Mauro Vieira encerra política externa “pária” do bolsonarismo
Num discurso revelador da dimensão da retomada da respeitada diplomacia brasileira, a partir do novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o novo chanceler Mauro Vieira anunciou na segunda-feira (2), em sua posse no Itamaraty, uma mudança profunda e abandono completo das linhas de política externa adotadas pelo bolsonarismo, que se orgulhava do Brasil ser um pária internacional.
O Itamaraty é um dos pontos de atenção de Lula para o próximo governo. Isso porque, durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL), o Brasil enfraqueceu laços com diversos países parceiros, ocasionado, principalmente, por embates do presidente e de membros do clã Bolsonaro com lideranças internacionais.
Ao discursar, o novo ministro apontou para o “enorme trabalho de reconstrução do patrimônio diplomático, depois de um retrocesso sem precedentes em nossa política externa”. Ele disse que vai reconduzir o Brasil “ao grande palco das relações internacionais”. Ainda dirigiu um agradecimento à ex-presidente Dilma Rousseff, na gestão de quem também foi ministro das Relações Exteriores.
“Atravessamos um momento certamente dos mais conturbados no cenário internacional. Teremos de saber operar nesse ambiente, com uma crise de governança global sem precedentes”, declarou o chanceler no discurso de posse. “A boa notícia, como indica o presidente Lula, é que o Brasil está de volta”, complementou.
Ao contrário das demais cerimônias de transmissão de cargo já ocorridas, o chanceler de Jair Bolsonaro (PL), Carlos França, esteve presente no evento no Itamaraty, numa demonstração do respeito entre os diplomatas.
Apesar de sua presença, Vieira não economizou críticas ao padrão diplomático mantido pelo governo anterior. Ao exaltar Celso Amorim, que foi chanceler de Lula nos outros dois mandatos, disse que poderá contar com sua sabedoria para superar o que chamou de “tarefa monumental” de recuperar os danos causados pela gestão Bolsonaro.
“É reconfortante saber que poderei contar com a experiência, a colaboração e o olhar sempre construtivo de Celso Amorim, um dos maiores diplomatas da nossa história”, afirmou.
O diplomata destacou que o Brasil esteve alijado do cenário internacional nos últimos anos e apontou como justificativa disso uma visão “ideológica limitante”. O primeiro chanceler do antigo governo, Ernesto Araújo, de fato chegou a afirmar que o Brasil deveria se orgulhar de ser um “pária internacional”, ao criticar o sistema multilateral.
Ideologia da Integração
O novo organograma da pasta recria as secretarias dedicadas à América Latina e ao Caribe, à África e ao Oriente Médio e a Clima, Energia e Meio Ambiente, abandonadas pela gestão anterior.
Como ele e o presidente vêm destacando, Vieira reforçou que um dos objetivos do novo governo é reconstruir as pontes com os países latino-americanos, em particular em fóruns internacionais —caso da Unasul (União das Nações Sul-Americanas) e da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), citados no discurso.
“De todas as ausências do Brasil, o abandono da América Latina e do Caribe talvez seja a que nos ocasionou maiores prejuízos. O retorno do Brasil à sua própria região significará o engajamento e o diálogo com todas as forças políticas, para que possamos recuperar a capacidade de defender nossos interesses e contribuir para o desenvolvimento e a estabilidade regionais”, disse. “Nossa ideologia na região será a ideologia da integração.”
Em dezembro, quando anunciou as primeiras viagens internacionais que Lula fará como presidente, Vieira já tinha destacado, por exemplo, o restabelecimento das relações diplomáticas com a Venezuela.
Nesta segunda, ele ressaltou o papel do Mercosul e, em relação ao acordo do bloco com a União Europeia, disse que interessa ao Brasil um “tratado equilibrado”, que ofereça “ganhos reais para a economia brasileira”, sem desculpas ambientais para o protecionismo europeu.
O novo chanceler também afirmou que o Brasil voltará a defender a solução de dois Estados para o conflito israelo-palestino, depois de quatro anos de um alinhamento ferrenho a Israel promovido pelo agora ex-presidente.
Assim como gestões petistas anteriores, disse que o Brasil voltaria a pressionar pela reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas —colegiado no qual o país exerce hoje mandato rotativo— e de instituições financeiras internacionais.
