Jornalistas italianos quando faziam a cobertura na cidade de Bakhmut, no Donbass | Foto: Andrea Sceresini/RAI

Mesmo beneficiado pela cobertura mais tendenciosa, vista em décadas, por parte da mídia global o regime de Kiev acha pouco e tem cassado jornalistas estrangeiros, depois de ‘convidá-los’ a mentir.

É o caso de dois jornalistas italianos a serviço da rede estatal RAI, em fevereiro e, no ano passado, de uma premiada jornalista dinamarquesa, aos quais acusou paranoicamente de ‘colaborar com o inimigo’.

O caso de um jornalista fotográfico italiano, morto a tiros em 2014 no Donbass, por tropas ucranianas, continua na impunidade. Também já tiveram suas credenciais cassadas equipes da Sky News e da CNN quando transmitiam ao vivo a retomada da cidade de Kherson.

Segundo a Federazione Nazionale di Stampa Italiana (Federação Nacional de Imprensa Italiana – FNSI), os jornalistas Alfredo Bosco e Andrea Sceresini tiveram seu credenciamento de imprensa retirado pelo Ministério da Defesa em Kiev no dia 6 de fevereiro por supostamente estarem “colaborando com o inimigo”. Um terceiro jornalista italiano, Salvatore Garzillo, esteve na Polônia e não conseguiu entrar de volta na Ucrânia, tendo de retornar à Itália.

“Os cronistas não participam de guerras, eles contam sobre elas. Precisamos garantir sua segurança e o direito de realizar seu trabalho”, postou o presidente da FNSI, Vittorio Di Trapani. A revogação de credenciais foi também condenada em um novo relatório do International Press Institute.

Bosco e Sceresini são freelancers e trabalhavam para a rede estatal RAI. Eram credenciados para cobrir a guerra na Ucrânia desde março de 2022, e já tinham documentado as tensões em regiões disputadas pela Rússia e pela Ucrânia no passado. No dia 18 de fevereiro, a emissora veiculou uma reportagem feita pela dupla de profissionais no Donbass.

No Facebook, Sceresini relatou que, ao saber do boato de que eles seriam acusados de espiões para os russos e que o SBU (Serviço Secreto ucraniano) queria interrogá-los, os dois voltaram de Bakhmut, no leste do país, palco dos confrontos mais violentos das últimas semanas. De acordo com as informações disponíveis, a situação de Bakhmut é cada vez mais precária e está prestes a ser controlada pelas forças russas.

“Não tendo nada a temer, fornecemos todos os nossos dados e pedimos para ser convocados o mais rápido possível. Ficamos dias trancados em um apartamento em Kramatorsk, porque lá fora estava cheio de soldados e postos de controle, e quem for pego com um cartão de imprensa inválido corre o risco de ser preso”, relatou o jornalista.

Em busca de apressar o desbloqueio das credenciais de jornalistas, os dois foram para a capital, Kiev, onde fica a sede da SBU, na expectativa de poderem prestar depoimento logo e solucionar a questão. Em vão: mesmo em Kiev, nada. Eles continuam impedidos de trabalhar e evitam andar pela capital, pois não podem circular pela Ucrânia diante do risco de serem detidos em postos de controle ou coisa pior.

Um dos principais jornais italianos, “Il Fatto Quotidiano”, publicou carta em que os dois jornalistas tentam desvendar o que está ocorrendo. “A suspeita – também com base nos rumores que circularam entre os fixers [jornalistas locais que ajudam repórteres estrangeiros em cobertura de campo] – é que o problema seria nossa experiência de trabalho jornalístico nas repúblicas separatistas que, como centenas de outros colegas, visitamos várias vezes desde 2014”, registraram.

Tentando sensibilizar os censores, na carta Bosco e Sceresini alegaram inclusive que suas reportagens na época documentaram coisas que seriam contrárias aos governos populares locais como “o negócio de minas ilegais geridas por líderes ‘pró-russos’, a presença de voluntários de extrema direita, incluindo italianos, e as rixas internas dentro dos governos das repúblicas não reconhecidas de Donetsk e Lugansk”. “Ao mesmo tempo – tendo também obtido um cartão especial da SBU – naqueles anos obviamente também visitamos a frente do lado ucraniano”, eles acrescentaram, mas a posição imparcial dos jornalistas não os ajudou até agora.

