A cena final: colaboracionistas fogem para o helicóptero no teto da embaixada dos EUA em Saigon | Arquivo

Há 50 anos, em 27 de janeiro de 1973, a derrota dos EUA na guerra de agressão ao Vietnã – sua maior derrota militar de todos os tempos – ficou selada nos Acordos de Paris, negociados pelo secretário de Segurança Nacional Henry Kissinger e pelo líder vietnamita Le Duc Tho, com Washington assinando a completa retirada de suas tropas e o fim dos bombardeios, um momento histórico para os povos no mundo inteiro que lutavam pela descolonização e libertação nacional.

“Durante os últimos 18 anos, os Estados Unidos empreenderam uma guerra de agressão contra o Vietnã. O imperialismo americano foi derrotado. O Acordo de Paris foi assinado. Trata-se de uma grande e histórica vitória do povo vietnamita e das pessoas justas e pacíficas do mundo”, escreveu, então, Le Duc Tho.

No auge da intervenção norte-americana em 1969, mais de meio milhão de soldados norte-americanos ocupavam o sul.

Foram 24 meses de negociações complexas, com uma face oficial e reuniões secretas entre Le Duc Tho e Kissinger. As tropas norte-americanas foram retiradas até 29 de março de 1973; os pilotos de bombardeiros derrubados, prisioneiros de guerra no norte, conforme o acordo voltaram aos EUA.

Sem as tropas ianques invasoras, o regime títere mal se aguentou por dois anos, até que a cena da ensandecida fuga de colaboracionistas do teto da embaixada de helicóptero e a triunfal entrada dos tanques T-54 vietnamitas no palácio em Saigon revelassem, a quem ainda não entendera, o significado dos acontecimentos.

Fatos que curiosamente remetem à retirada em 2020 dos EUA do Afeganistão, depois de duas décadas de ocupação em conluio com a Otan, e colapso do regime fantoche de Cabul. Como observou o analista Matthieu Buge os acordos de Paris “viram as tropas norte-americanas abandonarem seus ‘parceiros’ – e “não seria a última vez”. Comentário que parece ter destino certo: o regime de Kiev, uma reencarnação ano 2022 do regime corrupto e pró-colonial do ‘sul’, instaurado no esforço de impor o separatismo e a submissão sob ordens de Washington, agora com uma fachada russófoba e indisfarçáveis raízes fascistas.

SOBERANIA RECONQUISTADA

Assim, o milenar Estado vietnamita – e seu povo – reconquistou sua liberdade e soberania, após ser submetido ao final do século 19 pela divisão do mundo entre as potências coloniais, com a França assaltando Vietnã, Laos e Camboja, transformados na ‘União Indochinesa’.

Em 1940 os japoneses invadiram a colônia francesa; os patriotas, liderados por Ho Chi Minh, constituíram a Liga Revolucionária para a Independência do Vietnã (Vietminh). Com a rendição do Japão em agosto de 1945, Ho proclamou em setembro a independência da República Democrática do Vietnã, com capital em Hanói.

No ano seguinte, em 1946, os franceses tentaram reimpor seu domínio ao Vietnã, não reconheceram a independência e reintroduziram suas tropas. Luta que se arrastou até 1954, com a vitória dos vietnamitas na célebre batalha de Dien Bien Phu, o reduto que os colonialistas franceses consideravam ‘inexpugnável’.

Um ano antes, os norte-americanos haviam sido forçados a assinar o armistício na Coreia.

Sob os ditames da Guerra Fria, e com Washington substituindo na Indochina a derrotada França como cidadela da reação, o país foi dividido em dois ao longo do paralelo 17, provisoriamente, pela Conferência de Genebra: ao norte, a República Democrática Popular do Vietnã, encabeçada por Ho Chi Minh; ao sul, o Estado do Vietnã, logo, República do Vietnã, sob o ditador Ngo Dinh Diem e tutela dos EUA. Divisão que deveria se encerrar em 1956 com a realização de eleições gerais em todo o Vietnã.