O indefensável
Antes de Vieira, houve um discurso do ex-chanceler, Carlos França, que ocupou o cargo de forma mais técnica após a gestão ideológica e danosa de Ernesto Araújo. Ele defendeu sua gestão em pontos de agenda positiva, enquanto evitou falar dos pontos que foram criticados depois. Disse que, após uma conversa com Bolsonaro, foram estabelecidas três “urgências” e que elas foram enfrentadas pela pasta: a sanitária, ligada à pandemia de Covid; a econômica; e a climática.
França ressaltou o papel da diplomacia na compra de vacinas contra o coronavírus, apesar do atrasado atacado pelos segmentos científicos e políticos. Defendeu supostos avanços no mercado de créditos de carbono, desconsiderando os dados de aumento no desmatamento.
Estavam presentes na solenidade parlamentares e outras autoridades como a ministra do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, Marina Silva, o futuro presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, a presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Maria Thereza de Assis, o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro Bruno Dantas, e a do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, entre outros. A cerimônia ocorreu no segundo andar do Itamaraty.
Perfil
Será a segunda vez que Vieira assume o posto de chanceler do Brasil. No segundo governo de Dilma Rousseff, ele assumiu a chefia da Itamaraty, onde ficou até 12 de maio de 2016, sendo exonerado após o afastamento de Dilma do governo no processo de impeachment.
Carioca, ele é formado em Direito pela Universidade Federal Fluminense e diplomada de carreira, formado pelo Instituto Rio Branco. Vieira foi embaixador do Brasil na Argentina entre 2004 e 2010, e nos Estados Unidos entre 2010 e 2015.
Em janeiro de 2016, Michel Temer o nomeou para um cargo de representante permanente do Brasil na Organização das Nações Unidas (ONU), talvez o cargo mais avançado de sua carreira.
Como chanceler, Vieira deve acompanhar Lula nas viagens internacionais, como a que deve ocorrer em janeiro de 2023 para os Estados Unidos, onde a comitiva brasileira se encontrará com o presidente Joe Biden.
Pautas prioritárias
Eis alguma das transformações que o Itamaraty adotará mencionadas por Vieira:
1. Fim do posicionamento pró-Israel. Segundo Vieira, o Brasil voltará a adotar sua visão “tradicional e equilibrada” na questão entre Israel e Palestina, com a defesa das fronteiras reconhecidas internacionalmente, o direito internacional e a solução de dois estados viáveis. Na prática, o novo chanceler enterra a ideia de Bolsonaro de reconhecer Jerusalém como capital de Israel, o que gerou reações internacionais.
2. Fim do alinhamento automático com os EUA. Segundo Vieira, o Brasil vai buscar um relacionamento “em pé de igualdade” com os americanos e onde todos os temas estarão sobre a mesa.”Com os Estados Unidos queremos relações em pé de igualdade, baseadas em valores e interesses comuns, sem qualquer tipo de preconceito sobre temas e assuntos, e isentas de alinhamentos automáticos”, disse.
3. Diversidade no Itamaraty. Vieira indicou que vai adotar uma política de maior diversidade para a carreira diplomática, com um maior número de profissionais que representem indígenas, mulheres e negros.
4. OCDE em suspense. O governo irá “examinar” o convite feito pela OCDE para a adesão do Brasil. Ele, ao contrário do governo Bolsonaro, não garantiu que o Brasil irá seguir esse caminho e indicou que, antes, haverá uma avaliação sobre tal conveniência.
5. Igualdade de gênero, racismo e indígena de volta na agenda internacional de direitos humanos. A visão contrária à postura adotada pelo Itamaraty e pela ex-ministra Damares Alves, nos fóruns internacionais. “O Brasil realinhará a política externa em direitos humanos aos parâmetros da Constituição Federal e do direito internacional dos direitos humanos, sobretudo na promoção da igualdade de gênero; no combate à discriminação e à violência em função de orientação sexual e identidade de gênero; na promoção da igualdade racial e o combate ao racismo e a xenofobia; e na defesa dos direitos dos povos indígenas”, afirmou.
