Manifestantes atendem à convocação das Centrais Sindicais por toda a França | Foto: Emmanuel Dunam/AFP

A França parou nesta quinta-feira (23), para rechaçar a acintosa imposição da reforma da previdência de Macron, com 3,5 milhões de pessoas nas ruas, bloqueios e greve, e a participação notável da juventude, atendendo à convocação da Intersindical, entidades populares e oposição, no dia seguinte às afrontosas declarações do presidente francês chamando os manifestantes de “subversivos”, se recusando a retirar a reforma ou a convocar um referendo, asseverando que ele e sua vontade é que são a “democracia”, não o povo, e garantindo que “até o fim do ano” o esbulho estará em vigor. Nas contas da polícia, foram só “1 milhão”

“Estou pronto para ser impopular”, concluiu Macron. Declarações feitas após seu governo ficar a apenas nove votos da derrubada por moção de censura e com mais de dois terços dos franceses, segundo as pesquisas, a favor de que as manifestações e greves continuem até que a reforma da previdência seja retirada ou Macron renuncie. “Atirou uma lata de gasolina para o fogo”, assinalou o secretário-geral da CGT, Philippe Martinez, sobre o destempero de ‘Júpiter’, apelido posto pelo povo ao atual inquilino do Palais de l’Élysée.

A manobra do uso da brecha constitucional, o artigo 49.3, para atropelar a vontade popular e violar a democracia, se tornou o catalisador da indignação. “A tremenda mobilização social organizada por todas as centrais sindicais está em andamento desde 19 de janeiro”, registrou a convocatória da Intersindical, capitaneada pela CGT e pela CFDT.

É quase uma unanimidade na França que a arrogância, mentiras e ameaças de Macron, ao invés de intimidarem o povo e as lideranças sindicais e oposicionistas, acabaram por estimular a ida aos protestos. Só em Paris, foram 800 mil, um recorde desde o início das manifestações.

O repúdio se repetiu em mais de 200 cidades, sendo 280 mil pessoas em Marselha, 110 mil em Bordeaux, 55 mil em Lyon, 50 mil no porto de Havre, 40 mil em Nice e em Rouen, e mais dezenas de milhares ou milhares de adeptos em cada uma das outras localidades.

As próprias autoridades francesas admitiram que a greve afetou 2 em cada 3 trens de alta velocidade, parou boa parte dos serviços de metrô e trem e reduziu em 30% os voos. A maior refinaria da França, na Normandia, está paralisada, e os bloqueios se estendem a outras refinarias, assim como aos depósitos de gás e ao setor elétrico.

Também grande parte dos serviços públicos, com os bombeiros sendo aplaudidos ao se juntarem à passeata em Paris. 80 universidades e 400 escolas de segundo grau se juntaram repúdio – até mesmo faculdades tidas como de ‘direita’: “o Assas está aqui, Macron, você está ferrado”, cantaram seus alunos. Os garis estão em greve há uma semana, e a população lhes pede para “aguentarem”.

Em sua arenga, Macron insultou a inteligência dos franceses ao dizer que o problema com a previdência seriam os privilegiados aposentados. “Por que chegamos a este momento? Porque “durante uma década dizemos ao país que podíamos gastar sem produzir”, afirmou”, asseverou pela televisão. Em suma, o problema do déficit público não é o desvio de bilhões para o resgate de bancos falidos e para a guerra por procuração, a soldo de Washington, contra a Rússia (Macron está aumentando os gastos militares em US$ 100 bilhões até o fim da década), mas as magras aposentadorias.

Apesar de a Intersindical ter mostrado, com base nos números oficiais, que o orçamento não está desequilibrado e que há muitas soluções para financiar as aposentadorias. “Aumentar salários, criar empregos, tributar dividendos, garantir igualdade salarial, jornada de 32 horas”, que o governo se recusou a debater. “Mesmo que se comprovasse o cenário de déficit de 12 bilhões de euros em 2027 argumentado pelo governo, bastaria um aumento de 0,8% de contribuição para preenchê-lo”.

“Metade do suposto déficit seria coberto caso se acabe com a diferença salarial de 28% entre mulheres e homens [salário igual para trabalho igual]”, assinalou o documento. “Ao aumentar os salários, automaticamente aumentam as contribuições para a previdência social para financiar as aposentadorias e se garantem melhores direitos à pensão”.

“Mais 5 bilhões de euros para a previdência” seriam arrecadados com a contratação dos 400 mil funcionários necessários para o serviço público hospitalar”.

