeia a sociedade como um todo, rebate fortemente entre os mais jovens que, via de regra, são mais vulneráveis à influência das redes e à necessidade de aceitação, seja daqueles com quem dividem o cotidiano, seja nas redes sociais, em grupos de gamers ou fóruns presentes na internet ou na deep web.
“O que vem acontecendo é que essa experiência própria da adolescência — da gente se sentir estranho no corpo, no grupo, na família — está sendo acolhida por grupos de intencionalidade radicalizadora, grupos que vão transformar e capitalizar esse sentimento de injustiça em ódio orientado para uma ação não pacífica. Isso é completamente novo”, aponta Dunker.
Ele destacou ainda que esse processo de ataques às instituições de ensino tem a ver, também, “com a demonização, a suspeita com relação às escolas e universidades por parte do último governo”.
Para superar o problema, ele chama atenção para a necessidade de oferecer caminhos que passem pela educação — inclusive para o uso da internet — e pelos cuidados com a saúde mental, além da importância de o país ser desintoxicado de todo o discurso fascista que, apesar dos novos ares vindos com a eleição de Lula, ainda está presente no tecido social, bastante esgarçado nos últimos anos.
Leia abaixo os principais trechos dessa conversa.
Discurso de ódio e violência nas escolas
“Para enfrentar esse problema, é preciso elencar uma série de medidas e atitudes porque esse tipo de fenômeno é de determinação sistêmica (…) e demorou um tempo para se formar, dependeu de certas injunções políticas, de circunstâncias que passam, inclusive, pela Covid, pelo aumento do uso da linguagem digital associado à experiência escolar etc. Agora, temos um processo que não conseguimos colocar de volta na caixinha, vai demorar muito tempo para ele ser revertido. Mas há algumas coisas que podem ser feitas”.
Ódio às escolas, bullying e instrumentalização dos sentimentos
“Em primeiro lugar, a gente precisa discutir porque se gerou, neste país, um ódio às escolas, o que me parece ser um pouco diferente do processo norte-americano, onde já vinham acontecendo casos deste tipo, talvez por outros motivos. Em segundo lugar, perceber que em boa parte desses casos a gente tem processos de exclusão, segregação, discriminação, maus tratos, infortúnios que acompanham a vida escolar desde sempre. Por exemplo, aquela pessoa que sofreu bullying, que se sentiu marginalizada, desprestigiada dentro da escola, essa pessoa, historicamente, encontrava a solução junto a outros amigos que estavam passando por uma situação semelhante”.
“O que vem acontecendo é que essa experiência própria da adolescência — da gente se sentir estranho no corpo, no grupo, na família — está sendo acolhida por grupos de intencionalidade radicalizadora, grupos que vão transformar e capitalizar esse sentimento de injustiça em ódio orientado para uma ação não pacífica. Isso é completamente novo.São instrumentalizações que vão, por exemplo, criar comunidades em que você vai ser o herói se fizer isso; se não fizer, é uma pessoa a ser humilhada dentro desse grupo. Então, o que acontece é uma espécie de duplicação do bullying: você encontra uma comunidade que tem a violência, a crueldade como um valores e dentro dessa comunidade, a violência vai ser reaplicada se você não der provas, se você não realizar uma demanda daquele grupo”.
“Esses grupos devem ser monitorados e é preciso um processo de educação escolar. A insatisfação é canalizada para as práticas digitais negativas, opondo-se às boas práticas e isso acontece, em parte, porque nossas escolas estão desguarnecidas para lidar com isso. Nós estamos começando agora a pensar em como se ensina a usar a internet, como se adverte de perigos”.
Saúde mental e mediação
“Além disso, a gente precisa de iniciativas no campo da saúde mental. É possível formar uma espécie de clínica básica de escuta nas escolas. Eu acompanho iniciativas em escolas em São Paulo de alunos que querem fazer psicologia, medicina, comunicação e que se organizam para escutar outros alunos e para prestar atenção em processos de violência, de racismo, de assédio porque tudo isso concorre para a produção e aceleração de quadros de transtornos mentais, inclusive a maneira como hoje a gente está acompanhando esses processos, às vezes exilando-os da escolaridade. Quando alguém tem um problema desse tipo, encaminham a pessoa para o psicólogo ou psiquiatra, ela fica em tratamento, mas é como se isso fosse em paralelo com o processo escolar. Eu acho que está errado e há um atraso legislativo e institucional nas nossas escolas em relação a esse ponto”.