6. Prioridade aos temas climáticos. Lula sediará eventos internacionais e quer diálogo para debater acordos. “O Brasil tem todas as condições de consolidar-se como modelo de transição energética e economia de baixo carbono”, disse o chanceler. Haverá um esforço brasileiro, mas com cobrança firme dos compromissos internacionais de financiamento. “A diplomacia ambiental e climática será ativa e determinada a defender nossos interesses e a desempenhar o papel de facilitador e de gerador de consensos que, desde a preparação da Rio-92, o Brasil sempre soube exercer até recentemente”, completou.
7. O olhar para a América Latina. Deixou claro que o Brasil precisa reassumir sua identidade de sul-americano e emergente. Segundo ele, o maior prejuízo da política bolsonarista foi o distanciamento de seus vizinhos e que, portanto, sua meta é o retorno do Brasil para a região.
Numa sinalização de como irá atuar, Vieira insistiu que vai promover o diálogo com todas as forças políticas e contribuir para estabilidade e democracia regional. Um projeto de promoção de entidades e projetos como a Unasul. Ele garantiu que o Brasil irá promover a democracia e ajudará forças políticas a superar tensões internas, sem violar a soberania.
8. Volta ao pacto da ONU sobre migrações. O Brasil irá retomar sua posição dentro do mecanismo, abandonado por Bolsonaro, apesar das críticas de agências da ONU e entidades internacionais. Elas alertaram que os maiores afetados serão os mais de 4 milhões de brasileiros espalhados pelo mundo, muitos deles em condições de vulnerabilidade. Fui uma clara posição ideológica de visão curta.
9. Recompor relações bilaterais perdidas. Um dos aspectos principais da nova política externa, assim como “retomar o protagonismo construtivo nos foros e organismos internacionais onde temos uma contribuição singular a oferecer”, é retomar relações com países agredidos por posicionamentos de Bolsonaro, como China, Venezuela, França, Argentina, Chile e Cuba, por exemplo.
10. Reforma da ONU. Segundo Vieira, o Brasil e os demais países emergentes querem ter vez e voz na cena internacional. “Não podemos conviver com estruturas decisórias desatualizadas, que não refletem a contribuição que podem dar ao enfrentamento de desafios comuns. Atualizar a governança global na terceira década do século XXI é uma tarefa inadiável”, disse. “Seguiremos trabalhando para uma reforma e ampliação do Conselho de Segurança da ONU, órgão de que participamos em 2023, o segundo ano de nosso atual biênio como membro não-permanente”, afirmou.
11. Fome no centro da política externa. O Itamaraty passará a assumir o Brasil como uma “potência agroambiental” e colocará o país como central na segurança alimentar mundial. “Em sintonia com a prioridade conferida pelo Presidente Lula ao combate à fome, atuaremos para fortalecer todos os elos da cadeia mundial de suprimentos alimentares, desde a livre circulação de insumos e tecnologias de produção até o acesso a alimentos de qualidade. Seremos incansáveis nos esforços para abrir mercados e diminuir e neutralizar barreiras ao comércio agrícola”, disse.
12. África. Mauro Vieira ainda apontou que o Brasil voltará a ter uma política externa para a África. “Ao movimento de retorno à nossa região deve corresponder a retomada da política externa verdadeiramente universalista. A África, região da qual o Brasil esteve ausente nos últimos anos, voltará a ser prioridade. Continente dinâmico, a África tem avançado em seu processo de desenvolvimento; constrói, agora, uma gigantesca área de livre comércio; e abrigará, em alguns anos, quase metade da juventude mundial”, disse.
“O diálogo político de alto nível com países africanos e suas organizações regionais será restabelecido para tratar de desafios comuns, como segurança alimentar, mudança do clima, comércio e investimentos e intercâmbio de tecnologias. Fortaleceremos a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul”, completou.
13. China. O discurso ainda apontou que é de “extrema importância” desenhar e executar uma estratégia ambiciosa para a Ásia-Pacífico, a região mais dinâmica do mundo, e, em particular, para a China, Índia e Japão, além do conjunto da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). “Buscaremos novas áreas de cooperação em temas de interesse do Brasil, como mudança do clima; proteção do meio ambiente; ciência, tecnologia e inovação; além de ampliar e diversificar o comércio e atrair mais investimentos”, disse.
(por Cezar Xavier)