DEFENDER O “DIREITO À NOTÍCIA”

Em uma reunião em defesa da liberdade de imprensa e pela devolução das credenciais a Bosco e Sceresini, o presidente da FNSI destacou que “num país como o nosso e num momento como este, é fundamental que a narrativa sobre a guerra seja feita de forma ininterrupta porque a censura não é algo que diz respeito ‘apenas’ aos jornalistas censurados, mas a todos os jornalistas e a todos aqueles que têm o direito de receber informações”.

“Estamos acostumados a ver jornalistas pró-ucranianos e algumas vozes pró-russas, em vez disso, temos o direito à notícia. E Salvatore Garzillo tem razão: somos ‘apenas’ repórteres e ‘só’ temos o microfone para contar a história”, enfatizou.

Para o Presidente do Conselho Nacional da Ordem dos Jornalistas, Carlo Bartoli, além da solidariedade aos repórteres excluídos da Ucrânia e impossibilitados de trabalhar, é fundamental que a política trate dessa história e “é justo que todas as entidades de classe, unidas, peçam que os jornalistas fiquem livres para realizar seu serviço sem censura”.

Giuseppe Giulietti, da entidade pela liberdade de imprensa Artigo 21, chamou a “verificar se existe uma lista negra de jornalistas italianos e quem a solicitou”. No encontro, Elisa Signori Rocchelli, mãe de Andrea Rocchelli, o jornalista assassinado no Donbass em 2014, disse estar muito preocupada “com o destino dos dois repórteres italianos”.

“8 ANOS E 7 MESES DE IMPUNIDADE”

Dona Elisa segue em busca de justiça para seu filho Andrea, morto em 24 de maio de 2014 em Sloviansk, então o epicentro do levante do Donbass contra o regime neonazista e russófobo instaurado pelo golpe da CIA. “Já se passaram 8 anos e 7 meses desde aquele ataque e o crime continua impune”.

É ela que rememora como “a pesada artilharia ucraniana com fogo progressivamente ajustado matou seu filho, então com 30 anos, e um ativista russo de direitos humanos duas vezes mais velho que o acompanhava, Andrei Mironov, e feriu gravemente um fotógrafo francês, William Roguelon, que felizmente sobreviveu, mais dois outros civis ucranianos.

Outro episódio que chamou a atenção para a censura à imprensa na guerra da Ucrânia, foi a cassação, no ano passado, da credencial de Matilde Kimer, jornalista da rede pública dinamarquesa DR, para reportagens na linha de frente do conflito por ser, segundo a SBU, “tendenciosa, fazer propaganda da Rússia e violar regras de viagem”.

Kimer trabalha para a DR desde 2009 cobrindo a Ucrânia e a Rússia e foi indicada ao prêmio de jornalismo Cavling, o mais importante da Dinamarca, por seu trabalho na guerra. Funcionários do serviço de segurança ucraniano, responsável pela revogação, chegaram a sugerir que ela produzisse “boas matérias” como condição para ser novamente credenciada.

A pressão sobre a jornalista começou no dia 22 de agosto, quando Kimer recebeu um e-mail do SBU informando que seu credenciamento de imprensa para áreas de guerra havia sido revogado. Em entrevista ela disse ter achado que seria um mal-entendido, e passou um mês tentando falar com as autoridades para reverter a situação.

Em 8 de dezembro, veio a posição definitiva. Em uma reunião em Kiev organizada com ajuda do Ministério dos Relações Exteriores dinamarquês, o SBU disse a Kimer que ela era tendenciosa, engajada na propaganda russa e talvez até estivesse “trabalhando para o inimigo”.

Segundo o Comitê de Proteção a Jornalistas (CPJ), um representante do SBU chamado Oleg disse a ela que algumas de suas postagens pessoais nas mídias sociais, incluindo uma no Facebook de maio de 2017, com fotos de um desfile militar na autodeclarada República Popular de Donetsk (DPR), mostrava faixas soviéticas, foram entendidas como “propaganda soviética ilegal”.

Fonte: Papiro