Não tendo como confrontar no voto a enorme popularidade de Ho Chi Minh, a ditadura do sul – sob ordens de Washington – cancelou o pleito. O que provocou no ano seguinte um grande levante popular e que, três anos depois, se desdobrou na constituição da Frente Nacional para a Libertação do Vietnã do Sul (FLN), juntando comunistas, nacionalistas e budistas, e com apoio dos compatriotas do Norte. A mídia imperial pejorativamente passou a chamá-la de ‘vietcongs’ (vietnamitas comunistas), mas o tiro saiu pela culatra: a expressão se tornou sinônimo de honra e audácia.

EUA SOB CRISE E DIVISÃO INTERNA

Dois anos antes dos Acordos de Paris, em 1971, sob o impacto combinado dos enormes gastos da guerra e da competição da reconstruída economia europeia, o governo Nixon havia cancelado o padrão dólar-ouro instaurado em Bretton Woods ao fim da Segunda Guerra Mundial, expondo a profundidade da crise vivida pelos EUA. A ponto de Kissinger admitir na época que “não é o Vietnã comunista que põe em risco os interesses americanos e, sim, o envolvimento dos EUA num conflito insolúvel”.

A política do governo Lyndon Johnson de guerra total no Vietnã, sob a ‘Teoria do Dominó’, acabou por dividir internamente os EUA, com a revolta da juventude que não queria ir morrer na selva distante, por estancar as possibilidades trazidas pelo programa da Grande Sociedade, tentativa de resposta às expectativas do movimento pelos direitos civis e revogação do apartheid que Martin Luther King encabeçou e à persistência da miséria no país mais rico do mundo.

Como MLK disse em seu histórico discurso de 1967 ‘Além do Vietnã’, há alguns anos “houve um momento brilhante nessa luta. Parecia que havia uma promessa real de esperança para os pobres, tanto negros quanto brancos, por meio do programa de combate à pobreza”.

“A GUERRA COMO INIMIGA DOS POBRES E DOS NEGROS”

“Então veio a escalada no Vietnã, e eu assisti esse programa ser interrompido e estripado como se fosse algum brinquedo político ocioso para uma sociedade enlouquecida pela guerra. E eu sabia que a América nunca investiria os fundos ou energias necessários na reabilitação de seus pobres, enquanto aventuras como o Vietnã continuassem a atrair homens, habilidades e dinheiro como um tubo de sucção destrutivo e demoníaco. Portanto, sentia-me cada vez mais compelido a ver a guerra como inimiga dos pobres e a atacá-la como tal”, afirmou o reverendo Luther King.

“Ficou claro para mim que a guerra estava fazendo muito mais do que destruir as esperanças dos pobres em casa. Enviava seus filhos, irmãos e maridos para lutar e morrer em proporções extraordinariamente altas em relação ao resto da população”.

“Estávamos levando os jovens negros segregados por nossa sociedade e mandando-os a 16 mil quilômetros de distância para garantir liberdades no sudeste da Ásia que eles não haviam encontrado no sudoeste da Geórgia e no leste do Harlem”.

“Portanto, temos sido repetidamente confrontados com a ironia cruel de assistir meninos negros e brancos nas telas de TV enquanto eles matam e morrem juntos por uma nação que não tem sido capaz de colocá-los juntos nas mesmas escolas”.

Martin Luther King se refere à indagação da juventude dos guetos “e quanto ao Vietnã?”: “Nunca mais poderia levantar minha voz contra a violência dos oprimidos nos guetos sem antes ter falado claramente para o maior provedor de violência do mundo hoje: meu próprio governo”.

“Então, nós os assistimos em solidariedade brutal queimando as cabanas de uma vila pobre, mas percebemos que eles dificilmente viveriam no mesmo quarteirão em Chicago. Não poderia ficar calado diante de uma manipulação tão cruel dos pobres”.

Mas talvez o ponto mais revelador do discurso seja quando MLK se refere à indagação da juventude dos guetos “e quanto ao Vietnã?”. “Nunca mais poderia levantar minha voz contra a violência dos oprimidos nos guetos sem antes ter falado claramente para o maior provedor de violência do mundo hoje: meu próprio governo”.

