Para o general Erich Vad (ao lado de Merkel), o ativismo pró-guerra na política alemã deve ter fim | Arquivo

O ocidente pode enviar 100 Leopards para lá, que não mudarão em nada a situação militar geral. O general da reserva Erich Vad conclamou à formação de “uma ampla frente pela paz” e pediu que “o ativismo sem sentido na política alemã [pró-guerra] tenha fim”. “Caso contrário, ao acordarmos numa manhã estaremos no meio da Terceira Guerra Mundial”.

O ex-conselheiro militar do governo Merkel, general Vad, manifestou-se contra a decisão, recém tomada em Berlim, de entregar tanques alemães Leopard 2. “Isto é uma escalada militar, também na percepção dos russos”, embora ressalte que os Leopards não são “uma bala de prata” e “não mudarão a situação militar geral no longo prazo”.

O que se quer alcançar com essa entrega dos Leopards, ele pergunta: “Uma disposição para negociar? Reconquistar o Donbass ou a Crimeia? Ou derrotar a Rússia completamente? Não há uma definição realista do estado final. E sem uma política geral e um conceito estratégico, entregas de armas são puro militarismo”.

O governo Scholz anunciou o envio a Kiev de 14 tanques Leopard 2 e também liberou qualquer país que tenha esse tanque para a entrega, falando-se ao todo em cerca de 100 possíveis tanques. Também estão enviando tanques os EUA, Reino Unido e França. “Vão arder como os outros”, reagiu o Kremlin.

Ele advertiu que essa escalada das armas poderia gerar um impulso por si mesmo que “não possamos mais controlar”. E acrescentou que, “se foi e é certo apoiar a Ucrânia, as consequências devem finalmente ser levadas em conta”.

Para o ex-conselheiro, há um “impasse operacional” no conflito, que “não podemos resolver militarmente”. Incidentalmente – ele acrescenta – “esta é também a opinião do Chefe do Estado Maior norte-americano, Mark Milley. Ele disse que a vitória militar da Ucrânia não é provável e que negociações são o único caminho possível”.

Qualquer outra coisa “é um desperdício sem sentido de vidas humanas”, disse Vad. Como observou a entrevistadora Annika Ross, a declaração do general Milley “causou um bocado de perturbação em Washington e foi fortemente criticada em público.

“Falou uma verdade desconfortável”, concordou Vad, notando que foi abafada na mídia alemã, apesar de ter sido dada à CNN e de Milley ser “o chefe do Estado Maior da nossa principal potência ocidental”.

“O que está ocorrendo na Ucrânia é uma guerra de atrito. E uma guerra com quase 200 mil soldados mortos e feridos de ambos os lados, com 50 mil civis mortos e com milhões de refugiados. Milley traçou um paralelo com a I Guerra Mundial que não poderia ser mais correto. Durante a I Guerra Mundial, o chamado “Moinho de sangue de Verdun”, o qual foi concebido como uma batalha de atrito, levou às mortes de quase um milhão de jovens franceses e alemães. Eles tombaram para nada. Assim, a recusa a negociar das partes em guerra levaram a milhões de mortes adicionais. Esta estratégia não funcionou militarmente então – e tão pouco funcionará hoje”, afirmou Vad.

O ex-conselheiro admitiu que tem sido atacado por “clamar por negociações”, assim como o Inspetor Geral das Forças Armadas Alemãs, General Eberhard Zorn, que “tal como eu, advertiu contra a superestimação das ofensivas regionalmente limitadas dos ucranianos nos meses de verão”.

MANIPULAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA

Vad enfatizou que especialista militares – que sabem o que se passa no terreno e o que a guerra realmente significa – têm sido amplamente excluídos do debate sobre o conflito. “Eles não se encaixam na formação de opinião promovida pela mídia. Estamos em grande medida experimentando uma sincronização da mídia que nunca senti antes na República Federal da Alemanha. Isto é pura fabricação de opinião”.

“A maioria da população está há muito tempo, de acordo com a pesquisa mais recente, contra novas entregas de armas. Contudo, nada disto é relatado (na mídia). Em grande medida já não há mais um debate justo e aberto sobre a guerra da Ucrânia e acho isso muito perturbador”, disse o ex-general. Isso – ele destacou – “me mostra quão certo estava (o ex-primeiro-ministro) Helmut Schmidt. Numa conversação com Merkel, ele lhe disse: a Alemanha é e continuará a ser uma nação ameaçada”.

Sobre a atual ministra das Relações Exteriores, a ‘verde’ Annalena Baerbock, que recentemente disse que a Alemanha estava “em guerra com a Rússia”, Vad disse que “é difícil de suportar a unidimensionalidade da atual política externa” alemã. “Está muito fortemente focada nas armas. A principal tarefa da política externa é e continua a ser a diplomacia, a reconciliação de interesses, o entendimento e a gestão de aqui. Fico feliz por termos na Alemanha finalmente uma ministra das Relações Exteriores, mas não basta apenas usar a retórica da guerra e andar por Kiev ou o Donbass com um capacete e um colete à prova de bala. Isso é muito pouco”.

“Não entendo a mutação dos Verdes, de partido pacifista para partido da guerra. Eu próprio não sei de qualquer verde que tenha sequer feito o serviço militar. Para mim, Anton Hofreiter é o melhor exemplo deste duplo padrão. Antje Vollmer, por outro lado, que eu não contaria entre os verdes ‘originais’, chama as coisas pelos seus nomes”, assinalou Vad, dizendo que é “muito preocupante” que um único partido tenha tanta influência política que possa “manobrar-nos para uma guerra”.