“A gente fez um processo de inclusão bem-sucedido nas escolas brasileiras, que hoje têm um nível de diversidade maior do que a gente tinha há 20 anos, mas nada se fez em termos de mediação, do ponto de vista de fazer com que as escolas criassem uma cultura onde a diferença fosse tratada com mediação. Podemos dizer o mesmo das universidades. Os programas de cotas foram bem-sucedidos. Mas, onde estão os mediadores ou aqueles que, presumindo que quando aumenta a diversidade, aumenta conflito, vão ajudar a tratar esses conflitos? Nós não fizemos a nossa lição de casa nessa matéria”.
Demonização de instituições de ensino
“Esse processo tem a ver, também, com a demonização, a suspeita com relação às escolas e universidades por parte do último governo. Quando você diz que as universidades são lugares de balbúrdia, quando você diz que o ‘professor de história é perigoso porque ele doutrina’ ou que a professora ‘vai apresentar a mamadeira de piroca’ ou vai falar em questões de gênero, quando você coloca personagens do universo escolar como inimigos de Estado, isso vai ter uma consequência”.
“Alguns vão ignorar, mas outros vão comprar essa ideia junto com outro discurso muito pernicioso e que floresceu nos últimos seis anos que é o discurso do tratamento da violência pela violência. Nos casos que a gente conhece de ataques a escolas, os garotos, em geral, são brancos, se sentiam injustiçados, se sentiam objeto de uma violência real ou imaginária. E como tratavam a violência que sofriam? Com armas e devolvendo essa violência de forma errática às vezes sobre figuras que tinham um papel meramente simbólico”.
O medo como gerador do ódio
“O discurso do ‘arme-se’ continua na resposta social para isso quando a gente fala, em primeiro lugar, em policiar as escolas, armar professores, colocar detector de metais, isso é a continuação do veneno no veneno. Você alimenta aquilo que está causando esse processo com mais violência, com mais câmeras, com mais sentimento de medo porque esse é um ponto que a gente também discute no grupo de trabalho: o ódio não é o afeto primário. O afeto primário é o medo. Primeiro, você cria o medo e a vergonha de sentir-se isolado, de não se sentir pertencendo a um grupo e em seguida vem o ódio em cima”.
O bolsonarismo e o discurso fascista
“A gente assistiu, durante o governo Bolsonaro, a emergência de um discurso fascista. O discurso fascista não significa que o Brasil tenha se tornado um país fascista. Mas se você pensar e adensar a ideia de discurso, o bolsonarismo é fundamentalmente um discurso. E um discurso se mede pelo tipo de laço social que ele cria e pelos efeitos que ele impõe. Então, não é a fala do sujeito, mas o que isso causa em quem participa dessa fala e se coletiviza a partir dela”.
“É próprio do fascismo o ataque a intelectuais, a discriminação de raça, gênero e orientações sexuais contra-hegemônicas, os ataques à arte, a valorização da violência etc. Todos esses critérios a gente tem — e foram pesquisados, existem teses muito interessantes sobre isso — no discurso bolsonarista. Então, é muito difícil não pensar no discurso de ódio, com todos as características que a gente encontra, associado ao discurso fascista: o uso de certas palavras que funcionam como indexadores de vinculação das pessoas, o tom de voz, o uso da humilhação, o uso de sub-códigos, a ideia de que a gente se une contra o inimigo — portanto, a produção sistemática, encadeada e metódica de inimigos —, tudo isso que a gente encontrou ao longo do bolsonarismo”.
Desintoxicação da sociedade
“É improvável que esse discurso, que teve 48% de endosso nas urnas, tenha desaparecido. Discursos não desaparecem assim, a gente precisa de processos como foi o processo de desnazificação, que incluiu, por exemplo, localizar as responsabilidades, produzir tribunais, fazer julgamentos e reformas institucionais, criar leis preventivas, vetar certas práticas. Isso não aconteceu no Brasil, está acontecendo de forma meio tímida, reticente. O que a gente pode imaginar? O discurso fascista continua operando, mas aonde que ele vai estar? Aonde ele vai encontrar materialidade social? A escola se tornou alvo fácil para isso. E veja: não significa que o aquelas que cometem esses atentados sejam bolsonaristas no sentido de votarem nele etc. Mas, o discurso ultrapassa inclusive isso, ele se infiltra nas pessoas para além das figuras, dos indivíduos, dos heróis que esse discurso patrocina”.