“As isenções fiscais concedidas às empresas, que totalizam 157 bilhões de euros anuais, são 13 vezes” o déficit previdenciário anunciado”. Outra fonte, o fim das as isenções aos dividendos das empresas e rendimentos financeiros, que só no ano passado foram de “80 bilhões de euros”.

Uma nova pesquisa da consultoria Odoxa-Backbone, para o jornal conservador Le Figaro, registrou que o repúdio à reforma da previdência de Macron é de 76% dos franceses, o pior resultado de seu governo, pior até mesmo dos 63% no auge dos protestos dos coletes amarelos (que, aliás, estão de novo nas ruas em apoio aos trabalhadores).

Outro dado da pesquisa: sete em cada dez franceses acreditam que o governo é culpado pela atual violência e excessos nas manifestações. 91% consideram que eram previsíveis e 83% que vão piorar nos próximos dias.

Diante dessa reforma injusta, “continuaremos marchando”, disse o prefeito de Lyon, Gregóry Doucet. “A ideia de fazer as pessoas trabalharem mais é uma hipocrisia, ainda que metade dos maiores de 60 anos já esteja desempregada, e os maiores de 60 anos não estejam empregados nem reformados, e tenham de se contentar com o RSA, ou invalidez ou subsídios para adultos deficientes”.

“Claro que o artigo 49.3 foi um golpe anti-democrático contra uma reforma polêmica, criando muita indignação. Antes já manifestei e participei em quase todos os protestos porque prolongar os anos de trabalho das pessoas, quando os salários estão cada vez mais baixos, as condições de trabalho piores, os serviços públicos cada vez mais atacados, é algo que não conseguimos aceitar porque não nos parece justo”, disse ao portal RFI a professora Matilde Mendes.

“Estamos falando de um governo cuja uma das primeiras medidas que tomou foi retirar os impostos sobre as fortunas. Há, claramente, um sentimento de injustiça e é por isso que estamos aqui”. “Parece que Macron só acha que somos legítimos quando concordamos com ele”, acrescentou.

Um operário de 50 anos de uma aciaria disse ao jornal L’Humanité, que “para nós, até os 64 anos dentro de uma metalurgia, com tal calor e condições de trabalho, é verdadeiramente impossível”.

Também as lideranças oposicionistas se pronunciaram. O ex-candidato a presidente do França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon, acusou Macron de “viver fora de toda a realidade”: “Como é possível, enquanto o país está mergulhando em um beco sem saída, … [mentir] com tanta arrogância?”

“ISOLAR O GOVERNO”

O secretário nacional do Partido Comunista Francês (PCF), Fabien Roussel, na manifestação em Paris, chamou a continuar e ampliar o movimento, de forma pacífica e não violenta, para “isolar o governo. Ou ele retira sua reforma ou renuncia”.

Nesta quinta-feira, senadores de oposição apresentaram ao Conselho Constitucional um recurso contra a reforma da previdência aprovada por 49,3 no Parlamento. Nomeadamente quanto a uma alteração à lei de financiamento da Segurança Social, considerada “inadequada” para uma reforma desta importância. E então nas alavancas de procedimento acionadas, artigos da Constituição (de 47-1 a 49.3) ou do regulamento do Senado que permitiam acelerar os debates e então adotar a reforma sem votação na Assembleia Nacional.

Também os deputados do Nupes [a coalizão de insubmissos, comunistas, socialistas e ecologistas] e do Rally Nacional já interpuseram, cada um a seu lado, recursos nesse sentido ao Conselho Constitucional.

INDIGNAÇÃO

Também causou repulsa a abjeta comparação dos franceses que estão nas ruas lutando contra o esbulho de sua aposentadoria, feita por Macron na televisão, aos trompistas e bolsonaristas que, respectivamente em 6 de janeiro de 2021 e em 8 de janeiro de 2022, tentaram um golpe contra o resultado das eleições.

A que um ativista da CGT em Lyon, assim como milhares e milhares de franceses expressaram nesta quinta-feira nas ruas, respondeu que “insultar milhões de funcionários rebelados e nos comparar com aqueles que invadiram o Capitólio é pior que um insulto”.

Observação prontamente acrescentada por um ativista ferroviário, Fabien Villedieu. “Gostaria de agradecer a Emmanuel Macron. Ele é tão arrogante toda vez que fala, que você só quer pegar sua bandeira e ir para uma manifestação”.

Fonte: Papiro