Indagado de que conselho teria dado em fevereiro de 2022 ao primeiro-ministro Scholz, se ainda estivesse no posto que ocupou no governo Merkel, Vad asseverou que seria “apoiar militarmente a Ucrânia, mas de uma maneira medida e prudente a fim de evitar se tornar parte do conflito”. “E o teria aconselhado a influenciar o nosso mais importante aliado político, os EUA. Porque a chave para resolver a guerra jaz em Washington e Moscou”.

“AVANÇO RUSSO”

Quanto ao efeito real do envio de tanques alemães para o regime de Kiev, o ex-conselheiro militar observou que “não são suficientes” para dominar a Crimeia ou o Donbass. “No leste da Ucrânia, na área de Bakhmut, os russos estão avançando claramente. Eles provavelmente conquistarão completamente o Donbass em pouco tempo. Basta considerar a superioridade numérica dos russos sobre a Ucrânia. A Rússia pode mobilizar mais de dois milhões de reservistas. O ocidente pode enviar 100 Martens e 100 Leopards para lá, mas eles não mudarão em nada a situação militar geral”.

Mas, sublinhou Vad, “a questão mais importante é como acabar um tal conflito com uma potência nuclear pronta para a guerra – recorde que a potência nuclear mais poderosa do mundo! – sem entrar na terceira guerra mundial”.

Apesar de recitar algumas linhas do mantra oficial sobre a justeza da ‘ampliação da Otan para leste’ e sobre a urgência de ‘conter Moscou’, Vad afirmou “não ser crível” que “Putin não queira negociar”. “Tanto os russos como os ucranianos estavam prontos para um acordo de paz no começo da guerra, no fim de março e princípio de abril de 2022. Então nada aconteceu. Finalmente, durante a guerra, o acordo dos cereais foi finalmente negociado pelos russos e ucranianos com o envolvimento das Nações Unidas”.

Para o ex-conselheiro militar alemão, “a chave para a resolução do conflito não está em Kiev, nem em Berlim, Bruxelas ou Paris, está em Washington e Moscou”. “Você pode continuar a desgastar os russos, o que significa centenas de milhares de mortos – mas de ambos os lados. E isto significa mais destruição da Ucrânia. O que resta deste país? Ele será arrasado. É ridículo dizer que a Ucrânia tem de decidir isso”.

ATLANTICISTA CONVICTO

Diante da observação da entrevistadora de que o comentário dele, pela atual interpretação em vigor na Alemanha, o tornaria candidato a ser considerado um ‘teórico da conspiração’, o general fez questão de se declarar “um ‘atlanticista convicto’ e que, em caso de dúvida, prefere viver sob uma hegemonia americana do que sob uma hegemonia russa ou chinesa”.

Para em seguida lembrar que a guerra “inicialmente foi apenas um conflito político interno na Ucrânia. Começou em 2014 entre grupos étnicos que falavam russo e os próprios ucranianos. Assim, era uma guerra civil”. “Agora, após a invasão da Rússia, tornou-se uma guerra interestatal entre a Ucrânia e a Rússia. É também uma luta pela independência da Ucrânia e da sua integridade territorial”.

Mas – acrescentou – essa não é toda a verdade. “É também uma guerra por procuração entre os EUA e a Rússia e acerca de interesses geopolíticos muito específicos na região do Mar Negro”.

“A região do Mar Negro é tão importante para os russos e a sua frota quanto o Caribe ou a região do Panamá para os Estados Unidos. Tão importante quanto o Mar do Sul da China e Formosa para a China. Contra este pano de fundo e por razões estratégicas, os russos não podem sair de lá. Independentemente do fato de que num referendo a população da Crimeia certamente votaria pela Rússia”, afirmou Vad. Uma intervenção ocidental maciça para forçar os russos a retirar-se da região do Mar Negro levaria a uma guerra nuclear, ele advertiu.

Para o ex-conselheiro, a saída para a crise e a guerra passa por “perguntar às pessoas na região, isto é, no Donbass e na Crimeia, a quem elas querem pertencer. Seria preciso restaurar a integridade territorial da Ucrânia, com certas garantias ocidentais. E os russos também precisam de uma tal garantia de segurança. Portanto, nada de adesão à Otan para a Ucrânia. Desde a cimeira de Bucareste, em 2008, ficou claro que esta é a linha vermelha russa”. Quanto ao papel da Alemanha, ele sublinhou que se deve “dosar nosso apoio de modo que não deslizemos para a Terceira Guerra Mundial”.

Vad conclamou à formação da “mais vasta frente pela paz” e pediu que o ativismo [pró-guerra] sem sentido na política alemã tenha fim. Caso contrário, ao acordarmos numa manhã estaremos no meio da Terceira Guerra Mundial”.

“Nenhum daqueles que foram à guerra com entusiasmo em 1914 pensou depois que isto havia sido a coisa certa a fazer. Se o objetivo é uma Ucrânia independente, deve-se também perguntar como deve ser uma ordem europeia que inclua a Rússia. A Rússia não desaparecerá simplesmente do mapa”.

“Também precisamos da Rússia como uma potência dirigente de um estado multinacional a fim de evitar a intensificação de combates e guerra. E para ser honesto, não vejo a Ucrânia a tornar-se membro da UE e certamente não um membro da Otan”. Vad chamou também a “evitar empurrar os russos para os braços dos chineses, mudando assim a ordem multipolar em nossa desvantagem”.

Fonte: Papiro