UMA ESCALADA SOB ENCOMENDA

A escalada no Vietnã passou pelo golpe da CIA em 1963 que levou à morte do desgastado ditador Diem, mais a fabricação do “incidente no Golfo de Tonkin” em 1964, inexistente como provado por documentos e testemunhos. O suposto ataque norte-vietnamita não provocado a um navio de guerra norte-americano’ serviu de pretexto para bombardear o Vietnã do Norte e entupir o sul de tropas. A escalada acabaria por estender a guerra – e ditaduras – aos vizinhos Laos e Camboja.

Foram anos em que o imperialismo norte-americano tentou afogar em sangue a luta de libertação nacional e o futuro do socialismo, com os 1 milhão de mortos em 1965 no golpe na Indonésia, o sequestro, tortura e assassinato de Lumumba no Congo ex-belga – cujo corpo foi dissolvido em ácido -, a fieira de golpes na América Latina – além da histeria diante das vitórias da revolução em Cuba e na Argélia.

OFENSIVA DO TET ABRE 1968

Em 1968, a Ofensiva do Tet havia mostrado os pés de barro da ocupação norte-americana e do regime títere, a crise se agravava nos EUA e Johnson desistiu de concorrer à reeleição. No mesmo ano, com diferença de meses, foram mortos a tiros Luther King e o irmão do assassinado presidente JFK, Robert Kennedy. Nixon acabou eleito prometendo “encerrar a guerra com paz e honra”, apostando na “vietnamização” da guerra, a que juntou depois a estratégia do cachorro doido ao estilo da campanha de bombardeios do Natal de 1972, usando bombardeiros estratégicos B-52.

No mundo inteiro, uma onda de indignação contra a guerra e a carnificina cometida por Washington no Vietnã foi se ampliando desde a Ofensiva do Tet e nos EUA deram-se grandes manifestações, com a presença em massa de jovens e de ex-veteranos de guerra. Multidões exigiam “give peace a chance” [“Dê uma chance à Paz”] e “traga as tropas de volta”. Intelectuais e artistas se levantaram contra a barbárie ianque por toda a parte; foi constituído o Tribunal Russel. União Soviética e China prestavam enorme apoio material, político, diplomático e militar aos vietnamitas.

Na guerra de agressão dos EUA ao Vietnã foram mortos três milhões de vietnamitas – e 58 mil norte-americanos. Sob napalm e agente laranja na tentativa de aplastar a ‘Trilha de Ho Chi Minh’, milhões de hectares de terra se tornaram incultiváveis, e ao crime ambiental se somou o crime contra a humanidade, a proliferação das deformações teratogênicas nos bebês vietnamitas. Os EUA chegaram a lançar 1 milhão de toneladas de bomba por ano.

IMAGENS QUE PERDURAM

Imagens perduram como signos da barbárie e insânia imperialista: a menina que corre nua na estrada após ataque com napalm; o chefe de polícia de Saigon que executa um vietcong à luz do dia com um tiro na cabeça; o ódio desvairado a camponeses indefesos, idosos, mulheres e crianças, em Mi Lai; o monge budista que se imolou em protesto contra a perseguição religiosa; as revoadas de helicópteros de guerra rumando para mais massacres ou para coletar corpos daqueles que retornariam em sacos negros para os EUA.

Um ano após a libertação de Saigon, o país foi reunificado como a República Socialista do Vietnã. O gigante da Humanidade Ho Chi Minh – Ho, O Que Traz a Luz – não veria a vitória para a qual conduzira, ao longo de décadas, o povo vietnamita; morrera de ataque cardíaco em setembro de 1969. A guerra de libertação prosseguiu, sob comando de Vo Nguyen Giap, o genial estrategista de Dien Bien Phu e vencedor de três impérios. Ele faleceu aos 102 anos, em 2013, reverenciado pelas novas e velhas gerações. Saigon teve a honra de ser rebatizada Ho Chi Minh.

Fonte: Papiro