Como os comunistas salvaram um filme dos EUA baseado em obra de Jorge Amado
O romance Capitães da Areia (1937), do escritor baiano Jorge Amado (1912-2001), ganhou duas versões cinematográficas. A mais recente é o filme homônimo de 2011, escrito e dirigido por Cecília Amado, neta do escritor baiano. Uma cópia do longa-metragem pode ser assistida no YouTube, o que o torna acessível a qualquer espectador.
A outra versão tinha tudo para estar perdida em definitivo, não fosse a ação dos comunistas que participaram da experiência soviética no século 20. Lançado nos Estados Unidos em 1971 com dois títulos – The Sandpit Generals (Os Generais da Areia) e The Wild Pack (Pacote Selvagem) –, o filme de Hall Bartlet foi rebatizado em 1975 para The Defiant (O Desafiador). Não foi apenas o título original que se perdeu. A película, produzida de forma independente, também foi dada como perdida.
Essa saga, pouco conhecida, foi revisitada na semana passada pelo site Russia Beyond Brasil (RB). Conforme a reportagem, a primeira adaptação de Capitães da Areia concorreu em 1971 no Festival Internacional de Cinema de Moscou, onde Jorge Amado era um dos autores mais populares. “Apesar de não vencer a premiação, foi a cópia do filme ali utilizada a única remanescente, e seu sucesso (inclusive com o presidente Vladimir Putin), contribuiu para sua preservação”, resume o RB.
A distribuição do longa ficou a cargo da American International Pictures, mas, em abril de 1971, o Departamento de Estado norte-americano vetou a participação de filmes do país no festival soviético. Uma pequena empresa, no entanto, se articulou com os organizadores do evento e liberou uma cópia do filme.
Quem contou essa história, em 2019, no talk-show Zakriti Pokaz (Exibição Fechada), foi o crítico de cinema russo Serguêi Lavrentiev. “Uma pequena empresa concordou em conceder o filme. Ele mesmo não recebeu nenhum prêmio no festival, mas concorreu”, lembra a reportagem. “Depois de dois anos, o filme entrou no circuito, e tanto para o governo como para o público isso foi muito bom.” Mais de 40 milhões de soviéticos assistiram a The Sandpit Generals nos cinemas soviéticos.
Até que, em 1997, uma emissora estatal, o Primeiro Canal, tentou exibir o filme pela primeira vez na TV. “Pedimos à Columbia Pictures, mas descobrimos que ela não tinha cópias do filme. Nem mesmo a Biblioteca do Congresso respondeu nada de muito concreto sobre os direitos dele”, relatou Konstantin Ernst, ex-diretor-geral do canal.
O filme foi um fiasco de bilheteria nos Estados Unidos e, por isso, o produtor cedeu os direitos sobre o título, em vez de remunerá-lo pelo trabalho de direção. Com a morte de Hall Bartlet, em 1993, a família herdou os direitos. Ernst localizou, então, parentes de Bartlet e conseguiu autorização para exibir o filme na televisão russa.
Pouca gente sabia, porém, que a cópia em poder da Gosfilmfond (a empresa pública de preservação cinematográfica) era a única conhecida do filme. Ademais, mesmo com boas condições de armazenamento da película, a Gosfilmfond executou um minucioso trabalho de restauração manual, quadro a quadro, mobilizando ainda coloristas e técnicos para garantir “l as mesmas condições em que os espectadores do festival de Moscou a viram”.
O Russia Beyond Brasil conclui: “Foi o sucesso alcançado pela película que a salvou da extinção na URSS e, posteriormente, na Rússia”. Serguêi Lavrentiev, o crítico de cinema, atribui o sucesso da adaptação de Capitães da Areia ao fato de que a censura soviética evitava liberar filmes norte-americanos mais “políticos ou críticos”. E por que esse longa, em especial, escapou do crivo?
“Porque era baseado no romance de um autor comunista, popular entre nós e altamente propagandeado, Jorge Amado. Um filme sobre crianças abandonadas sob o amaldiçoado sistema capitalista”, opina Lavrentiev. “Já para o povo, se tratava de um melodrama, com os mais incríveis e belos jovens heróis, que dava prazer de olhar.”
A isso se soma a singularidade dos protagonistas – “dois jovens loiros de olhos claros, em uma clara decisão eugênica” –, as cenas de nudez e a trilha musical embalada por canções de Dorival Caymmi, como Suíte do Pescador. De tão popular, essa música teve versões em russo.